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A margem sul de Sara Jona Laisse*

Por Cristiano Matsinhe

 

Sobre o novo livro de Sara Laisse, “Moçambique, margem sul: Arte, interculturalidade e outros textos”, pensei assim:

​​​​“Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem”. Bertolt Brecht

Vai longe o tempo em [eu] lia Sara Laisse sem compromisso, sem nenhuma obrigatoriedade, senão a de saborear ou detestar as construções frásicas, apreciar eventuais paradoxos, antíteses e metáforas, claro, sem descurar as conotações e denotações que seus textos, especialmente crónicas, exalam.

Confesso que animava mais deixar-me embalar pelo inebriante perfume que suas letras transbordam. Feliz e infelizmente, tenho a grata, mas também dura tarefa de ler as obras de Sara Laisse com redobrada atenção para não defraudar os potenciais leitores com as minhas desvairadas interpretações e, acima de tudo, certificar-me de fazer justiça a esta profícua autora que vai-se estabelecendo na arte de cronicar.

Resisti a fazer comparações, mesmo com as obras anteriores da autora, não por não existirem (des)continuidades, mas porque acredito que os actos criativos devem, em primeira instância, ser avaliados e julgados por seu próprio mérito, circunstâncias criativas que cercaram a autoria, seu potencial de significação, antes mesmo de serem enquadrados nos historicismos das comparações que podem até tolher a possibilidade de percebermos as transformações (re)criativas por que os autores (sim, autores no masculino e no plural e de forma genérica) passam.

Abdicar deste afastamento epistemológico equivale a sacrificar a oportunidade de estranhar o familiar e, ao assim fazer-se, definhar numa atitude blasé, ler novos textos sem vontade, com uma paralisante sensação de déjà-vu, como se já soubéssemos por que trilhos o autor (no caso autora) irá andar: “É novo livro de quem? De Sara Laisse!? Haaa… já sei o que vai dizer!”.

Não! Não é o caso. Não é possível saber de antemão o que esta autora irá dizer, na sua próxima obra, porque permanece excepcionalmente fiel a si mesma, no compromisso ético e deontológico, como profissional das letras, de não se auto plagiar e nem exaurir a paciência dos leitores com repetições de si, da sua própria escrita, redundâncias ou cacofonias.

Ler Sara Laisse com renovada abertura, sem os preconceitos que tolhem a nossa imaginação, é reabrir a mente para através das suas letras, feitas crónicas, percorrer, por ângulos (in)imaginados, assuntos e temas do cotidiano que até os tomávamos como dados, corriqueiros, mas que são agora re-ilustrados com vívido dinamismo.

Entre as inovações, está a sua capacidade de domesticar a linguagem do campo cibernético e virtual contemporâneo. Quando li, “Performance, expressões, palavras: rituais do acto de contar”, tive uma sensação de imersão no que na linguagem virtual moderna chamam de “memes”, simples figuras videográficas, textos humorísticas ou satíricos que se propagam nas redes sociais à velocidade luz. Com ou sem memes, atenho-me às relações jocosas, descritas neste particular capítulo, por retratar o quão as relações sociais se fundam nas relações jocosas, não necessariamente como forma de denegrir o outro, as outras culturas, mas como artifícios sociais adotados para quebrar gelos, estreitar pontes e enviar mensagens que de outra forma seriam tratadas com pesar, negação ou revolta.

Em cada um dos textos que compõem a obra “Moçambique, margem sul: Arte e interculturalidade e outros textos”, Sara Laisse não se atem a descrever aspectos e/ou práticas sociais não raras vezes tomadas como resquícios culturais; ela investe na compreensão, problematização e re-significação documentada de experiências sociais, amplamente disseminadas e que, assim como no passado, no presente ainda conspiram na estruturação das relações sociais, percepção intercultural, estratificação das hierarquias de poder inter e intra familiar, bem como nas macro e micro tensões constitutivas das relações em sociedade, a nível local e global.

Nessa perspectiva, o que mais fascina na escrita de Sara Laisse neste novo livro, não é só a sua fidelidade aos temas do cotidiano, mas a capacidade de (des) escrevê-los com cristalina simplicidade e objectividade sem, nem por isso, banalizá-los ou destituí-los da sua significante complexidade. Melhor ainda: Sara Laisse reescreve fragmentos culturais e problematiza rotinas e práticas com uma cirúrgica fineza, que só poderia ter sido masterizada por quem, ao enunciar sobre os outros, mantém o compromisso de falar de si próprio, das suas inquietações, (in)conformismos funcionais ou dos absurdos normalizados, sempre no limbo da consciência (“nem tanto mar, nem tanto terra”), daí a exuberante generosidade no trato das coisas.

Nesta obra, Sara Laisse trata os seus leitores e interlocutores como ela própria gostaria de ser tratada e isso é bem reflectido nos textos que retratam a sua própria relação com a sogra (sogaria, sempre deu pano para mangas); no texto que retrata os seus aprendizados na interlocução com os seus estudantes, ou simplesmente, ao falar de um causal encontro com Paulina Chiziane, a bordo dum desses aviões que estreitam pontes entre as margens norte e sul, que até emprestam título ao livro.

Em “Moçambique, margem sul: arte, interculturalidade e outros textos”, não são escassas expressões evocativas, como “minha avó”, “minha sogra”, “minha mãe”, “meu esposo”, “minhas irmãs”, “meus filhos”, ou pronomes classificativos como “cultura bantu”, “entre os bitongas”, “matswas” e por aí vai, ilustrando a inserção, prefiro até dizer imersão da autora no universo referencial capitalizado para fazer suas crónicas. E quando não sabe, pergunta, pesquisa e confronta fontes!

Na sua honestidade intelectual, não obstante o sul, a autora viaja pelo norte do país, assim como do hemisfério, interrogando sobre práticas e experiências culturais, eventuais similaridades e diferenças privilegiado o que nesta obra surge como uma razão de ser, um mote para a escrita: os múltiplos sentidos que a expressão “humanismo” pode significar.

Acho até que a autora apela e abusa em demasia desse conceito, não apenas como um dos possíveis pontos de partida para as suas crónicas, mas como uma aspiração para o devir, uma persistente manifestação de vontade ver, digamos assim, “um mundo melhor”. Os textos sobre o “banco do tempo”; a sua revolta expressa através dos “ombros sedutores” (e aqui com uma belíssima pitada de humor capaz de “seduzir os mortos”); ou ainda no aparentemente obvio “capítulo” sobre “Ubuntu: ser, construir e cuidar a Humanidade, na pressa em que vivemos”; e outros, denunciam o compromisso da autora com o todo, com o bem estar geral, com a redução das inequidades, e com o imperativo de os povos e culturas adaptarem-se aos seus contextos geográficos e ecológicos, não obrigando, por exemplo, e parafraseando a autora, “crianças a vestirem batinas quentes e horrorosas”, em nome da reprodução da procissão ritual do acto de formação escolar.

Com a sutileza que lhe é característica, nesse e em outros textos, a cronista apela à mudança, a um refazer do que mesmo que culturalmente seja considerado enraizado, mas que ao olhos críticos da autora, não passaria de abuso (de autoridade ou de poder, sobretudo entre homens e mulheres) ou simplesmente autossabotagem de melhores performances que os serviços públicos poderiam ter, se não nos ativéssemos a reproduzir mimeticamente discursos e práticas que além dos nos serem alheios são, por si mesmos, irrelevantes, não obstante o impacto e consequências que podem ter na vida das pessoas.

Agora sim, e comparando, nesta obra a autora assume, despudoradamente, uma postura autorreflexiva, que capitaliza das suas próprias vivências e experiências e, disso faz matéria bruta com que se tece esta refinada viagem pelas Margens sul, do hemisfério e da religião, sem perder de vista a necessidade de por à prova os seus próprios conhecimentos, através da evocação de entrevistados e “pesquisados” que, a meu ver … não mudam o curso da narrativa, senão reafirmar e secundar o que das entranhas da autora emana.

É impressionante a forma com que a autora não para de falar de si, e nem por isso transformar esta obra numa enfadonha viagem autobiográfica. Na verdade, apesar de aludir as suas experiências, incluindo suas próprias ignorâncias comportamentais na lide com os diferentes interlocutores das esferas em que transitou e/ou foi socializada, a autora mantém suficiente equidistância narrativa e reflexiva, para que o leitor se aperceba que não se trata de nenhum egocentrismo, senão uma permanente busca por reafirmação, certificação ou negação do que a autora julga saber e já aspirava narrar.

Mais do que uma validação de si… um investimento na cristalização de aspectos prementes das nossas culturas. Em qualquer uma das margens: sul, norte, local ou global) retratadas com apaixonante sensibilidade neste livro, a autora desnuda quaisquer potenciais potes de fermentação de criticismos literários, antropológicos ou linguísticos (não porque não possam ser feitos), mas pela sedutora forma com que as crónicas foram articuladas e fluem.

Despidas de preconceitos, cientes da alteridade, não prescritivas, ciosas e repletas de humanismos, as crónicas de Sara Laisse fluem com refrescante leveza… tratando de temas pessoais, impessoais, dissecados com pitadas da vida da autora, convertendo o abstrato, quase surreal em algo tangível, próximo das nossas próprias experiências. Pessoal e passional.

Assim dito, resta-me acrescentar… arrebatadoramente cativante. Daí, talvez, a insaciável vontade de voltar a ler, quiçá à procura de pontos de discórdia que possa usar como pretexto de interpelação das assunções e pressupostos que a autora escava para avançar as suas crónicas.

Ainda bem que já tenho a minha cópia garantida, porque o belo dos livros não reside apenas na mestria com que os autores os escrevem e dão-nos de empréstimo, mas na nossa capacidade de, como leitores, analistas e críticos, canibalizá-los, digeri-los, fazê-los nossos. Vê-los crescer nas nossas mentes e estantes e, por conta deles, (re)cronicar a vida, poetizar as falas e, como a autora aspira: “humanizar” as vivências.

“Waxiwona ximwanana, xinga phwaliwa nyamuntla”. Nesta obra, Sara Laisse reescreveu o tão célebre rito de nascimento, feito canção. A única diferença é que este livro de criança não tem nada e agrega crónicas de uma autora de elevada maturidade intelectual, exímia em interpor tempos, lugares e culturas.

Estou ficando um habitué nisto (de apresentar as obras de Sara Laisse). Talvez por isso me sinta com a legitimidade de dizer leiam “Moçambique, margem sul: arte, interculturalidade e outros textos”, com a plena certeza de que voltaremos a encontrar-nos em 2026, para apreciarmos qualquer coisa como à montante ou jusante Norte, porque de rios culturais ninguém melhor do que Sara Laisse para falar. Transbordo de alegria e felicito a autora por manter seus rios de crónicas fluindo e, parafraseando a célebre frase, sem deixar que as margens nos oprimam.

Xiwundlhane (nutram, tratem este livro com o carinho que merece).

Khanimabo Sara, wa ka Laisse!

Cristiano Matsinhe
Chidenguele, 14 de Novembro de 2022

 

*Título do editor.

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