“Um homem que foi traído pela vida perde para sempre o dom de sonhar”
In O bebedor de horizontes, Mia Couto.
Peregrinação, do latim, per agros, isto é, pelos campos, é uma jornada realizada por um devoto de uma dada religião a um lugar considerado sagrado por essa mesma religião.
De acordo com “Fides Et Ratio” [fé e razão], carta do papa João Paulo II, o termo “Peregrino” aparece na primeira metade do século XIII, para denominar os cristãos que viajavam a Roma ou à Terra Santa [onde actualmente se encontra o Estado de Israel e os Territórios Palestinos], para visitar os lugares sagrados. Desses peregrinos surgiria mais tarde a ideia das Cruzadas, enviadas para “reconquistar” os lugares que os cristãos consideravam sagrados e que estavam em poder de povos de outras religiões.
Para peregrinar há que ter em conta que não se trata apenas do acto de caminhar ou executar um trajecto com um determinado número de quilómetros; é reconhecido que peregrinar carece de se caminhar motivado “por” ou “para algo”. Refere o documento acima citado no seu número 62. A peregrinação tem, assim, um sentido e um valor acrescentado que é necessário descobrir a cada pessoa que a executa.
Para o caso em análise, “Os peregrinos da sobrevivência” é um romance de estreia do escritor Francisco Panguana Jr., distinguido com o Prémio Literário Fernando Leite Couto, para o ano de 2024.
O romance é dividido em três partes. Para quem gosta de novelas pode emprestar a designação “capítulos”, o que permite uma leitura prazerosa não só pela dimensão das páginas, mas, igualmente, pelo equilíbrio de páginas, ou seja, os “horários” de leitura são milimetricamente iguais, dependendo, seguramente, das estratégias de leitura que cada um adopta para si.
Afinal, quem são os Peregrinos da Sobrevivência ou peregrinos da desgraça?
O a gente narrativa apresenta-nos uma estória de um professor que decide abandonar a vila de Mutaratu e a sua categoria de funcionário de Estado para tentar a sorte em uma outra região. O professor reclama da estagnação na carreira, perseguição dos colegas que impedem a sua filha de ingressar no ensino primário, falta de reconhecimento dos políticos. Entretanto, entre a expectativa e a realidade, Francisco Panguana Jr. desafia o leitor para um passeio de 192 páginas de conversa, nas quais o ciúme e o conflito armado são cartões de visita para rumar neste passeio proposto pelo autor em um campo narrativo, onde a esperança cumpre o seu dever de ser a última a morrer, enquanto o sonho de Chico Albuquerque palpita nas veias de Mutaratu.
A imagem da capa do livro faz um resumo básico dos envolvidos no universo diegético da narração. Temos o Pai, a mãe e a filha caminhando de mãos dadas, segurando a sua riqueza, três malinhas cheias de nada, resultado dos rendimentos de tantos anos como Professor se resumem nestas malinhas que levam consigo.
Quantos professores em Moçambique não se escondem dentro desta malinha miserável? Esta colocação me faz recordar de um texto que li quando frequentava a sexta classe, não recordo do nome do autor, mas, sei que o texto tem como título “Do giz ao marcador: uma aposentadoria chamada tuberculose”, onde o autor narra uma história sofrida de um cidadão que toda a sua vida trabalhou como professor e na aposentadoria não tinha carro, casa, nem dinheiro de reforma, a sua única riqueza seria a tuberculose resultado do pó de giz que foi inalando ao longo dos 45 anos de trabalho.
O autor suspeitamente conhecedor da mecânica ou da arquitectura quântica do género narrativo mobiliza todos os recursos que prendem e soltam o leitor para divagações e preenchimento lacunar com a realidade do dia após dia, quer do que se vive, quer do que os órgãos de comunicação social e oral transmitem. Não é curioso que a História é contada por uma criança, Khensile, que não foi à escola, que não sabe ler nem escrever. O autor, de forma genial, revela e releva o Poder da Oratura na produção literária. Khensile, que literalmente significa agradecer no Passado, dá jus ao nome pelo papel que ela desempenha na família, sobretudo em momentos de aflição.
Mais do que teias de processos narrativos (prolepses, analepses, encaixes), o autor faz uma mescla lírica que se comprova em alguns excertos.
Trata-se de um romance típico que faz a radiografia e DNA de uma sociedade onde as conflitualidades e tensões situam -se em todos os níveis e extractos sociais. O eixo central da narrativa é uma personagem feminina, menor de idade e sem escolaridade (não conseguiu a vaga porque sendo de Outubro, a lei não permite que fosse matriculada antes de completar os 6 anos, porém, quando a mãe foi à escola no ano seguinte para a inscrição, os agentes da secretaria assumem-na com 7 anos, portanto, com 1 ano amais), mas com um Poder de memória contemplativa e reflexiva, sobretudo quanto acontece primeiro narrando as conversas que os pais têm em casa, as posições, as hierarquias destas conversas com uma masculinidade fazendo o domínio.
O eu dela confunde -se com narrador omnisciente que tem um domínio das outras personagens, quer do seu passado, quer do seu presente e ainda das suas angústias, alegrias e sonhos. A falta de escola permite à personagem a inobservância da moralidade. A personagem fala das suas aventuras sexuais, de forma livre, sem censura. A escola muitas vezes coloca freios em relação aquilo que se deve dizer.
Os dramas das longas filas às sextas-feiras, nas lojas dos que professam a religião islâmica, e aos campos de concentração dos deslocados de guerra, vítimas do terrorismo, as conflitualidades entre o dito tradicional e o modernismo, as práticas de curandeirismo, a religiosidade. O drama da avó Khanyisa, que, sendo cega, continua alimentando o seu filho juntamente com a sua esposa e neta que abandonara o emprego do magistério. Mais tarde é acometida por uma doença rara que a faz pendularmente entrar na medicina moderna, tradicional e caindo na religião sem sucesso. Os parcos recursos da família, fruto do trabalho infantil, incluindo a aceitação para a prostituição na pousada do ilustre Deputado Foraz, que é amigo do Pai (camaradas do mesmo Partido) da Khansile, são gastos na tentativa de recuperação da saúde de quem já não consegue andar a pedir esmola.
Como o azar tem perseguição, a Khensile acaba adquirindo doença do século à semelhança das outras garotas que trabalhavam na Pousada. Felizmente, ela aceita ficar internada no Hospital e mais tarde toma os medicamentos apropriados apesar de algumas amigas suas terem sucumbido e morrido devido à doença”.
A narradora nos convida a viajar para o passado apesar de estar a documentar algo que vê no seu dia a dia. Quando fala das grandes tensões nas filas sextas-feiras obriga, convida o leitor para aquelas longas filas de busca de pão, nas cooperativas de consumo e não de produção da primeira República de Moçambique, registado em “La Famba Bicha”, música do saudoso Jeremias Nguenha.
“La famba bicha? Vateca bicha? Ina, vateca kosse phambeni vanga kona”
[Sim, a bicha anda, mas somente lá à frente onde eles estão].
É que quer nestas filas das sextas ou filas de distribuição de alimentos para os deslocados de guerra também a bicha não anda, ou seja, só lá a frente onde estão os sofridos mais influentes. Nas bichas de acampamento dos deslocados de Cabo Delgado, há um duplo conflito, há aqueles que conseguem perfurar as filas, outros arrancam comida dos que conseguem.
O sentimento do pai da Khensile em ter de partir não é diferente do que se relata na música “Sala”, de Jeff Maluleke. Narrando todas as vicissitudes de um povo sofrido que muitas vezes passa por dificuldades da vida que obrigam a abandonar a sua família para ir a busca do pão em uma terra distante. Mas, diferente da estória cantada pelo Jeff Maluleke, o pai da Khensile pelo menos tinha emprego só que quis coisas a mais na Terra Prometida que só viu miséria, atrás de miséria para além da guerra. Aliás, viu sua mãe acometida por doença rara, viu sua única filha infectada por doença do século, viu seus parcos suínos entregues numa igreja na tentativa de salvar a sua mãe. Estas e outras peripécias são encontradas na obra “Os peregrinos da sobrevivência”.
Em suma, “Os Peregrinos da sobrevivência” é uma obra literária única e simbólica. Ela traz uma imagem forte de resiliência, jornada e superação de desafios, o que pode ser uma óptima metáfora para nos apoiarmos uns aos outros em situações de crise e para que possamos superar as dificuldades burocráticas e legais impostas pelas instituições e circunstâncias da vida.