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Mulheres desafiam estereótipos e constroem futuro em Inhambane

No Dia da Mulher Moçambicana, O País dá voz às heroínas anónimas que trocam a celebração pelo esforço diário de garantir o pão, enfrentando profissões tradicionalmente masculinas com coragem e dignidade.
Com uma pá na mão ou uma bacia à cabeça, muitas mulheres de Inhambane desafiam diariamente o peso do preconceito e da pobreza. Entre canalizações e vendas ambulantes de peixe, estão a reescrever, em silêncio, o papel da mulher na sociedade moçambicana. Sem tempo para flores ou discursos, elas lutam por sustento, reconhecimento e um futuro melhor — não só para si, mas para todos os que carregam consigo.

No sul de Moçambique, na província de Inhambane, há mulheres que todos os dias vencem batalhas invisíveis. Elas não esperam que a sorte lhes sorria — fabricam a própria sorte com as mãos calejadas, o rosto ao sol e o corpo exausto. Neste Dia da Mulher Moçambicana, longe das flores, das homenagens e dos discursos institucionais, há mulheres que acordam cedo demais, deitam-se tarde demais e quase não param para respirar. Mas não se queixam. Avançam, porque sabem que a vida não espera.
Lucrécia Vasco é uma dessas mulheres. Canalizadora desde 2022, entrou numa profissão que muitos ainda consideram “de homem”, mas fá-lo com a coragem de quem não teve outra escolha senão agarrar o que havia. Mãe solteira de dois filhos, ela não sonhava com tubos, alicates ou canos furados. O seu sonho era vestir a bata branca, escutar batimentos cardíacos, cuidar de feridas e salvar vidas. Sonhava ser enfermeira. Mas os caminhos da vida, feitos de becos e encruzilhadas, levaram-na por outra via. Hoje, limpa o suor da testa entre um conserto e outro, mas sorri por dentro por, pelo menos, poder alimentar os filhos com dignidade.
O dia de Lucrécia começa cedo, antes do sol nascer. Carrega ferramentas, transporta peso, entra em casas, suja-se, mas ninguém lhe ouve uma queixa. Com o tempo, foi ganhando respeito no bairro. Quando os vizinhos têm um cano rebentado, não chamam “um homem que perceba de canalização”. Chamam a Lucrécia. E isso, para ela, vale mais do que qualquer diploma.
“Não é o que eu sonhei, mas é o que me mantém de pé”, confessa. E se há dias em que o corpo pede descanso, é a imagem dos filhos, em casa à espera, que lhe dá força para continuar. Lucrécia não quer ser apenas mais uma mulher resiliente: quer ir mais longe. Alimenta o sonho de ter a sua própria pequena empresa de canalização, onde possa empregar outras mulheres, treiná-las e empoderá-las. Para ela, o futuro é um lugar onde as mulheres têm espaço para crescer, mesmo em áreas onde antes só entravam de favor.
Benedito Sebastião, o empresário que lhe deu a primeira oportunidade, diz que não se arrepende. Viu em Lucrécia uma firmeza rara, uma entrega que ultrapassa o físico. “Ela não é apenas forte — ela é meticulosa, atenta, responsável”, diz, com a segurança de quem viu talento antes de ver o gênero.
Mas Lucrécia não está sozinha nesta batalha. Noutra ponta de Inhambane, com uma bacia à cabeça e os pés calejados pelo asfalto, Fátima Miguel percorre diariamente dezenas de quarteirões. Vai de casa em casa, tentando vender peixe e mariscos. É assim há mais de uma década. Ela não celebra o Dia da Mulher, porque os seus dias são todos iguais: de sacrifício, de espera e de esforço contínuo. Acorda às 4h para chegar a praia antes dos melhores lotes acabarem. Quando consegue, regressa com a bacia cheia; quando não, traz apenas esperança e a certeza de que amanhã tentará outra vez.
Fátima vive daquilo que o mar dá — e o mar, ultimamente, tem dado pouco. As mudanças climáticas não são teoria para ela; são a realidade de dias em que o peixe não aparece, os compradores escasseiam e os filhos vão dormir com menos do que precisavam. Mas ela não se dá por vencida. Sabe que, se parar, tudo à sua volta desmorona.
As suas mãos, marcadas pelo sal e pelo tempo, são símbolo de um trabalho que poucos valorizam. Enquanto muitas têm o conforto de uma renda mensal, Fátima vive de incertezas. Mesmo assim, ela é a fonte de sustento da família e, muitas vezes, de outras mulheres da vizinhança, a quem ensina técnicas de conservação e venda do pescado.
Estas duas mulheres são apenas o rosto visível de um movimento que se fortalece em silêncio. Um movimento feito de mulheres que não têm tempo para ideologias, que não reclamam igualdade com palavras, mas com acções. Mulheres que enfrentam o preconceito, a dureza e a pobreza de frente, sem adornos ou filtros.
Em Inhambane, a luta da mulher não é simbólica. É concreta. Está no barulho das ferramentas que Lucrécia carrega. Está nos passos apressados de Fátima, que corre contra o tempo e contra a fome. Está em tantas outras que trabalham como mecânicas, pescadoras, pedreiras, motoristas, soldadoras — em profissões que o mundo teima em associar ao masculino.
A sociedade começa lentamente a reconhecer este esforço, mas muito está por fazer. As políticas públicas ainda falham em criar condições reais para estas mulheres avançarem. Falta crédito, formação, apoio técnico. Falta espaço para que estas histórias deixem de ser exceção e passem a ser regra.
Ainda assim, mesmo diante das adversidades, estas mulheres seguem. Não por vaidade. Não por estatuto. Mas porque sabem que, se não forem elas a carregar o mundo, ninguém o fará por elas.
Neste Dia da Mulher Moçambicana, é a elas que devemos olhar. Não às fotografias com flores e cachecóis, mas aos rostos de suor, às mãos calejadas, aos sonhos que insistem em não morrer. Porque são estas mulheres — silenciosas, determinadas, invencíveis — que verdadeiramente fazem mover Inhambane. E, por arrasto, o país inteiro.

 

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