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A recepção de Mondlane

Por: João Laissone

Na estética da recepção a obra é susceptível a vários escrutínios. Nesses casos, a objectividade da análise, não poucas vezes, se mescla com a subjectividade polissémica da arte. Logo, seja qual for a abordagem crítica, na estética da recepção nada é absoluto, até porque a unanimidade não enriquece nenhum debate de ideias. Pelo contrário, na diferença de opinião sobre um objecto artístico ou um património cultural se enriquece o sujeito de forma ecléctica e transversal.

Ora, desde que lápide alusiva à requalificação do Monumento e Estátua Eduardo Mondlane foi descerrada, neste 25 de Setembro, ficou claro de que cada cidadão tem a sua forma de captar impressões e de expressar sentimentos. Por isso mesmo, o dia reservado à celebração dos 60 anos das Forças Armadas de Defesa de Moçambique rapidamente se transformou numa perfeita ocasião para os mais apaixonados tão-somente se concentrarem em alguns aspectos da obra em detrimento da totalidade.

Em geral, as publicações nas redes sociais começaram com uma implícita noção de verosimilhança. Se, para uns, o primeiro presidente da Frelimo tem a sua imagem bem retratada em aproximadamente quatros metros de bronze, para outros, na nova Estátua Eduardo Mondlane não há muito a favor que se lhe diga. Assim, à partida, precipitou-se um conflito à moda “Da galinha e do ovo”, de Luandino Vieira. Por um lado, vêem-se os que enaltecem a qualidade da estrutura de bronze, e, por outro, os que a vilipendiam. Nos dois casos, as opiniões são extremadas e não dialogam com apreciável critério. Mesmo quando se sabe que o que está em causa é um memorial histórico moçambicano, o que nos liga ao passado como um ponto de ordem no acto da afirmação da moçambicanidade e do amor à pátria.

Para não me deixar influenciar, quer por uns, quer por outros, resolvi ir ao Alto-Maé ver pessoalmente a Estátua Eduardo Mondlane. Sobre a visita, dois pontos prévios. Primeiro, há muita gente que ainda não foi ver a estrutura de bronze e que está a tirar conclusões com base em três/ cinco fotografias em circulação nas redes sociais.

Segundo, as fotografias a circularem nas redes sociais não dão uma precisão sobre o que a estrutura de bronze realmente é. Quer dizer, à distância é fácil criticar com algum desequilíbrio, porque as fotografias desproporcionam a estátua e não dão uma visão a 360º compatível com a realidade. Por exemplo, pelas fotografias, a cabeça da figura parece maior do que devia e o rosto decepciona os que julgam conhecer as imagens de Eduardo Mondlane. Portanto, a avaliar pelas partilhas nas redes sociais e as legendas que as acompanham, sim, fica-se com uma má impressão sobre a estrutura de bronze. Entretanto, no local, as coisas são bem diferentes. Vendo a estátua por trás, pelos lados e pela frente, próximo ou há meia distância, é evidente que se trata de um bom ensaio arquitectónico sobre um dos maiores intelectuais africanos do séc. XX, homem de origem pobre, que, uma vez alcançado o topo da carreira nos Estados Unidos, sacrificou tudo para Lutar por Moçambique.

Em termos de engenharia, a obra é opulenta, destacando-se, por isso, na atmosfera do lugar. Quem passa pela Avenida Eduardo Mondlane, ao contrário do passado, vê uma tentativa de valorização daquele que se acredita ser o “arquitecto da unidade nacional”. Parece óbvio, as autoridades moçambicanas quiseram “ressuscitar” Mondlane, não ao nível da profundidade do pensamento, como se propôs Severino Ngoenha, mas ao nível simbólico, dando ao herói nacional um estatuto de “Pai da Nação” que, para muitos, pertence a Samora Machel.

Nas entrelinhas, pode ser que o Governo de Nyusi esteja a contradizer a percepção de que existe apenas um “Pai da Nação”. Ao invés disso, como há muito não se via, resgata a figura de Mondlane para, como o fizeram os americanos, sugerir em actos que, no caso, há dois heróis nacionais que, pelo seu envolvimento na Luta Armada de Libertação Nacional, se distinguem dos outros: Mondlane e Machel.

Parece que o Governo de Nyusi está interessado pela importância da memória colectiva como património inegociável dos moçambicanos. Há uns anos, inaugurou a Estátua Filipe Samuel Magaia (na altura, igualmente controvérsia), tal como Mondlane, um herói que poucos sabem o que pensava para Moçambique. Ao trazer de volta essas figuras, pelo menos em termos históricos, reconhece-se aqueles que arriscaram as suas vidas para que hoje vivêssemos em harmonia social.

Actualmente, e num contexto em que tópicos como identidade e pertença diluem-se pelas tantas ofertas disponíveis na internet, é urgente o resgate dos valores e das referências de Moçambique, para que os heróis dos nossos filhos, sobrinhos e netos não sejam personagens dos desenhos animados ou figuras pré-fabricadas através da inteligência artificial.

A Estátua Eduardo Mondlane, vista por perto, contém uns pormenores interessantíssimos sobre a proeminente figura do herói nacional, designadamente, a calvície, o lábio inferior maior do que o superior, a testa farta, aquele semblante e aquele corpo a lembrarem que, sem prejudicar a inteligência, Mondlane era um homem feio e grande.

Dito de outro modo, a estrutura de bronze revela como o construtor vê o herói, o que exigiu de si suportar uma pressão enorme uma vez que a sua obra foi feita para substituir àquela pela qual se tinha desenvolvido uma justa afinidade. As mudanças nem sempre são fáceis e cada um reage a isso de forma particular.

Não obstante, ainda que se diga que a estátua foi muito bem-feita, atendendo aos padrões internacionais, relativamente à tonalidade, material utilizado e à dimensão, é preciso compreender quem pensa o contrário. A diferença de opinião, num debate, não deve ser um problema e muito menos dar azo à intolerância. Longe disso, no debate público, discutir ou contradizer deve constituir uma incessante busca da razão, do consenso, ainda que isso aparentemente seja impossível. Deve importar fazer da diferença da sensibilidade um pretexto maior para construirmos uma narrativa que nos engrandece a todos, como moçambicanos.

No debate sobre a Estátua Eduardo Mondlane, em parte, escapa a sensação de que as novas gerações de moçambicanos, afinal, continuam interessadas pela boa apresentação dos seus símbolos. O que está em causa, a certo nível, não é a estátua, mas a percepção de que podia ser melhor. Claro, também há os que questionam se a estrutura de bronze é prioritária para o país num contexto atravessado por enormes desafios. Respeito quem assim intervém, mas julgo que as outras prioridades nacionais não anulam a relevância de se requalificar o Monumento e Estátua Eduardo Mondlane.

O desenvolvimento de um país se faz em várias frentes. Cabe aos governantes serem consistentes em todas… A questão essencial é que devemos deixar de pensar que gastamos dinheiro quando investimos em bens culturais. Aliás, até devemos exigir dos governantes mais acções a favor do património cultural. No dia que alcançarmos esse nível de exigência, os manifestos políticos vão valorizar a importância das artes e da cultura no desenvolvimento intelectual das mulheres e dos homens.

Uma vez no Alto-Maé, comparei a nova Estátua Eduardo Mondlane com a anterior. Em cada uma há aspectos que aprecio e aspectos que menos gosto. Na anterior, o herói nacional aparece bonito, subtilmente maquiado e diminuto. Nesta nova, aparece com “todas” as suas características físicas destacadas, mas com umas presumíveis manchas à cabeça que ainda não sei explicar. Aparentemente, o construtor não quis pôr beleza onde nunca existiu, mas fazer da verosimilhança o principal factor da originalidade. Quiçá, para a sua desgraça, guiando-se nuns retratos de Mondlane diferentes dos que guiaram a construção da primeira estátua.

Alargando o debate (gesto perigoso quando dizemos o que o nosso leitor não está à espera), os que conhecem Sandton, devem ter reparado as semelhanças existentes entre a Estátua Eduardo Mondlane e a Estátua Nelson Mandela. Analisadas as duas estruturas, até parece que foram construídas pela mesma entidade.

Muitos moçambicanos, quando vão a Sandton, deixam-se fotografar na Estátua Nelson Mandela. Sem receios, geralmente, valorizam aquele símbolo nacional sul-africano, continental e mundial. Nada mais do que justo. Madiba é um exemplo distinto de grandeza, de paz e de amor no tempo de cólera, tal como Gandhi e King Jr. Mas, honestamente, comparando as estátuas de Mondlane e de Mandela, a nossa é bem melhor no retrato, na projecção, nos adereços incluídos e na localização urbana.

Agora, no que me parece óbvio, cabe-nos a todos promover aquele monumento no mapa turístico da Cidade de Maputo, e, assim, torná-lo mais apelativo na divulgação da História de Moçambique. Afinal, na estética da recepção, a crítica é que faz a obra.

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