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Nem crime nem pecado: asneira!

Por Valério Maúnde

 

Ao meio dia, Laércio faz uma pausa nas suas obrigações laborais para tomar a sua merecida refeição, confeccionada com zelo e amor por Laura, sua esposa e companheira há 17 anos. Com a mão direita, segura o talher e, com a esquerda, o celular, onde lê a versão electrónica do jornal O País. A manchete destaca um tema que tem deitado muita tinta desde o mês de Junho, mas sem conhecer qualquer desfecho. Trata-se do escândalo das atrocidades e erros imperdoáveis constantes do manual de Ciências Sociais da 6a classe. Como medidas paliativas, os manuais foram retirados do sistema de ensino e, de seguida, foi suspensa a equipa do Instituto Nacional de Desenvolvimento da Educação.

Para Laércio, este assunto era já águas passadas, tão passadas que não julgava serem ainda capazes de mover moinhos, entretanto, a manchete desmentia tal ideia, pois faltava ainda o parecer do Campeão Africano na Gestão de Riscos de Desastre Naturais, que, de forma assertiva, metódica, oportuna e clarividente, anunciou medidas para impedir que “asneiras” iguais se venham a repetir. Este substantivo de três sílabas resumia o ocorrido e encerrava o assunto.

Laércio respirou de alívio. Pousou o celular e o talher, e, agitando os braços com os punhos cerrados, deu um grito de satisfação, não pelo que lia, mas pela saída que tinha acabado de encontrar para justificar o seu caso com a Tânia, sua secretária. A Tânia, diga-se, era de tal sorte formosa que um pedido de casamento não se expressaria em “pedir a mão dela”. O mais ajustado, pensamos, mas o leitor é livre de discordar, seria, por exemplo, “pedir o seu exuberante peito”, que, a muito custo, os botões das suas blusas conseguem conter.

Enfim, retomando o foco, dizíamos que Laércio respirara de alívio, porque a gravidez resultante do seu envolvimento extraconjugal com Tânia tinha agora outra designação.  Os nomes mais usuais como adultério, infidelidade e traição já não se ajustavam. Ele não tinha cometido nenhum pecado, mas sim feito uma asneira. Era isso e ponto!

Laura, sua amorosa e abnegada esposa, chorou, pranteou e jurou ir-se embora, após ouvir do marido a confissão de infidelidade resumida em tão inocentadora palavra. Conforme jurado, Laura até se foi embora, mas por um breve tempo. Voltou para o lar não por sua livre e espontânea vontade, mas por expressa e imposta vontade da sua família, que não a recebera com os mesmos braços abertos com que abraçam o genro a cada final do mês, quando lhes vai deixar o rancho.

Tu tens que ser forte. Casamento é assim mesmo. Homens traem por impulso, é defeito de fabrico. Imagina que todas as mulheres traídas saíssem de casa, achas que haveria algum lar de pé? Não sejas egoísta, Laura, pensa também no Enzo; teu filho só tem 12 anos e precisa crescer num lar estável. Vais deixar o teu marido mesmo só por causa de uma asneira?” – Foram estes os construtivos conselhos que recebeu da sua família. Sem eira nem beira, ou melhor dito, sem amparo nem solidariedade, Laura engoliu a dor, o choro, o orgulho, o amor próprio, os estilhaços que ainda sobravam do seu destroçado coração e voltou para casa.

Conforme manda o Manual do Bom Homem Arrependido do seu Mau Procedimento, Laércio comprou-lhe chocolates e um buquê de rosas de papel, mas não quaisquer rosas nem qualquer papel. Eram rosas de notas vermelhas e verdes com a estampa de um homem de barba abundante, mas incompleta. E não foi só isto, Laura recebeu também um celular com uma maçã trincada no verso.

O tempo passou e nada mais se disse sobre a asneira de Laércio, cumprindo-se assim o adágio popular: quem cala consente. O silêncio de Laura, entretanto, não era de consentimento, mas de profundo ressentimento não expresso.

Certo dia no trabalho, Laércio recebe uma chamada da escola do filho, a mesma escola onde o nosso já conhecido professor Jolson trabalha. A razão da urgente convocatória era simples: Enzo tinha andado a apalpar as coleguinhas de turma sem a sua anuência, isto sem falar da sua total indiferença para com as questões académicas. O Enzo era uma autêntica dor-de-cabeça para o professor Jolson, seu director de turma, que, vezes sem conta, repreendera o adolescente, mas sem nunca lograr intento. A expulsão da escola era já iminente.

O encarregado de educação desdramatizou o assunto, alegando que não era para tanto, entretanto, desculpou-se em nome do filho e prometeu à escola tomar as necessárias medidas para pôr na linha o desviante comportamento do filho.

No carro, já de regresso a casa, Laércio prega um sermão ao filho e censura-o por sua atitude reprovável e pelo seu mau desempenho académico, mas as palavras do pai ecoam no silêncio. O rapaz nada diz e mostra-se alheio ao que ouve, aliás, faz que não ouve. Furioso e indignado com a apatia do filho, Laércio grita:

– Ouviste o que eu disse, Enzo?

– Foi só uma asneira, pai – replica Enzo petulantemente.

 

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