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7 de Setembro: o nascimento de um Estado excludente? 

Resumo: Há datas que iluminam e ferem ao mesmo tempo. O 7 de Setembro foi libertação e amputação: soberania conquistada, pluralismo sufocado. A narrativa oficial exalta a vitória; a história, lida sem filtros, expõe o custo – um Estado moldado pela exclusividade, centralização e silenciamento de vozes. Revisitar esse “dia duplo” é compreender o presente: por que razão continuamos a confundir unidade com unanimidade? E que fazer, agora, para trocar a lógica da hegemonia pela lógica da inclusão?

Um país à beira da liberdade

O 7 de Setembro de 1974, hoje celebrado como Dia da Vitória, encerra uma contradição fundamental: no mesmo instante em que foi reconhecida a soberania nacional, selou-se a exclusão política. O Acordo de Lusaka, ao conferir à FRELIMO o estatuto de único representante legítimo do povo, abriu as portas da independência, mas fechou as do pluralismo.

Essa duplicidade raramente emerge no discurso oficial. As comemorações evocam a coragem da luta de libertação, mas omitem o outro lado da moeda: o nascimento de um Estado erguido sobre a hegemonia de um partido, relegando outras vozes ao silêncio. A independência foi uma conquista inegável, mas o preço foi a amputação da diversidade política.

Essa escolha marcou o futuro. A exclusão transformou-se em prática de governo, permitindo a captura do Estado por uma elite, afastando o partido da sociedade e enfraquecendo a promessa de bem-estar colectivo. A independência que deveria unir tornou-se também mecanismo de separação entre os que tinham acesso ao poder e os que foram afastados dele.

A pressa portuguesa e a exclusividade da FRELIMO

Portugal, recém-saído da Revolução dos Cravos (25 de Abril de 1974) e pressionado por uma guerra colonial insustentável em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique, queria encerrar depressa conflitos que minavam recursos e credibilidade interna e externa. Em Moçambique, já em 1974, Lisboa sentia os efeitos da ofensiva militar da FRENTE e das baixas sucessivas no terreno, realidade que a obrigou a repensar o esforço de guerra e os seus custos humanos, políticos e económicos. No teatro moçambicano, desde 1964, a FRELIMO afirmara-se como a força mais organizada e a única com reconhecimento internacional; negociar apenas com ela pareceu, portanto, a solução mais expedita.

Assim nasceu o Acordo de Lusaka: cessar-fogo imediato, governo de transição dominado pela FRELIMO e transferência integral de poder em menos de um ano. No papel, parecia desfecho rápido; na realidade, foi a semente de uma longa exclusão. 

Ao consagrar a FRELIMO como “único representante legítimo do povo moçambicano”, Portugal eliminou de um só gesto colonos organizados, grupos regionais e dissidências internas. A independência foi reduzida a um acto bilateral entre Lisboa e FRELIMO (Maputo) — uma pressa que resolveu a guerra, mas hipotecou o pluralismo.

Tal como Portugal em Moçambique, também a Bélgica em Ruanda e o Reino Unido no Sudão optaram por soluções de conveniência, ditadas mais pela urgência de encerrar o capítulo colonial do que por um compromisso genuíno com a inclusão política. Em 1962, Bruxelas promoveu eleições apressadas que entregaram o poder aos hutus, marginalizando os tutsis; em 1956, Londres uniu de forma artificial o Egipto ao Sudão anglo-egípcio e precipitou uma independência que alimentou décadas de guerra civil. Nestes três casos, a pressa metropolitana resolveu a equação da soberania formal, mas hipotecou a construção de Estados plurais. 

O levante em Lourenço Marques

Enquanto em Lusaka se assinava a paz, em Lourenço Marques colonos armados tentavam reverter o curso da história. Organizados no movimento Moçambique Livre, proclamaram governo paralelo, ocuparam edifícios estratégicos e sonharam com um Estado multirracial que, na prática, manteria a dominação branca. Inspirados na Rodésia, acreditaram que podiam desafiar o Acordo.

O ensaio foi breve. A insurreição foi esmagada em poucas horas, deixando mortos, feridos e medo. A derrota consolidou a imagem da FRELIMO como força incontestável e reforçou a ideia de que qualquer oposição equivalia a nostalgia colonial. O episódio cristalizou uma narrativa binária: de um lado, os libertadores; do outro, os reaccionários. No meio, não houve espaço para alternativas moderadas. Dissidentes internos e elites regionais foram empurrados para o silêncio.

Dissidências silenciadas

A exclusão atingiu também o interior da própria FRELIMO. Uria Simango, antigo vice-presidente, afastado após a morte de Mondlane, tentou formar um pequeno movimento sem expressão militar. Outros, como Lázaro Nkavandame, romperam com a liderança de Samora Machel. Nenhum encontrou espaço na transição. Com a independência, a exclusividade radicalizou-se: alguns dissidentes foram presos e desapareceram em circunstâncias nunca esclarecidas. A unidade confundiu-se com unanimidade. A pluralidade foi tratada como traição.

 

O custo do monopólio

À primeira vista, a exclusividade parecia pragmática: a guerra terminava e a independência estava garantida. Porém, o preço foi alto. O Estado nasceu como propriedade de um partido. Essa concepção bloqueou desde cedo a construção de um pacto nacional inclusivo. O monopólio tornou-se princípio fundacional, moldando a política, a economia e a sociedade.

A marginalização de comunidades e elites regionais, sobretudo no Centro e Norte do país, alimentou frustrações que não encontraram canais institucionais de expressão. Foi nesse vazio que surgiu a RENAMO, em 1977, criada com apoio da Rodésia e, mais tarde, da África do Sul do apartheid. A sua capacidade de recrutar e expandir não se explicava apenas pelo patrocínio estrangeiro, mas também pelo sentimento real de exclusão vivido por milhares de moçambicanos. A guerra civil de dezasseis anos não foi, portanto, apenas uma imposição externa: foi também a tradução violenta das fracturas internas geradas no próprio momento fundacional do Estado.

O aparelho coercivo (polícia, serviços de informação e redes de vigilância) fora desenhado para controlar populações, não para as servir. Após 1975, mudaram-se nomes e bandeiras, mas manteve-se a lógica de comando: centralização extrema, cultura de segredo, prioridade da obediência sobre a legalidade, e um sistema de “classificação” dos cidadãos entre leais e desviantes. A vigilância capilar nos bairros, os comités locais, as estruturas de mobilização de base e a ligação orgânica entre partido e Estado replicaram, com sinais trocados, o princípio colonial de que a ordem precede o direito. 

Na prática, a segurança continuou a ser pensada como controlo da sociedade (e não como garantia de direitos), alimentando intimidação, autocensura e silêncios, perpetuando a exclusão de vozes dissonantes como ameaça, não como participação legítima. No campo económico, essa captura converteu-se em apropriação: o Estado tornou-se fonte de privilégios privados, e não de redistribuição. O sector privado floresceu apenas como prolongamento do aparelho político, reservado a quem orbitava em torno do poder. Daí resultou uma desigualdade estrutural que persiste até hoje: uma minoria acumula riqueza e influência, enquanto a maioria permanece afastada das oportunidades.

No plano económico, a economia de enclave erguida para servir uma minoria branca — exportações primárias, grandes concessões, mão-de-obra barata e extracção de rendas — foi reciclada sob novas tutelas. A nacionalização transformou o Estado no proprietário universal, mas sem romper a arquitectura extractiva: empresas públicas e paraestatais concentraram activos e decisões em Maputo; licenças, alvarás e contratos tornaram-se filtros de acesso, frequentemente mediados por lealdades partidárias; e as privatizações posteriores converteram património público em património de poucos, consolidando uma burguesia de Estado. As comunidades nos territórios de exploração continuaram a ver a riqueza partir e o desenvolvimento ficar por chegar. Assim, a “independência económica” operou mais como substituição de beneficiários do que como mudança de modelo: a lógica colonial de concentração e exclusão foi mantida, agora legitimada pela retórica nacional, e reproduzida no quotidiano através de preços administrados, monopólios de facto, barreiras regulatórias e dependência do favor político para investir, produzir e competir.

Caminhos para a frente

Se o 7 de Setembro marcou o nascimento de um Estado fundado na exclusão, o desafio de hoje é transformar essa herança em ponto de viragem. O passado não pode ser corrigido, mas pode ser reinterpretado. Pensar o futuro exige mais do que reformas técnicas: exige uma nova configuração do pacto social, substituindo hegemonia por inclusão.

Para valorizar plenamente o 7 de Setembro — não como ritual comemorativo, mas como promessa cumprida — é indispensável romper a lógica de exclusão que o sucedeu; essa ruptura é condição sine qua non para converter a vitória histórica num novo contrato social assente na dignidade e na igualdade de todos. Esse pacto deve colocar o bem-estar colectivo no centro da vida nacional, sem qualquer discriminação racial, étnica, político-partidário ou regional, substituindo a cultura do privilégio pela regra da imparcialidade, a proximidade ao poder (o compadrio) pelo mérito, e a retórica da unidade pela prática diária da inclusão. Significa reconhecer a diversidade como força, garantir acesso equitativo a oportunidades, proteger o espaço cívico e orientar o Estado para servir — e não seleccionar — os cidadãos. Só assim a data deixará de ser ambígua e passará a constituir o fundamento vivo da nossa moçambicanidade, a ética comum que nos une e orienta.

Finalmente, a pequena elite que controla a vida política e económica deste país deve compreender que erros foram cometidos e que “comer sozinhos” não é bom, e insistir nessa prática apenas agravará as consequências. A metáfora do vulcão em erupção ilustra bem a gravidade do momento: ainda é possível mitigar os danos, mas apenas através de medidas urgentes de inclusão e redistribuição.

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