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Virgília Ferrão, a menina grande que brinca de criar mundos

Quando olhamos para Virgília Ferrão temos a impressão de que o tempo não passa para a jovem autora. O seu semblante é o mesmo da menina que, há 20 anos, se refugiou no mundo da literatura. Essa aparência exterioriza o espírito desprendido e sonhador com que vem criando, desde então, de forma bem-sucedida, os mundos encantatórios dos seus livros.

Numa entrevista com Eduardo Quive, ela disse o seguinte: “O meu passatempo favorito era criar outros mundos e depois viver nesses mundos.” Isto é, ficar longe das limitações e pressões da realidade.

Um paradoxo, porque, quando ela queria passar de forma discreta, vivendo nesses outros mundos, os seus livros, que incluem O Romeu é Xingondo e a Julieta Machangane (2005), O Inspector de Xindzimila (2016), Sina de Aruanda (2021) e Os Nossos Feitiços (Ed. I, 2022-Ed. II, 2024), a colocam em destaque entre as novas vozes do panorama literário moçambicano.

A escritora pertence a uma geração que busca, através da arte, reflectir sobre os dilemas do presente e as cicatrizes do passado. Mas ela vai mais além ao propor iniciativas que procuram dar espaço a outras vozes. Disso são exemplos o blog Diário duma Qawwi e a antologia Espíritos Quânticos. Como sinal da sua projecção, tem contos antologiados no estrangeiro e, num outro nível, colaborações que buscam por novos caminhos criativos, como é o caso da ficção especulativa.

Nos seus escritos, Ferrão dá-nos uma imagem actual da sociedade moçambicana, em geral e do vale do Zambeze em particular. O retrato que faz desse espaço rico em mitos e tradições, o chão donde vêm as suas raízes, é marcado por tensão entre transformação e tradição, discurso e realidade, desafios e resiliência. Com isso, estamos perante uma escritora que caminha com o seu tempo.

O Inspector de Xindzimila, seu segundo livro, representa um momento particular da sua carreira. Na conversa com Eduardo Quive, fala deste livro como uma incursão num “género pouco explorado na nossa literatura”, justificando a “ousadia” nos seguintes termos: “Sempre gostei de usar elementos como suspense e mistério nas minhas narrativas.”

A trama gira em torno de Dionísio, protagonista que retorna à sua vila natal, Xindzimila, para assumir o cargo de inspector na área de investigação policial. O início das suas funções é marcado por uma série de assassinatos misteriosos e ressentimentos antigos.

O facto de a estória ser contada a partir da perspectiva dos personagens contribui para a criação de uma atmosfera de introspecção, na qual o leitor, em meio ao escopo temático acima referido, se vê convidado a reflectir sobre temas mais íntimos como inveja, amor e perdão.

A parte inicial do livro fala da chegada de Dionísio a Xindzimila, o ambiente na vila e no seio da família e o reencontro com os amigos depois de muitos anos de ausência. Essa parte serve para preparar o “chão”, o espaço-tempo da narrativa. Até então as marcas do género policial propriamente dito são apenas afloradas por chamadas que o inspector recebe ao telefone, chamadas breves com conteúdo truncado ou não revelado. É quase a meio do romance que as acções com mortes, suspeitas, actividade
detectivesca, confrontos com uso de armas, etc. passam ao primeiro plano. A narrativa adensa, torna-se não-linear, o suspense e o mistério sobem ao clímax.

A publicação de Sina de Aruanda, em 2021 consolida o amadurecimento literário de Virgília Ferrão, com uma proposta que mistura ambientes históricos e contemporâneos para criar um relato de amor, conflito e desafios ambientais que se estende por séculos.

Nesta obra, a narrativa é estruturada a partir de dois enredos paralelos: o primeiro passa-se no século XIX e o segundo no século XXI. No enredo do século XIX,  companhamos a história de Carina de Sousa, uma criada negra acusada de bruxaria, e seu amor proibido com Pedro Lucas, o filho do patrão; no do século XXI, o professor Daniel de Barros e a estudante Maria Cristina empreendem a missão de restaurar uma região ameaçada pela exploração predatória, descobrindo, ao longo do
percurso, que são reencarnações dos protagonistas do passado. Essa dualidade temporal permite uma reflexão profunda sobre os ciclos da história, os conflitos humanos, as questões ambientais e sociais.

Os Nossos Feitiços é uma narrativa em que a autora faz a fusão entre o mundo real e o sobrenatural, expondo a influência das tradições e memórias do passado nas práticas sociais contemporâneas. Em torno da Laila Lubrino, a protagonista e narradora, gravitam acontecimentos, sentimentos e interacções em meio a conflitos.
Quanto à forma, entre O Inspector de Xindzimila e Sina de Aruanda, nota-se uma diferença de registos, que podiam ser vistos como extremos, não fosse o facto de terem aspectos que são comuns. Os Nossos Feitiços situar-se-á entre aqueles dois registos.

Em O Inspector… temos uma escrita profusa; que flui como um rio caudaloso, transportando a matéria em trama. A narração corre na primeira pessoa do singular, numa “fala normal”, desprendida e introspectiva, onde as palavras são apenas acessórios na construção da estória. Já em Sina de Aruanda nota-se mais equilíbrio entre descrição e acção, o estilo é frio e pragmático, mais sintéticos os diálogos, as palavras (as frases) passaram por uma balança, uma tesoura cortou ao texto as rebarbas. Nisso, resulta um registo comparativamente mais enxuto, mais depurado.

A prosa virgiliana não deslumbra tanto pelo arroubo poético, ou pelo engodo da palavra, mas antes cativa pela inventiva, pela capacidade de enredar (ligar as acções num todo lógico), pela subtileza, pelo humanismo dos personagens, pelos detalhes do dia-a-dia, com o atípico a surgir como uma falha abrupta na corrente do que parecia trivial.

Como já dito, um e outro estilo convivem. A autora, que, em nossa opinião, já faz bem o que tem feito, querendo, tem aqui várias opções: privilegiar uma das técnicas narrativas mencionadas atrás, fundi-las numa só ou ainda evoluir para um estilo algo distinto. Seja como for, a nós, no fecho deste pequeno ensaio, resta manifestar a crença de que _ parafraseando Luís Vaz de Camões _ se mais mundos houver por criar, Virgília lá chegará.

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