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Tito Fernandes: O semeador de saberes

Há homens cuja vida se escreve não apenas com palavras, mas com obras que permanecem como árvores frondosas, oferecendo sombra muito depois de terem sido plantadas. O Professor Tito Fernandes é um desses homens. Nesta semana, em que Nampula voltou a debater a desnutrição infantil e a confrontar números alarmantes, com 47% das suas crianças afectadas, tornou-se inadiável e imprescindível revisitar a figura deste Professor e Cientista. Foi ele quem esteve na génese dos primeiros cursos superiores de Nutrição, tanto no Porto em Portugal, nos anos 70, bem como em Nampula, em 2007, impulsionando inúmeras investigações nesta área vital. Na verdade, há um tributo que lhe é devido, pela sua contribuição generosa e discreta às diversas esferas do saber em Moçambique. Tito Fernandes pertence a esse grupo raro de cidadãos que, no silêncio, engrandecem a nação, embora a esfera política tantas vezes tenha dificuldade em identificá-los e reconhecê-los.

Filho de moçambicanos Maximiliano Fernandes e Aninha Fernandes, viu o sol pela primeira vez no hospital S. José de Lhanguene, hoje José Macamo. Nasceu em 1948, no Dia de São Valentim e, ao longo da vida, carregou consigo o espírito de Valentino. Eventualmente, não haja data mais simbólica para um homem assim.

Contemplou as rosas que lhe foram oferecidas e as margens serenas do Índico. Cresceu ao sabor dos ventos de Lourenço Marques, entre bairros que misturavam cores, cheiros e sabores, mas onde já se percebia, com nitidez, a natureza do regime e a presença áspera da ausência de liberdade.

Como todas as crianças de sua idade fez as suas primeiras aprendizagens na escola oficial. Na adolescência, amadurecido pelas experiências e contradições, decidiu dedicar-se ao cuidado da vida, formando-se como médico veterinário. Estas decisões foram, sempre, ponderadas ao nível familiar e serviam de afirmação. O seu pai, regente de uma orquestra juvenil, não se opôs às escolhas do seu filho, o segundo de uma prole de quatro, embora não tenha abdicado do desejo de vê-lo seguir também a carreira musical. Max Fernandes era um homem profundamente comprometido com a música, a que se entregava com fervor. Foi ele o responsável pela criação da Orquestra Cívica de Lourenço Marques e do respectivo Coral Moçambicano. Por conseguinte, Tito Fernandes foi nutrido entre a sonoridade e a melodia dos sonhos mais clássicos, e a exigência da mocidade e religiosidade portuguesa.

Fez parte dos primeiros grupos de estudantes de cor a ingressar e a percorrer o seu caminho académico nos então Estudos Gerais Universitários de Moçambique, instituição que mais tarde se converteria na Universidade de Lourenço Marques, marco fundamental na consolidação da estrutura universitária em Moçambique. A exuberante fauna selvagem, diversidade de espécies e sua distribuição pelos diferentes ecossistemas, foram terreno fértil para o convencer a seguir por uma área que prometia e atraía jovens curiosos. Analogamente, beneficiou das influências de Armando Sá Rosinha, Jaime Travassos Dias, José da Costa, Raul Machado, e outros, que se impregnaram no horizonte juvenil das famílias da época. Cuidar da fauna selvagem parecia uma obsessão e veterinária era o caminho óbvio.

Todavia, a sua curiosidade e sede de conhecimento não conheceram fronteiras. De família de classe média, cujas origens eram Goa, não tardou que tivesse seguido para a capital da metrópole, Lisboa, para terminar os seus estudos e iniciar a sua pós-graduação. Esta foi a janela que permitiu que ele tivesse abraçado e acumulado outros saberes, os quais levaria sempre consigo, de volta ao seu lugar de origem, mas, principalmente, às universidades onde esteve filiado.

Fez o mestrado e doutoramento na cidade fria e chuvosa de Newcastle, Reino Unido, trajectória lhe valeu uma oportunidade para obter uma bolsa de estudos do conceituado British Council.

Uma das frases marcantes do Professor Tito Fernandes teve mesmo a ver com a vontade de estudar e a sua habilidade de pesquisar. A seu ver, a investigação científica podia nascer de qualquer tema, de qualquer ponto de partida, por mais remoto que fosse. O essencial, repetia, era o método, a energia aplicada e a capacidade de construir, a partir de um tema, as premissas que sustentam uma reflexão rigorosa.

Nacionalista desde a juventude, partilhou sonhos e convívios com outros grandes nomes da libertação de Moçambique. Conheceu a família Honwana, o Luís Bernardo e a Gita; privou com amigos e familiares de Óscar Monteiro, e esteve com Graça Machel, em Londres. A lista parece longa, uma espécie de cartografia e um testemunho do seu tempo; personagens matrizes da cultura e responsáveis pela nossa liberdade. Muitos destes concidadãos, os quais se tornaram revolucionários, tiveram a oportunidade de fazer os estudos em Lisboa e, embalados pelos ventos das mudanças, fizeram dessa cidade a placa giratória e o trampolim para países como Espanha, Franca, Suíça, etc., e se juntaram aos restantes que viriam a compor a espinha dorsal das lutas de libertação, dos nossos actuais Estados, agora cinquentenários. Esta clandestinidade silenciosa, porém persistente, foi crucial para a difusão de ideias de resistência e de liberdade e para a desestabilização do poder colonial.

O comprometido Professor Tito Fernandes fez parte do grupo que optou por uma luta mais silenciosa, mas não menos valiosa. A luta pelo saber, pela dignidade da ciência, pelo desenvolvimento do seu povo através da educação e da pesquisa. Ainda assim, mesmo no recato da academia, a clandestinidade permitiu a distribuição de panfletos, materiais de propagandas que denunciavam a censura, a repressão e a falta de liberdades políticas. Esta foi a luta contra a indignidade e, por vezes, bem menos visível e sujeita ao vexame do alheamento. Mas esse alheamento, seja ele individual ou colectivo, nunca foi sinónimo de omissão ou desmemória, pois a história, quando se recusa a esquecer, resgata e consagra.

Em Portugal, construiu uma sólida carreira académica, alcançando o mais alto grau da docência e tornando-se numa referência incontornável no campo das ciências veterinárias. Contudo, um leque mais amplo de cursos e oportunidades levou-o a aprofundar estudos em nutrição, especificamente nutrição humana. Esta tornou-se a sua verdadeira paixão, fruto da convicção de que o ser humano pode ser mais diligente, ter uma alimentação mais assertiva e mudar o cenário do opróbrio do descaso. Certamente, nunca esqueceu Moçambique, onde deixou a sua marca mais profunda na área de nutrição, razão pela qual, qualquer debate nos remete à sua colaboração e escritos. Em Moçambique, apesar dos esforços e das políticas dos sucessivos governos, persistem níveis alarmantes de desnutrição, decorrentes tanto de problemas relacionados à segurança alimentar quanto da disponibilidade insuficiente de géneros alimentícios.

Na Universidade Lúrio, em Nampula, o professor Tito Fernandes foi pioneiro e pilar fundamental para o debate sobre nutrição, ao mesmo tempo que ajudou os jovens docentes e pesquisadores a enquadrarem melhor a sua abordagem. Durante anos, foi o único catedrático, responsável por formar quadros e consolidar uma instituição que procurava se afirmar no panorama científico nacional e regional, ao mesmo tempo que emprestava a região Norte uma oportunidade de estudar as suas próprias potencialidades e oportunidades. Fez parte em Pretória do ICSU/ROA, Escritório Regional para a África do Conselho Internacional para a Ciência, em representação de Moçambique.

Graças à sua contribuição, os cursos de Nutrição tornaram-se pilares do ensino superior na região norte e em todo o país. Hoje, dezenas de profissionais formados sob sua orientação estão espalhados por todas as províncias, actuando em hospitais distritais e provinciais. Foi um dos maiores entusiastas na defesa de uma abordagem inovadora para a nutrição no norte de Moçambique, orientando centenas de estudantes e transformando-se, para muitos, num mestre e exemplo a ser seguido.

Plantar é um acto de paciência e uma acção que dá fôlego ao planeta. Estudar tem os mesmos contornos. Recordava, com frequência, que sua passagem pela Escola Superior de Medicina Veterinária, em Lisboa, lhe ensinou a plantar, na própria mente, a importância do ensino ao longo da vida. Para ele, estudar era mais do que plantar, significava colocar na cabeça de todos as sementes da mudança. Assim resumiu o tempo que passou pela Universidade Técnica de Lisboa, onde assumiu diferentes posições na carreira docente e chegou a Director da Faculdade. O actual Reitor da Universidade de Lisboa, foi seu aluno e assistente durante toda a sua carreira.

Chega a titulação e a cátedra no final dos anos 70, depois de um período intenso de trabalho e de ter incentivado várias pesquisas e o surgimento de um novo conjunto de pesquisadores para a própria faculdade e para o país. Tito Fernandes a simbiose perfeita de uma emergente investigação académica que tinha de se afirmar e, da necessidade crescente de deixar uma marca indelével numa academia portuguesa em transformação, que se democratizava e ganhava novos contornos e pergaminhos. O ensino superior em Portugal tinha apenas seis universidades, composto principalmente por escolas técnicas, estas últimas com foco em áreas especificas de conhecimento.

O período correspondia a própria transição política que influenciou o desenvolvimento do ensino superior. Moçambique já era independente e Tito Fernandes não regressa de imediato. Muitos dos antigos colegas com quem estudara em Lourenço Marques, abandonam a cidade e a convulsão política empurrou-os para longe do jovem país independente. Reencontrou alguns desses antigos companheiros e foi testemunha do nascimento de novas universidades e institutos politécnicos. Ainda assim, nunca perdeu de vista o desejo de regressar à sua terra e contribuir para o fortalecimento do sistema universitário moçambicano.

Enquanto isso, apoia na estruturação e no engrandecimento da Ordem dos Médicos Veterinários de Portugal, tendo sido Bastonário, ajudando a dar corpo a uma instituição indispensável para a regulação e a dignidade da profissão. Assumiu um papel central nesse processo, e os doze anos que passou à frente da Faculdade de Medicina Veterinária, aliados à sua colaboração próxima com a Ordem, abriram-lhe as portas da Europa, onde colabora com a Comissão Europeia, sendo Conselheiro Oficial em Nutrição durante 15 anos e como Membro do Comité Científico da EFSA-European Food Safety Authority.

A sua produção científica é impressionante. Desde esse período e até ao presente ele escreve e virou co-autor de mais de 300 artigos publicados nas mais variadas revistas científicas indexadas. Os destaques vão para o European Journal of Agriculture and Food Sciences; Foods; Nutrients; J Applied Science; J Pediatrics & Pediatrics and Medicine; Oncotarget; Fermentation; Revista AULP; EC Nutrition, e muitas outras. Analogamente, virou autor de mais vinte e sete (27) livros técnicos e científicos.

Ao longo da carreira científica e profissional foi outorgado com nada mais e nada menos que seis (6) títulos de Doutor Honoris Causa, atribuídos por universidades Europeias da Roménia, Bulgária, Eslovénia, Macedónia, bem como títulos Honoríficos de Espanha e Brasil, em reconhecimento ao seu imenso contributo ao conhecimento científico, inovação na pesquisa e ao firme contributo de formação de jovens. Mas estes títulos honoríficos tem um outro valor, reconhecem essa personalidade eminente, por se destacar, singularmente, pela contribuição à cultura e a Humanidade.

Diz um provérbio africano que “quando a árvore envelhece, ainda dá sombra”. E assim ele continua a oferecer sombra e frutos. Já na recta final de uma ventura carreira, em Lisboa, regressa ao seu Moçambique, cidade do Maputo, para estabelecer vínculos com a sua instituição de formação inicial, a UEM. Era uma formalidade quase desnecessária, pois, jamais deixara de colaborar com diferentes académicos e pesquisadores, para além de facilitar a vinda de muitos destes para Portugal. Todavia, as burocracias locais, apenas, permitem que estabeleça contractos de curta duração e, participa de coração aberto e entrega total em diferentes júris de doutoramento, orienta investigadores e colabora activamente com diferentes instituições que solicitam seu saber e experiência.

Esta passagem por Moçambique permite que seja eleito para a Academia Africana de Ciências, partilhando a sua sabedoria em Nutrição com as novas gerações. Para além de ser um dos raros moçambicanos, ou mesmo único, a integrar esta Academia Africana de Ciências, Tito Fernandes assumiu múltiplas responsabilidades na coordenação.

Foi igualmente determinante no processo de oficialização da Ordem dos Médicos Veterinários de Moçambique, ao abrigo da Lei n.º 13/2011, contribuindo decisivamente para o fortalecimento da profissão no seu país natal. Trouxe consigo a experiência acumulada ao longo dos seis anos em que presidiu a Associação Europeia de Estabelecimentos para o Ensino Veterinário (EAEVE), que congrega mais de cem universidades europeias, e da qual viria a tornar-se Presidente honorário.

A filosofia popular lembra-nos que “o rio não bebe a sua própria água”. O Professor Tito Fernandes sempre entendeu o saber como um bem comum, e a sua vida foi dedicada a irrigar mentes e comunidades com o que aprendeu e pesquisou. O seu exemplo confirma ainda que “quem planta tâmaras não come os frutos, mas deixa-os para os filhos do amanhã”.

De Maputo a Nampula foi um desafio circunstancial e um convite improvável. Existia um projecto em criação e muitos sonhos de jovens que procuravam sua afirmação. Esta proposta o cativou, mesmo sabendo que seria difícil fazer a mobilidade e se estabelecer distante da cidade capital. A Universidade Lúrio era incipiente e tudo ainda precisava ser criado, estruturado, afirmado. Faltavam instalações adequadas e programas cuidadosamente definidos. Era como mergulhar num mar de incertezas. Fez as viagens iniciais para entender o tamanho do desafio e mesmo municiado de um manancial epistemológico aceitou com reservas. Depois, decidiu colaborar e assumir o projecto de formação universitária em áreas de saúde, no Norte do país, nas províncias mais populosas e com enormes recursos naturais e sem capital humano.

Ele foi um dos pilares da criação e estruturação da Universidade Lúrio, em Nampula. Durante anos, foi o único Catedrático da instituição, ajudando a fundar o primeiro curso superior de Nutrição do país e liderando a Direcção Científica. Participou de conselhos e foi ele próprio, um conselheiro indispensável. Era-o nas palavras escritas e nas entrelinhas dos seus comentários, nos gestos comedidos, na sua forma discreta de estar e de ser. Era-o quando sorria sorrateiramente, quando recomendava prudência aos colegas mais ávidos em resolver tudo de uma única vez. Era-o quando se entregava às visitas aos bairros e quando recebia visitantes de outras universidades, naquele inglês que a todos superava. Professor Tito deixou a marca de um homem genuíno, astuto, desenvolto, sagaz, que nos iluminava com algo que não sabíamos discernir, mas sabíamos que nele havia uma luz.

Nampula permitiu-lhe adquirir uma casa na Ilha de Moçambique. Uma casa de veraneio, sim, mas também um reencontro com a natureza que sempre amou e admirou. A Ilha, outrora primeira capital de Moçambique e insubstituível mosaico de influências culturais, degradava e perdia muito do seu brio. Daquele imaculado ponto de encontro de rotas comerciais e culturais, que outrora facilitava a interacção entre diferentes povos, sobravam os resquícios de uma capital que virava uma imagem apagada de tanta história e gloria.

Ainda assim, a Ilha ofereceu-lhe um refúgio idílico por onde reencontraria a paz no sabor das brisas do Índico. O clima o apaixonou e as gentes o enfeitiçaram. Reencontrou a fortaleza de São Sebastião, entendeu melhor a cidade de Macuti e encontrou espaço para repensar a universidade. Algumas vezes, a sua esposa teve a oportunidade de mergulhar e explorar as dezenas de navios submersos na Baía e os seus tesouros que ficaram nas profundidades e entranhas de um mar de tantas histórias.

A Ilha revelou um lado íntimo e humano que o complementa e rejuvenesce. Sem se aperceber retoma o gosto especial pela música local, o Tufo, e a música clássica do seu pai e dos amigos de juventude com quem tocou e fez todos os acordes e melodias. A paixão pelos sons, a fusão do momento e do tradicional o transportam para recordações juvenis. Mas a Ilha é assim: vive de encantos e mistérios. Não por acaso foi chamada de Ilha dos Poetas, e Licínio Azevedo a nomeou, com justeza, Ilha dos Feitiços.

Para um antigo violinista que conserva essa delicadeza na alma, os sons métricos da percussão o enfeitiçaram de forma infinita. Escrevi, certa vez, que na sua propagação as ondas cantam a história da Humanidade, os sonhos de um povo, os gritos dos escravizados e a fantasia das sereias. O mar veste-se a rigor e comunica. Explica aos insulares o sentido da musicalidade, e aos continentais, que toda a vida terrestre depende do mar. As ondas, vaidosas, fazem a comunicação mais eficiente e nítida que conhecemos. A vida é uma onda.

As memórias o transportam para o coral moçambicano da catedral de Lourenço Marques, inaugurado, em 1944, pelo Cardeal Cerejeira. O seu pai, Maestro Max Fernandes, igualmente, se dedicou a música e ensinou dezenas de jovens a tocar diferentes instrumentos musicais. Os ritmos do Tufo transportaram-no de volta a essas memórias, fazendo da ilha tanto um repositório de lembranças quanto um espaço para suas críticas à falta de uma política consistente de incentivo cultural nos governos descentralizados.

Nampula propiciou a abertura de portas para os jovens docentes que procuravam formação. Muitos deles de uma raiz humilde, mas todos extraordinários e comprometidos como sempre defendeu. Os programas com a comunidade circunvizinha, pois o campus estava alguns quilómetros fora da cidade, em Marrere, e abertura de outros campi no Niassa, Wannagu, e Chuiba em Pemba, Cabo Delgado, foram um novo atractivo para quem já tinha feito e visto de tudo um pouco. Bebeu da cultura local e saiu para rua com ouvidos de escutar e aprender. Poder ver fruta fresca em cada esquina e imaginar que ninguém consumia e só servia para revender, era inconcebível.

Numa das cerimónias de abertura do ano académico, que no ensino superior moçambicano parecem já ter se tornado rotina, tivemos a honra de receber o antigo Chefe de Estado de Cabo Verde, ninguém menos que o Comandante Pedro Pires. Embora marcado pelo peso dos anos, conservava uma lucidez impressionante ao abordar os temas, cativando a atenção e o interesse de todos.

Professor Tito foi um dos escolhidos para o acompanhar pelas voltas a cidade e a região. Foi um momento mágico para ele, reencontrar alguém que já havia seguido de longe, nos tempos em que ambos viviam em Portugal, mas com quem ainda não havia tido a oportunidade de conviver pessoalmente. Juntos, viajaram para Pemba e depois para a Ilha de Vamizi. Um momento para experimentarem as límpidas e sempre quentes águas do Indico e da Biodiversidade que se estendia por uma costa azulada e de areias límpidas. Um encontro para lá de profissional que retomou tantos episódios e narrativas de percursos libertadores e democráticos.

Professor Tito Fernandes explicou, com orgulho, da funcionalidade dos seus laboratórios, em Nampula, que testavam os níveis e teores de aflatoxinas, substâncias toxicas produzidas por fungos, que contaminavam alimentos como milho, feijão, mandioca e amendoim. Esses laboratórios realizavam análises para avaliar os níveis de contaminação. Contudo, Nampula, embora sempre considerada um celeiro agrícola, nunca conseguiu nutrir adequadamente sua população. Ao contrário, repetidas vezes, deixou seus habitantes à mercê de uma pobreza extrema e de níveis inconcebíveis de desnutrição crónica e aguda, especialmente entre as crianças. Esses resultados reflectem os vestígios de modelos e práticas baseados na monocultura, mercados distorcidos e a flagrante ausência de educação alimentar e nutricional. Os cereais e as oleaginosas serviram os revendedores e nunca os produtores.

A cidade de Nampula, com o apoio de universidades da Europa e da América Latina, acolheu os dois primeiros congressos internacionais dedicados à nutrição humana e às estratégias para reduzir a desnutrição crónica e aguda que afecta mais de 50% das crianças em diversos distritos. Faltava proteína animal e vegetal, escasseavam as vitaminas e as lições não foram apreendidas e nem os ensinamentos captados.

Retomar esses debates quinze anos depois provoca angústia e nostalgia. As estatísticas terão de ser melhores, defende ele com convicção. O trabalho dos jovens nutricionistas melhorou as práticas e os modelos antes adoptados. Nesta área, ele se revela não apenas um especialista ostensivo, mas também um orador desconcertante. Na realidade, bem mais que um conhecedor, ele pode ser, também, instigador.

No sossego de Sintra, onde as energias para grandes deslocações já não abundam, permanecem as preocupações de ler teses e dissertações, acompanhar as notícias e publicar. Mergulha em tudo que diz respeito a Moçambique, escuta atentamente os boletins noticiosos e comenta as principais decisões políticas. Entre o vasto repertório acumulado e o constante referencial teórico, mantém-se atento e perspicaz nas suas análises.

Com a sua esposa Avril, britânica, com quem partilha a vida, tem, nas suas duas filhas, o suporte teórico para unificar a práxis e teorizar sobre as ciências e políticas. Com as três netas que herdaram o brilho do seu olhar curioso, ele reencontra os segredos para a longevidade e para reaprender do ensinamento infantil aquilo que o mundo adulto esconde. Sintra parece outra metade da Ilha de Moçambique, onde vive momentos serenos e inesquecíveis com a família, entre histórias e memórias.

O Professor Tito Fernandes vive com a convicção de que seu conhecimento é um bem a ser compartilhado, tenho dito. A sua vida confirma ainda que os frutos não precisam de ser comidos hoje. Hoje celebramos a sua longa carreira, não apenas como um percurso pessoal de excelência, mas como um legado colectivo. Um homem de ciência, de causas e de afectos, que semeou saberes com generosidade e coragem. Um Professor que acredita no amanhã e, por isso, nos ensina que o verdadeiro mestre nunca deixa de aprender, nem de partilhar. Que continue a dar sombra e frutos, como as grandes árvores do seu Moçambique. (X)

 

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