Se estivesse viva, Noémia de Sousa completaria, hoje, 95 anos de idade. 20 de Setembro é importante por isso e, também, porque foi nesse dia que a Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO) finalmente editou Sangue negro. Reconhecendo a importância da obra literária e do grande feito de Nelson Saúte, Fátima Mendonça e Francisco Noa, na edição da obra, esta segunda-feira, o jornal O País revive uma escrita e uma voz importantíssima para Moçambique.
“Noémia de Sousa não é apenas uma grande dama da poesia moçambicana. É, também, uma grande dama da poesia africana em língua portuguesa, tendo em vista sua voz ardente ter ecoado por diversos espaços e compartilhado seu grito com outras vozes, em prol dos que lutaram e clamaram pela liberdade dos oprimidos, entre os anos 1940-1975, no contexto do colonialismo português”. Assim inicia o prefácio da versão brasileira (Kapulana – 2016) de Sangue negro, assinado por Carmen Lucia Tindó Secco. A afirmação da professora brasileira resume a posição defendida por Teresa Manjate, professora de literaturas africanas de língua portuguesa, nesta ocasião em que se celebram os 20 anos de um livro que é parte de Moçambique.
Teresa Manjate conheceu Noémia de Sousa em Lisboa, em 1988, quando lá se encontrava a estudar. Mais tarde, já em Maputo, a professora universitária organizou uma conferência com a “mãe dos poetas moçambicanos” no Camões. Na poeta, Teresa Manjate reconhece uma figura incrível, combativa, importante para vários movimentos literários dos anos 40 do século passado a esta parte, conforme também defende Secco. Entretanto, ainda que a sua obra continue com eco em Moçambique, alimentando a alma de todo um povo, Noémia de Sousa é uma figura pouco conhecida com profundidade. Por isso mesmo, um dos projectos que Teresa Manjate tem é produzir uma biografia detalhada sobre Noémia de Sousa, de modo que os moçambicanos a possam conhecer ao pormenor. “Apesar desta dinâmica à volta do pensamento de Noémia de Sousa, eu penso que falta uma coisa: uma trajectória bem desenhada, uma biografia profunda de todo o percurso desta senhora que foi poetisa, agora diz-se mais poeta, tradutora e jornalista. Nós vamos conhecendo fragmentos desta vida tão forte e tão dinâmica”.
Dito isso, a professora de literaturas africanas de língua portuguesa revelou a novidade. Eu não sei se deveria guardar como surpresa para quem quer seja, mas eu estou a pensar seriamente em fazer uma biografia, seguindo a trajectória desta escritora, não só por causa da escrita, mas por causa da dimensão do trabalho que ela fez em torno da palavra, do pensamento e da ideia de resistência. É todo um percurso tão cheio, tão vivo, que muita coisa se nos escapa. Há muita coisa que nós não temos acesso porque nos circunscrevemos muito a Moçambique. Há toda uma trajectória que é importante que se siga, que se pensa e se reflicta”.
Teresa Manjate pensa em Noémia de Sousa, igualmente, como uma das primeiras escritoras moçambicanas que fez a ponte entre a imprensa e a literatura, com colaborações em Moçambique, Portugal ou Brasil.
Carolina Noémia Abranches de Sousa nasceu no dia 20 de Setembro de 1926, na Catembe, Lourenço Marques, hoje Cidade de Maputo. Começou a ler aos quatro ou cinco anos de idade e aos 16, quando morreu o pai, passou trabalhar para ajudar na educação dos irmãos. A essa altura, passou a estudar Comércio à noite. “A combatividade poética e política de seus poemas, assinados com as iniciais N. S. ou com o pseudónimo literário Vera Micaia, acarretou à autora o exílio. Junto com João Mendes e Ricardo Rangel, foi presa por atacar, frontalmente, o sistema colonial português em Moçambique”, escreve Carmen Lucia Tindó Secco no prefácio da edição Kapulana de Sangue negro.
Na introdução da primeira edição de Sangue negro, editada a 20 de Setembro de 2001, Nelson Saúte conta como foi editar a obra que hoje, certamente, é uma das grandes referência literárias de Moçambique:
“A primeira vez que aterro em Lisboa, cometo a ousadia de telefonar à Noémia. Levava comigo o seu número de telefone, dado pela Fátima Mendonça. Começa tudo aí, nesse encontro em Algés, festejando a nossa independência – era Junho! –, comendo feijoada e lendo Carlos Drummond de Andrade. Nos anos que em Portugal errei como estudante, fui visita constante de Noémia de Sousa. Hoje, quando lá vou, não posso regressar sem a ver.
Em todos estes anos insisti, como o fizeram muitos, na edição dos seus poemas.
Noémia arranjou todos os subterfúgios, mas há alguns anos, depois de ter recusado convites de Manuel Ferreira, Michel Laban, entre outros, ela acedeu publicá-los.
Houve diversas iniciativas para o fazer através da Associação dos Escritores Moçambicanos, a que estiveram ligados primeiro Rui Nogar e Calane da Silva, depois Leite de Vasconcelos com Fátima Mendonça e Júlio Navarro.
Não se concretizaram essas iniciativas (tratava-se, sobretudo, de fixar o texto definitivo e obter assentimento da poeta em publicar), mas Noémia reconheceu finalmente que a sua modéstia não deveria constituir impedimento para a publicação do livro – o que para muitos permanecia inexplicável – e confiou-me a grata tarefa de organizar a edição do mesmo.
Na altura, Rui Knopfli – foi Noémia de Sousa quem mo apresentou, em 1989, tantas vezes confidenciei a minha admiração por ele! – ficou encarregado do prefácio. Knopfli exilou-se definitivamente deste reino sem ter escrito o texto.
50 anos depois do abandono da escrita, temos o beneplácito dos deuses e este Sangue Negro é finalmente editado. Noémia de Sousa não o releu, nem o corrigiu, tendo concordado que os poemas permaneceriam na versão (original) policopiada, que se encontra depositada no Arquivo Histórico de Moçambique, devendo apenas ser actualizada a respectiva ortografia”.
Além da edição da AEMO, Sangue negro foi editado pela Marrinbique, em 2011. Com efeito, hoje, precisamente, passam 20 anos desde que Nelson Saúte, Fátima Mendonça e Francisco Noa conseguiram finalmente reunir os textos de Noémia de Sousa, escritos entre 1948 e 1951. A “mãe dos poetas moçambicanos” morreu a 4 de Dezembro de 2002, em Cascais, Portugal.