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Se nós pararmos, eles vão parar?

“Superioridade ou inferioridade?

Porque não tentar tocar o outro, senti-lo e descobrirem um e outro”

Frantz Fanon

“Se nós pararmos, eles vão parar?” Eis a questão hipotética dos que combatem o terrorismo e são combatidos pelo terrorismo. Quanto mais se pensa que se avançou consideravelmente na eliminação de grupos terroristas, mais cedo ou mais tarde, células de terror voltam a reproduzir-se com fim de continuar a infernizar os velhos inimigos dos seus ancestrais. Os laços de amizade, de parentesco e, ou, de lealdade são as mais inabaláveis garantias de que o nosso projecto poderá ser continuado breve ou tardiamente pelos próximos, após o nosso fim energético ou existencial.

Esse espírito de promessas implícitas nas relações humanas também está presente em organizações terroristas movidas fundamentalmente pelas ideias. Na luta contra o terrorismo, a morte dos supostos jihadistas passa a ser um objeto de vingança dos terceiros. Ou seja, basta o assassinato de um pai amado para o filho entregar-se à sua vingança. Se não é o filho, é o irmão. Se não é irmão, é o sobrinho. Se não for um sobrinho, poderá ser um amigo ou um admirador que vai procurar vingar-se ou continuar o projecto do seu ídolo. Tratando-se de uma célula terrorista por eliminar-se, quantos filhos, irmãos, sobrinhos e amigos terão de ser mortos para erradicar-se a organização, lembrando que as vítimas mortais, por sua vez, têm filhos, sobrinhos e amigos dos amigos?

A caça a uma cadeia toda de inimigos em busca de eliminar-se o terrorismo tem uma implicação grave que é de destruir uma parte imensurável da humanidade, pois o homem, terrorista que seja, é um ser sujeito a relações, logo que chega ao mundo. E enquanto o homem mantiver o compromisso com a reprodutividade da espécie, a humanidade estará ligada por laços. Dai que combater células de terrorismo implica declarar guerra uma parte imensurável da humanidade. Mas o mesmo ocorre quando são as células terroristas a banalizar o mal no território dos inimigos. A luta torna-se inexaurível. Em cada civil inocente morto nasce um amante que lhe quer vingar. O amante pode ser um filho, primo, irmão, amigo, sobrinho, pai, etc. Tudo indica que “sangue derramado não seca, nunca”. Ele só faz germinar continuamente sementes de vingança e ódio a estilo da Hidra de Lerna que, quando lhe é cortado uma cabeça, em substituição, crescem-lhe duas. O movimento de solidariedade “Je suis Charles Hebdo” aplica-se a esta ordem de ideias, pois quando os terroristas pensavam ter eliminado cabeças do jornal satírico francês, pouco depois, o mundo ergueu-se como Charles Hebdo.

São dois factores que podem levar o homem a continuar o projecto do mártitr: a ideologia ou o amor. A ideologia como doutrina que visa explicar o passado, o presente e desvendar o futuro mostra-se um sistema capaz de oferecer salvação e felicidade aos seguidores. Quanto ao amor, quando o seu objeto deixa de existir, é capaz de transformar o amante num instrumento de ódio e vingança. Os dois factores tornam-se razões suficientes para o engendramento dum círculo vicioso de vingança dentro do quadro da luta contra o terrorismo. Células terroristas no Médio Oriente podem estar a reproduzir-se ou fortificar-se pelo número de homens que ou acreditam na ideologia do grupo ao ponto de sacrificar as suas vidas ou porque veem o grupo como um meio para vingar os seus entes queridos em guerras passadas e não ultrapassadas.

O que devíamos aprender dessas histórias de luta contra terrorismo é que o espírito de violência consiste em reproduzir mais violência. E o espírito de violência afigura-se-nos fatal, quando concordamos com Frantz Fanon que entende que tudo que é gerado pela violência é só pela violência que pode ser destruído, apoiando-se, sobretudo, em factos da luta contra o colonialismo. Em outro ponto de vista diferente, Hannah Arendt avança a esperança de que só o perdão é capaz de desfazer o círculo vicioso de violência. O perdão como uma decisão de olvidar as mágoas e reiniciar a construção do que estava perdido deve-se afigurar incondicional na relação entre o ofendido e o ofensor. Caso condicional, deixa de ser perdão e torna-se ou vingança ou castigo. A relação entre perdão e vingança é de oposição, porém, quando se trata de castigo, este deve ser visto como alternativa conciliatória do perdão. Enquanto quem se vinga deseja satisfazer o seu ódio pelo sofrimento de outrem, quem procura castigar o opressor deseja reabilitar o indivíduo das suas acções. Ou seja, na vingança, o intento é de destruir o outro na pior medida, desconsiderando totalmente possibilidades da sua regeneração, diferente do castigo que se afigura um meio de o indivíduo expiar os seus males – é, unicamente, por este fim que foram criados os centros de prisão civil. A esperança de que os indivíduos venham a redimir-se dos seus erros é a razão suprema da existência das cadeias civis. A redenção é também a meta do castigo. Pode dar-se o caso de o ofensor convencer-nos de estar arrependido dos seus erros ao ponto de justamente aplicarmos o perdão, ao invés do castigo que se torna desnecessário, salvo quando prevalecem questões de indemnização.

Nesta ordem de ideias, toda a punição dada a um já redimido configura-se como um acto de opressão sádica. E todo o acto vingativo dispõe desse carácter sádico por não mais atender o fim de reabilitação do indivíduo. Todavia, há certos crimes que por se mostrarem tão atrozes e premeditados não mais nos permitem vislumbrar a reabilitação do delinquente. Nesses casos, os sistemas judiciários optam pela prisão perpétua ou pena de morte. Retomando a questão-mor “se nós pararmos, eles vão parar?”, a resposta afigura-se-nos um impasse entre os terroristas e os anti-terroristas por várias razões intrínsecas ao próprio conflito. Os terroristas movidos pela ordem religiosa que manda converter ou matar todos os infiéis, ainda que os anti-terroristas declarem trégua, estes são incapazes de parar até execução da sua missão. A única forma menos violenta de faze-los parar de cometer esses actos macabros seria a desconstrução invalidatória da escritura sagrada, sobretudo, no mandamento mortífero. Caso contrário, a guerra é inevitável. E para os terroristas movidos por questões político-económicas, a trégua passa pelo diálogo virado a programas políticos de inclusão económica. Quanto aos terroristas movidos pela dor de perda dos entes-queridos, o trabalho de paz deve ser feito num sentido fazer-se justiça ao passado e, quando convier, exercer-se o perdão sem se prescindir das indemnizações.

Todavia, dá-se casos em que os indivíduos mostram-se relutantes para ceder os seus interesses, mesmo estando cientes da insensatez das suas causas. Nestes casos em que o mal não mais resulta da falta do conhecimento, o único remédio afigura-se a guerra. É uma desoladora conclusão, mas necessária, dando a entender que ainda que seja pela negativa, a guerra faz parte da condição humana. Desde os primórdios que os homens fabricam a sua própria destruição, vencendo sempre os que dominam a arte da guerra. O maior desafio que se coloca à humanidade em geral para evitar-se cada vez mais conflitos no futuro deve ser uma educação cujo foco é a consciência planetária. Na medida em que decidirmos ser mais cosmopolitas e pensar menos em nossos interesses locais e egocêntricos, menos guerras irracionais registaremos num mundo que nos pomos a construir.

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