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“Se escrevermos a pensar nos prémios acabaremos por ser pessoas frustradas” diz Marcelo Panguana

Estava à espera desta distinção, com o prémio José Craveirinha? Como se sentiu depois que foi galardoado?

Eu acho que os prémios, sejam eles quais forem, de música, de literatura, de dança, são um acidente agradável no nosso percurso. Eu seria injusto se dissesse que não foi agradável receber este prémio. Há um conceito que é muito falado ultimamente, da espera. Os prémios não demoram, eles chegam quando devem chegar. Demoram quando nós esperamos por eles, e eu não escrevo para os prémios. Eu escrevo com uma intensidade interior, como uma forma de catarse, eu escrevo para aliviar-me dos fantasmas que me perseguem, escrevo por vários motivos, mas não escrevo para ganhar prémios. É verdade que os prémios dão uma certa estabilidade. Fazemos de conta que somos ricos, podemos levar a nossa esposa a passear nos melhores lugares, podemos deliciar-nos, observar as melhores praias, comer um bom camarão e afastar-nos do dilema das facturas de água e da luz por algum tempo. Dão essa estabilidade financeira, aliás, a estabilidade financeira é muito importante para um escritor, porque dá uma certa tranquilidade para nos metermos em outras aventuras literárias.

 

Já tem planos com outra quantia que receber após esta premiação?

Eu não tenho planos, absolutamente nenhum. Como disse, a minha condição de escritor tem outros objectivos, como melhorar, em termos de memória, porque escrever é um acto de memória. Escreve-se para se reterem algumas coisas que acontecem na nossa sociedade. Eu escrevo para reter estes grandes dilemas que a sociedade vive, e é isso que me interessa; não estou muito preocupado com valores materiais, embora reconheça que o dinheiro faz falta. É o dinheiro que move o mundo, mas não penso nisso, naquilo que vou fazer. ainda não me sentei com a Helena para discutir estas questões, o que nós vamos fazer com o dinheiro. Nós estamos preocupados com o significado do próprio prémio. Vai abrir-me portas que vão permitir que eu seja capaz de prosseguir nesta viagem da escrita, publicar mais livros, ser entrevistado para falar do meu país, da Literatura Moçambicana, para falar da importância da literatura no processo histórico do meu país.

É galardoado, aos 72 anos, com o maior prémio literário e cultural do país. Qual é o seu sentimento real em relação a esta premiação?
Eu amo muito a coragem do júri, por ter tido a ousadia de me indicar como vencedor do Prémio José Craveirinha, considerando que havia outros candidatos, com iguais possibilidades de ficar com o prémio. Mas eles entenderam que devia ser eu, eu agradeço aqui, publicamente, ao júri. penso que, no fundo, é uma espécie de pagamento que se dá a uma geração a que pertenço, uma geração que, logo após a independência nacional, teve a coragem de criar novas fórmulas e formas de fazer literatura e ao longo longo dos anos que se seguiram à independência, nos fomos escrevendo, fomos abrindo novos caminhos através dos quais muitos outros que nos seguram percorreram. Portanto, este prémio é um pagamento a uma geração lutadora e, sobretudo, uma geração cheia de talento.

Este prémio chegou à hora certa ou demorou a chegar, para si?
Os prémios chegam à hora que eles acham que devem chegar. Como eu disse a princípio, quem espera por prémio, às vezes se desespera, e um escritor não está para isso. Eu não estou para prémios, estou para outros valores que guiam a minha actividade. Como escritor, há muitos valores que me guiam, não só prémios, mas sejam bem-vindos os prémios, tudo aquilo que ele comporta. Sinto-me bastante satisfeito.

Sente que este prémio coloca mais pressão sobre o seu trabalho, que o obriga a ter de produzir mais ou nem por isso?
Obviamente que me coloca mais pressão. A responsabilidade é maior; a sociedade olha com muita expectativa e com curiosidade aquilo que Marcelo Panguana faz, escreve e diz. Penso que é uma grande responsabilidade ter nos ombros um prémio desta dimensão. Mas eu vou continuar a fazer aquilo que eu sempre fiz, que é procurar a qualidade nos meus escritos, superar-me e trazer uma coisa nova, sobretudo, aquilo que eu acho que é moçambicanidade, porque qualquer expressão artística, do meu ponto de vista, só se afirma quando ela detém esse elemento extremamente importante, que é a originalidade, neste caso, a moçambicanidade literária.

Disse, numa entrevista a uma revista, que tem medo de escrever “maus livros”. Como descreve esses livros e como faz para se superar a cada criação?
Eu falo de “maus livros” como uma consequência de uma actividade que eu faço em termos de literatura, que é a crítica literária. O exercício da crítica literária fez-me ser muito exigente em relação àquilo que os outros escrevem, mas sobretudo àquilo que eu escrevo. Tenho as fronteiras bem definidas, que me permitem saber o que é preciso fazer, o que é preciso escrever para poder satisfazer aqueles que vão ler, porque nós, os artistas, temos de ter grande respeito pelo público. É o público que compra os nossos livros, é o público que nos aplaude, que nos abre as portas, que nos transforma em ícones, então temos de ter grande respeito por ele; temos de saber oferecer produtos de qualidade a este público. No caso de escritores, temos de saber oferecer aos nossos leitores livros com batente de qualidade.

Entende que os escritores da actualidade têm esse respeito pelos leitores?
Eu acho que sim. A geração que nos segue é uma geração com bastante talento, que também está em busca de caminhos, porque esta coisa de escrita, de literatura, é um processo de uma busca incansável pela qualidade, pela identidade, uma busca que nunca pára. A arte tem sentido quando nós sempre procuramos superar-nos. Esta geração nova está em busca do seu caminho. A literatura só ganha quando tem personalidade. É disso que nós, artistas moçambicanos, nos últimos tempos, estamos à procura, a nossa personalidade artística.

Na mesma revista disse, também, que o escritor não deve escrever em função dos prémios. Quero também perceber qual é o alcance destas palavras?
Se nós escrevermos a pensar nos prémios, acabaremos por ser pessoas frustradas. Porque pode dar-se o caso de o prémio não aparecer. Será que se vai deixar de escrever? Isso pode colocar-nos numa situação de frustração interior, que pode interferir na própria produção. Eu penso que as pessoas devem escrever, cantar, esculpir, pintar, ser aquilo que são em função dos seus próprios gostos, do amor que têm por essa expressão artística, não por causa dos prémios. Se eles vierem, tudo bem, sejam bem-vindos! Mas se não vierem, também muito bem, a vida continua, como dizia Samora Machel, a luta continua. A vida não pára, com ou sem prémios.

Tem um percurso de mais de 30 anos. Sente-se realizado?
Sinto-me realizado, no sentido em que consegui escrever os livros que sempre desejei escrever. Sinto-me realizado, porque consegui ganhar espaço nesta sociedade, neste meio literário, porque estou a dar um contributo muito importante ao meu país, através dos livros que escrevi, porque sinto que há muita gente que está a aprender através dos meus livros.

2021 foi um ano histórico para Moçambique, para a mulher moçambicana, porque Paulina Chiziane conquistou o Camões. Foi a primeira mulher africana a conquistar um prémio de grande importância a nível internacional. Qual significado tem esta premiação?
Eu penso que Paulina Chiziane veio confirmar aquilo que eu sempre disse, que a Literatura Moçambicana ganhou uma expressão maior. O que faltava na nossa literatura, do meu ponto de vista, era exactamente isto, o reconhecimento exterior. O que nos falta agora, aqui, em Moçambique, é nós sermos capazes de atravessar fronteiras para fazer conhecer aquilo que nós temos de belo ao nível da literatura. Nós temos, aqui, em Moçambique, escritores que, pelo menos ao nível de países de expressão portuguesa, se comparam aos que existem nos outros países. Temos um leque inesgotável de escritores que têm espaço em qualquer prateleira do mundo. O que nos falta, neste momento, é a possibilidade de podermos sair daqui, participar em palestras fora, fazer conhecer o nosso pensamento, a nossa moçambicanidade literária, as nossas obras e, sobretudo, fazer conhecer, através dessas obras, o nosso país.

Há uns tempos chegou uma boa nova, que livros como os de Mia Couto, Paulina Chiziane são de leitura obrigatória para admissão em algumas universidades do estrangeiro, por exemplo, no Brasil. Qual é o significado disto?
É a expressão do reconhecimento da nossa qualidade literária. Não só esses dois escritores que fez referência, mas também Ungulani Ba Ka khosa. Há também um grande escritor, que está “exilado” na África do Sul, Aldino Muianga, também tem o seus livros a serem objecto de curiosidade por parte de estudiosos desses países, há livros do grande ensaísta moçambicano, Francisco Noa, que são livros que se dedicam à abordagem do processo criativo literário em Moçambique. Também estão a ser sujeitos a análises.

Na sua opinião, como os escritores e outros artistas podem maximizar isso para potenciar a indústria criativa no nosso país? Quero crer que a indústria criativa é qualquer coisa como um sistema que se cria para facilitar a produção artística. O que é preciso que a indústria criativa desenvolva?
Primeiro, eu acho que é preciso que haja reconhecimento do artista por parte do sistema, é preciso que haja políticas culturais bem definidas, é preciso que se estabeleçam critérios para a definição do que é um artista em Moçambique, é preciso dotar o artista de meios que possibilitem fazer o trabalho que gosta de fazer, é preciso que se estabeleçam regras para definir o que é bom e o que é mau. Eu acho que, neste momento, felizmente, o nosso Ministério da Cultura está preocupado com isso e acredito que, nos próximos tempos, a situação aqui, em Moçambique, vai melhorar.

Que lugar entende que o escritor moçambicano ocupa na sociedade, ou melhor, entende que o escritor em Moçambique é valorizado?
Eu acho que as pessoas são valorizadas em função daquilo que fazem. Seria uma grande desonestidade nós queremos que todos os escritores fossem valorizados da mesma maneira. Tudo depende da forma com que nós fazemos o nosso trabalho, da forma com que nos empenhamos e nos sacrificamos. O trabalho que eu faço, como escritor, não é o mesmo que outro escritor faz. Provavelmente, deve estar a fazer um sacrifício maior ou menor. Obviamente, o que faz mais esforços merece mais reconhecimento do que o que menos faz. Eu creio que não existe nenhum sistema capaz de fazer parar alguém com talento; não é possível. Samora Machel dizia que não se pode parar o vento com as mãos, o que quer dizer que não se pode parar um artista que tenha qualidade. Ele sempre vinca, então ele vai ocupar o lugar que merece na sociedade.

É fã confesso de Samora Machel?
Samora Machel, de uma forma geral, foi um revolucionário que prestigiava todos nós, moçambicanos, pela sua forma muito particular de ser, a sua capacidade de oratória, a forma com que ele conseguia dialogar com o povo, a forma com que ele conseguia impor a disciplina na sociedade, e penso que a disciplina, numa sociedade, é uma coisa fundamental. Um país pode ser pobre, mas precisa de disciplina para sair dessa pobreza, e Samora Machel, à sua maneira, com o seu mérito e com os erros que cometeu, porque era homem e homens cometem erros, conseguiu impor essa disciplina, que hoje faz falta.

Entende que falta alguma virtude que Samora Machel tinha, na altura, para impor certos comandos que faltam actualmente?
Eu penso que cada dirigente tem o seu tempo histórico, funciona e dirige o país em função desse tempo. Todos os Presidentes que nós tivemos foram importantes no seu tempo e todos eles tiveram uma forma particular de dirigir o país, e o Presidente que nós temos agora tem uma forma particular de dirigir o país. Eu não sei se não tenho capacidade de análise crítica para poder dizer se eles estão a fazer bem ou mal as coisas.

Mas está feliz com o que está a fazer o Presidente da República?
O que eu posso dizer é que uma análise política correcta é aquela que se faz dando um certo distanciamento ao tempo. Eu preciso de me distanciar deste tempo para poder analisar o trabalho que o nosso Presidente está a fazer. Neste momento, corro o risco de ser muito emocional.

Vamos voltar à literatura. Sente que a sua escrita é compreendida e que gera transformações?
Eu gostaria que fosse compreendida, porque um dos grandes desafios do escritor é escrever para o outro. Se somos incompreendidos pelo outro, não vale a pena escrevermos, mudemos de actividade e façamos outras coisas, deixando a literatura para quem tem capacidade de chegar aos leitores. Esse é o grande desafio que nós, escritores, temos, escrever para o outro, a capacidade de escrever histórias que possam seduzir o leitor. Por isso eu admiro pessoas que têm essa capacidade, como Paulina Chiziane, Suleimane Cassamo, que é um grande escritor de que pouca gente fala, Ungulani Ba Ka Khosa, como o próprio Mia Couto, que são pessoas que têm essa capacidade de escrever as palavras e contar histórias, através das quais o povo se reconhece.

Como é que avalia o estágio da Literatura Moçambicana?
Eu acho que estamos a atravessar um bom momento. Recordo que, quando eu comecei a escrever, se publicavam, por ano, 10 livros, e cada publicação era uma festa. A sociedade parava para ir à publicação de um livro. Nessa altura, publicavam-se cinco mil exemplares. Cada título apresentado eram cinco mil exemplares e, passado uma semana, esses exemplares esgotavam-se. Agora, publicam-se cinco a 10 ou mais livros por mês, o que nos dá a dimensão da actividade editorial que existe e a dimensão da escrita na nossa sociedade.

Mas há uma relação com a qualidade?
Eu acho que estamos numa fase em que não devemos preocupar-nos demasiadamente com a qualidade. Nós devemos dar espaço e oportunidade para que todas as pessoas que gostam de escrever escrevam. Que contem as coisas que acham que devem contar.

Mas não é isso que cria apetência pelos prémios?
Repare que, apesar de estarmos numa fase bastante boa, estamos numa fase de nascimento de uma nova Literatura Moçambicana. As grandes literaturas universais geram-se ao longo de muitos anos de actividade literária. Nós não temos meio século de vida como país, nem temos 25 anos de história da Literatura Moçambicana. Não devemos estar preocupados com prémios, mas com produzir, abrir as portas para as novas gerações produzirem, e o tempo vai encarregar-se de fazer a filtragem para nos indicar aquele é ou não é. Nessa altura, os prémios vão ter razão de ser e vão ser entregues, de facto, às pessoas que são merecedoras.

Entende, por isso, que a Literatura Moçambicana está em fase crescente?
Sim, porque nós temos uma questão fundamental ainda a resolver na nossa literatura, que é a questão da identidade. O escritor não tem, necessariamente, de ser uma pessoa preocupada com a palavra. Tem de estar preocupado com a imagem, com a mensagem e transmitir elementos que possam identificar a sociedade onde ele vive, através dos seus traços peculiares, dos seus perfumes, das cores, das suas paisagens, da beleza da sua mulher, das capulanas, da sua cultura. Esses são os elementos que eu acho que ainda faltam introduzir na nossa literatura, que possam dar identidade a essa literatura.

Como é que se alcança esta identidade moçambicana na literatura?
Qualquer identidade, do meu ponto de vista, transmite-se através de símbolos, e esses símbolos estão aqui, na nossa sociedade. É só questão de estender a mão, buscá-los e colocá-los no papel. Na música, por exemplo, se se falasse de identidade, eu iria buscar, por exemplo, José Mucavele, Chico António, Timbila Muzimba, Ghorwane, Kapa Dech que têm esses símbolos subjacentes na arte que eles produzem, mas a literatura ainda não tem. Nós continuamos presos a fórmulas estilísticas que não nos pertencem. Nós escrevemos tão bem como o outro, e não como nós próprios. Continuamos convencidos de que um bom escritor é aquele que escreve como os portugueses, como os franceses, como os brasileiros. Nós precisamos de escrever como moçambicanos.

Entende que há estímulos suficientes para que os escritores moçambicanos alcancem esta identidade?
Uma coisa é o estímulo e outra é a procura de identidade. Alguém que faz um trabalho de qualidade, mais tarde ou mais cedo, vai receber este estímulo, mas a sua procura pela identidade, pela moçambicanidade e pela qualidade não deve estar presa a prémios ou estímulos. Como eu disse antes, cada um de nós vai colher aquilo que plantou. Penso que devemos trabalhar, procurar esses valores, sem estarmos muito presos a estímulos, embora sejam importantes. Nós não devemos deixar de percorrer o caminho que devemos percorrer porque não nos dão isto ou porque não recebemos aquilo.

Além de ser escritor, é poeta e jornalista. Como é que olha para o jornalismo que é praticado nos dias que correm?
É uma pergunta muito difícil de responder. Há uma tendência de pessoas mais velhas, como é o meu caso, de dizer assim: “no meu tempo as coisas eram melhores que agora”. Alguém dizia que este tipo de discurso é próprio de pessoas que estão a ficar velhas, que já não têm argumentos, mas o que eu posso dizer em relação ao jornalismo é que, apesar de eu ter feito jornalismo como freelancer. Eu nunca estive afecto a nenhum jornal, em termos vinculativos. Eu fazia o jornalismo sem obedecer aos ditames do chefe de Redacção, e o jornalismo que eu fazia era leve, era cultural, e permitiu-me conhecer os verdadeiros criadores da cultura em Moçambique, desde o contacto com Malangatana, José Craveirinha, o escultor Chissano, que é um dos melhores que Moçambique já produziu e a própria África já reconheceu isso. Mas, neste momento, corre o risco de ser esquecido. Aliás, aqui, em Moçambique, temos uma grande capacidade de esquecer dos grandes ícones que o país produziu.

Consegue perceber porque é que isso acontece?
Nós temos o defeito de querer fazer esquecer o outro – “Eu estou vivo agora, eu existo, e é o que tem importância agora. O outro existiu no seu tempo” – Esquecemos que a história de um país faz-se através da própria memória.

É um esquecimento imposto?
Não sei se é imposto, mas tem muito a ver com a nossa forma de conceber as coisas. Por exemplo, os portugueses. A saudosa Lina Magaia dizia-me que tinha muita inveja da portugalidade deles. No dia em que Amália Rodrigues faz anos, em Portugal, todas as estações radiofónicas param e tocam a música de Amália Rodrigues. No dia em que Camões completa anos, a sociedade portuguesa pára, há recitais sobre a sua poesia e palestras sobre a sua vida e obra. Fiz referência a estes dois dois ícones portugueses para dar a dimensão da importância que o sistema português dá aos seus ícones. Eu acho que devíamos fazer isto aqui também; nada nos impede de recordar Craveirinha, Malangatana, Fany Mpfumo. Nós não temos isso. Eu acho que seria injusto dizer que é o Governo que não cria isto. Essa é uma responsabilidade, do meu ponto de vista, individual, institucional, colectiva. Cada um de nós tem esta responsabilidade. Mas enquanto não há essa tomada de consciência, nós continuamos a esquecer as pessoas que ocuparam um lugar extremamente importante na vida política e cultural do nosso país.

Bom, voltando ao jornalismo, entende que o “boom” tecnológico está a ajudar ou a prejudicar esta profissão?
O “boom” tecnológico está a ajudar a actividade cultural. As coisas mudam, o desenvolvimento da sociedade é mutável. Todos os dias, há novas tecnologias, novas conquistas. Já ninguém escreve com máquina manual, como antigamente; todos escrevem com computador. Todos recorrem às plataformas que todos os dias inovam a nossa maneira de lidar com a palavra. Eu escrevo um texto agora e, passados dois minutos, está a ser divulgado através das tecnologias em Paris, Dakar ou Luanda. Eu lanço um livro hoje, ganho um prémio hoje, todo o mundo sabe que Marcelo Panguana ganhou. Por isso, as tecnologias são importantes no desenvolvimento da cultura. Não só em Moçambique, mas em toda a parte. Eu penso que o escritor que queira afirmar-se, aliar-se a este movimento universal de desenvolvimento cultural, indiscutivelmente, deve aliar-se às novas tecnologias.

Como é que olha para o estágio da educação no nosso país? Faço esta questão porque há alunos do ensino secundário que têm dificuldades de leitura.

Eu sempre digo que é extremamente complicado para pessoas leigas como eu fazer uma análise crítica sobre a educação no país, porque é uma área bastante complexa e exigente e fundamental para o desenvolvimento de qualquer país. Mas aquilo que se passa no nosso país permite-me pensar que o grande problema que a educação tem é o problema que o país tem, que muitas instituições do país têm, que é a questão de critérios. Nós cometemos, no país, os erros que cometemos por ausência de critérios.

Não se pode exigir que a nossa educação seja boa quando os critérios para a admissão dos quadros que nos regem não são claros. Não se pode ter uma boa educação no país quando os critérios de admissão dos professores não são claros. A partir daí, este descalabro a que nós estamos a assistir, mas creio que, devido à gravidade dos erros que têm ocorrido nos últimos tempos, os actuais responsáveis do Ministério da Educação devem estar a empenhar-se no sentido de notificarem a situação, porque se não o fizermos, corremos o grave risco de, nos próximos tempos, formar quadros com baixo nível de qualidade, o que significa que corremos o risco de, nos próximos tempos, nos grandes projectos de desenvolvimento nacional, contratar quadros técnicos do exterior, porque aqui, em Moçambique, não os temos, porque a qualidade de ensino aqui é de baixa qualidade. Estou plenamente convencido de que há urgência de notificar esta situação. Estou totalmente convencido também de que a nossa ministra deve estar muito preocupada também e, provavelmente, nos próximos tempos nós poderemos ter resultados.

Recentemente, em entrevista ao Grande Entrevista, o antigo reitor da Universidade Eduardo Mondlane, Brazão Mazula, disse que deveria existir, em Moçambique, uma lei que obrigue que os filhos de dirigentes estudem em escolas públicas. Tem o mesmo posicionamento.
Brazão Mazula é uma pessoa por quem eu tenho uma admiração especial, sobretudo pela sua coerência, que é uma coisa que muitas vezes escasseia na sociedade, e também porque é uma pessoa que tem um percurso académico indiscutível no nosso país portanto, é uma estatura que lhe permite pronunciar-se sobre os grandes dilemas que a sociedade vive, e ele quando diz que os filhos de dirigentes deviam estudar em escolas públicas, tem os seus motivos, embora eu não concorde plenamente, porque eu acho que nós devemos colocar os nossos filhos a estudar onde nós quisermos. O dinheiro é meu, o investimento que eu quero fazer para o meu filho é meu, compete a mim, eu posso ter essa liberdade de colocar o meu filho a estudar onde quer que seja. Mas como eu disse, se calhar, o professor Brazão Mazula quisesse utilizar isso para forçar que haja maior investimento nas escolas públicas, que haja menos exibicionismo por parte de quem pode pagar os estudos lá fora, porque nós também sabemos que há pessoas que estudam lá fora e não trazem resultados palpáveis. Estudar fora não significa que se volte com qualidades maiores. Tudo aquilo que Brazão Mazula disse era uma metáfora para dizer que nós precisamos de fazer um investimento in loco, de modo a que os nossos alunos, os filhos de dirigentes, não sintam necessidade de estudar lá fora. Estamos a falar de educação, mas também podemos falar da saúde. Porque é que os filhos de dirigentes recorrem à medicina fora de portas e não aqui dentro? É porque o nosso sistema de saúde é fraco, como todos nós sabemos. Se nós fizermos um investimento maior aqui, não precisaremos de ir à África do Sul nem à Índia, nem a Portugal, nem onde quer que seja para nos curarmos.

Esse desinvestimento na educação e também na saúde, entende que é deliberado, conjuntural, muito por força de capacidades financeiras por parte do Governo?
Eu acho que isso obedece a estratégias que me fogem na análise. Há coisas que me fogem na minha capacidade de análise, há pessoas que me superam a minha lógica das coisas, e tudo o que foge à minha regra, e eu escuso-me de comentar.

Bom, estamos já a fechar e queria que olhássemos para o mês de Outubro, que é um mês de destaque, porque, no dia 11 de Outubro teremos as sextas eleições autárquicas em Moçambique. Entende que a juventude está consciente sobre o que significa o voto?
Sim, eu tenho feito uma afirmação que entra em desacordo com alguns pensadores da nossa sociedade, quando eu digo que eu sou um dos grandes defensores desta juventude que nós temos agora. É uma juventude, para mim, extremamente culta. Nunca houve na história dos últimos anos uma sociedade, apesar dos erros que comete, como é próprio de todas as juventudes de todos os tempos, nunca houve uma juventude tão consciente como esta, tão disponível e tão competente em relação àquilo que faz, uma juventude que domina os meios tecnológicos, fala todas as línguas, domina os computadores, conhece quase todas as partes do mundo e que sabe aquilo que quer. Aparentemente, não sabe. Para muitos analistas, é uma juventude suspeita, alcoolizada, cheia de drogas. Do meu ponto de vista, é uma juventude lúcida, sabe aquilo que quer, sabe o que lhe faz mal, sabe qual é o partido a que deve votar, sabe qual é o líder a quem deve confiar e sabe para onde é que caminha o país. por isso, estou plenamente convencido de que esta juventude que nós temos, inteligente, sabe em quem vai votar.

Na sua visão, como é que avalia os discursos e as promessas que são feitas em debates televisivos pelos cabeças-de-lista para as eleições autárquicas?
Eu recordo-me de quando eu era bebé e eu chorava – dizem que eu chorava muito – e a minha mãe punha-me no colo e, em changana, dizia não chores, meu filho, vou oferecer-te um avião, um barco, uma caixa cheia de rebuçados, e não era verdade, era para e7u não chorar, era para me seduzir, para me calar. De certa maneira, certos candidatos fazem a mesma coisa. Prometem que vão construir hospitais, pontes e mais coisas que dizem todos os dias. Há muitas promessas. Algumas nos fazem rir de tristeza, porque penso que, provavelmente, poderia haver uma outra forma de seduzir o eleitorado sem que fosse necessário cair no ridículo de prometermos aquilo que nós sabemos, no fundo, que não somos capazes de oferecer. É um pouco este cenário que eu observo quando acompanho depoimentos de alguns candidatos, porque, de facto, a política é isto, é a arte de seduzir, de criar ilusões no povo, mesmo que saibamos que essas ilusões não vão ser concretizadas nem a médio nem a longo prazo. O que eu gostaria que acontecesse é que nós tivéssemos um processo eleitoral que não desembocasse em actos de violência.

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