Selma Uamusse é um dos grandes talentos da arte moçambicana no estrangeiro. A viver em Portugal desde 1988, a cantora canta e leva consigo nas sonoridades fragmentos que reconstroem uma cultura que se deve impor no mundo. Nesta entrevista, Selma Uamusse, muito ligada à sua terra, fala do seu compromisso com a música, de como as filhas a inspiram no seu trajecto e do seu contributo no processo de tornar a cultura moçambicana mais conhecida internacionalmente.
Considero-a uma cantora arrepiante. Por que canta?
Canto porque quero-me manifestar. Sou formada em Engenharia, mas a música acaba aparecendo como forma de manifestação de tudo aquilo que são saudades, pensamentos e sentimentos em relação à sociedade e à maneira de ser e estar. A música, para mim, é um instrumento de partilha e canto essencialmente porque quero partilhar sentimentos e, acima de tudo, quero tocar a vida das pessoas com aquilo que é a minha musicalidade.
Aceitaria se dissesse que a música, no seu caso, também é um instrumento de redescoberta?
Sempre. Cada vez que piso um palco há algo de novo que acontece em mim. Tento ver a música como algo espiritual e, portanto, sempre há uma redescoberta ou uma redefinição e uma tentativa de ser melhor. E não me refiro ao sentido estético ou técnico, é mesmo no sentido de ser melhor pessoa. Agora, é verdade que toda a parte técnica e estética são importantes para conseguir ser um reflexo directo daquilo que pretendo transmitir, tentando deixar as pessoas incomodadas ou desconfortáveis, sendo isso bom ou menos mal.
Fica como que possuída quando está no palco. Ocorre-me a interpretação da música “Mati”, por exemplo. É programado?
Não é programado, mas, em todos os concertos, tento que haja um encontro entre as pessoas que me estão a ouvir, um encontro comigo mesmo e um encontro divino. Nesta trindade, é natural que algo de mim se manifeste. As pessoas têm dito que sou muito suave e muito doce, mas, quando estou em palco, algo em mim exterioriza-se mais tal como aqueles artistas que são tímidos mas que uma vez no palco tornam-se extrovertidos. “Mati” é uma música que compus de uma vez só, num momento que estava com muita febre, doente. Para me curar, naquele momento, escrevi a música.
Mesmo a pensar em “Mati” (água), acontece consigo este espaço-Índico ser um lugar de fascínio, como calha na poesia moçambicana?
Sim, e tenho a vantagem de estar em Lisboa, um sítio com muito mar, apesar de o Atlântico ser diferente do Índico, que é mais quentinho e simpático. A água é apaziguadora, faz-nos pensar e é dos lugares que gosto mais de escrever – não necessariamente canções, mas escrever pensamento. A água faz-me pintar e desenhar e é um elemento bastante inspirador. Sendo ou não artista, a água é um elemento muito mágico, pelo movimento e pelo som.
Falando de som, um que se destaca nas suas músicas é o da timbila. Quer comentar?
Quando decide trabalhar num projecto a solo, um dos desafios era trabalhar com ritmos tradicionais moçambicanos. Tive que estudar e ouvir porque muitas coisas não conhecia. Uma das pessoas com quem me liguei foi o Cheny, para ter aulas de timbila e conversar sobre música tradicional. À medida que fui descobrindo algumas coisas, percebi que a timbila é um instrumento muito ligado aos rituais, aos casamentos, funerais e celebrações de iniciação. A timbila tem um carácter muito especial e a utilizo porque procuro sons que me fazem sonhar. Para mim, é importante que, com a música, se possa viajar. Uma timbila é tão moderna e actual quanto um som electrónico.
Sendo a música um veículo de viagem, também é para sim uma forma de reivindicação de alguma coisa…
Sim, é. E, neste meu primeiro álbum, tenho uma música que faço declaradamente como cidadã comum para dizer que estou atenta àquilo que me estão a fazer. Digo que estou a perceber os percursos pelos quais estamos a caminhar. Para mim, é importante termos uma voz activa na sociedade. Reivindicação é também um estado de espírito, um estado de alma, uma forma de viver a vida, em que todas as pessoas que estão a minha volta fazem parte de um percurso que não seria o mesmo se não existisse.
Recordo-me que participou no tributo a Nina Simone, artista e activista social norte-americana. É daquelas cantoras que o efeito estético musical depende da componente interventiva?
Também, mas não só. Ou seja, lembro-me de ter ouvido um documentário sobre Nina Simone, em que ela explicava por que havia parado de cantar determinados tipos de músicas a certa altura da carreira dela. Voltei ao repertório da Nina Simone porque senti que as coisas, quando são tomadas como garantidas, às vezes são esquecidas. Temos que nos lembrar que já houve segregação para que esse mal não continue. A Nina Simone é uma referência para mim como é Miriam Makeba, Fela Kuti, porque foram pessoas que não tiveram medo de utilizar a sua fama e o seu protagonismo para dizer algo difícil, que temos que tomar um partido. Estes três são muito importantes para mim e identifico-me com a maneira como trabalharam esteticamente e artisticamente o seu projecto. No entanto, o balanco entre a intervenção social e a espiritualidade é algo que para mim é importante. Quem tem fé não tem que se dissociar de ser interventivo. Às vezes, vejo pessoas de fé a não quererem contestar ou intervir na sociedade. Acho que as pessoas que têm fé devem ser elementos transformadores da sociedade. Muitas vezes parece-me que estes dois lados, da intervenção social e da espiritualidade, estão separados.
Parece-me uma pessoa equilibrada. A música é um pretexto para manter esse equilíbrio?
Inclusive, a música é o meu equilíbrio. A música faz com que, em última instância, quando a imperfeição toda vem ao de cima, que haja um encontro com os outros, comigo mesmo e com tudo aquilo que está a minha volta. Sem dúvidas que a música é uma fonte de equilibro, de alegria e é um fim para mim. E é através da música que pretendo atingir determinados fins na vida.
Como é cantar sobre sua gente, estando longe, mas não distante?
Saí de Moçambique aos seis anos. Felizmente, os meus pais procuram-me fazer estar perto da nossa cultura – os meus pais estão de uma ou de outra maneira ligados à cultura, à arte e ao património. Essa proximidade fez-me sempre sentir lá, estando cá. Quando eles regressaram, se calhar me ocidentalizei um pouco. Fazer música que está ligada ao meu povo é uma grande responsabilidade, porque não sinto que sou uma transmissora directa daquilo que é a mensagem dos moçambicanos. Não tenho essa pretensão. Não vivo em Moçambique e não conheço perfeitamente os nossos problemas. No entanto, mais do que tudo isso, o mundo precisa conhecer os nossos ritmos, as nossas línguas e saber que Moçambique existe no mapa. A nossa cultura tem muito potencial e é com muita alegria que trago uma pequena contribuição nesse sentido.
Que saudade manifesta na música “Mónica”?
É uma saudade geral e, ao mesmo tempo, muito particular. Quando tinha por aí 12 anos, uma amiga, infelizmente perdeu a vida num acidente de automóvel, em Moçambique. Ela era uma pessoa que admirava muito. Cresci num ambiente nada espiritual e, já na altura, questionava-me sobre algumas coisas como: se Deus existe porque levou uma pessoa tão especial como a Mónica? Foi o início do meu processo espiritual. A música é dedicada a minha amiga Mónica e, de facto, fala da saudade positiva. Quando tenho um tom saudosista em relação a Moçambique ou às situações que me envolvem há um sentido um pouco mais além. Por exemplo, se fico triste por alguém que partiu, tento que ser pequena representante da pessoa que amei. Procuro na virtude dos outros uma herança para mim, afinal, vejo a vida terrena como algo muito curto, que deve ser encarado com naturalidade e responsabilidade de perpetuar aquilo que os outros deixaram. Procuro fazer do saudosismo algo activo.
Admite que se constrói com melancolia, musicalmente?
É uma pergunta difícil. Queria ter que dizer que não, mas também não consigo dizer que sim. Não sei. Tenho que pensar um pouco sobre isso porque a melancolia é associada a coisas tristes e não acho que a tristeza faça parte das características que procuro cultivar. Mas se calhar a melancolia é um pouco cultivada para compor e para trabalhar. Tenho que pensar.
De que surge a sua música?
Surge de pequenas explosões. Funciona assim como vulcão. Vai entrando em ebulição… às vezes fico nervosa e tensa e, de repente, lembro-me que é acerca da comunicação que quero ter com o público e há essa explosão, que pode ser dançada, manifestada por um olhar, um toque. Sinto que a música acontece em mim, quando já não estou a pensar em nada disso, quando estou apenas a ser. Essa é a parte que mais gosto, quando saio um pouco de mim e estou só a dar.
A avaliar pelas colaborações musicais que já teve (com Rodrigo Leão, Luiza Sobral, etc.) podemos dizer que é uma cantora aberta a qualquer estilo musical?
Já fiz muitas coisas diferentes e gosto de pensar que tenho o privilégio de sempre ter feito coisas muito boas. E, no caso do Rodrigo Leão, foi muito especial por ser um músico e compositor que admiro muito porque durante muito tempo gostei de Madredeus. Sempre trabalhei com música gospel, tive uma banda de rock, fiz jazz, pop, solo, funk, afro beat e, de repente, tenho um encontro com uma dimensão mais erudita da música. Há um ano gravei um disco com a orquestra da Gulbenkian e foi um mundo novo ter 300 pessoas a acompanhar-me. Sou uma pessoa abençoada para poder fazer coisas tão diferentes e tão especiais.
Canta um clássico da música moçambicana, “Baila Maria”. Tratou-se de uma apropriação ou é mesmo um resgate do que pode estar a ser esquecido?
Cada vez que procurava por música moçambicana, em Portugal, quando ouvia “Baila Maria”, sentia-me em casa. Esta é a música mais diferente de todas as que faço no meu disco. Tive a oportunidade de gravar com Chico António, mas essa versão não ficou editada. Tenho falado com ele, que me dá a liberdade de fazer o que quiser com a música. Esse à vontade de Chico António, de nos deixar apropriar daquilo que é um património nacional, deixa-me muito feliz. Essa canção devia ser decretada um património nacional porque, seja em que público for, português, francês, alemão ou espanhol, as pessoas sentem-se conectadas. Essa canção faz parte de mim e da minha moçambicanidade.
Uma vez disse que não encontra pretexto para não continuar a cantar, sendo mãe. Pelo contrário, vê na maternidade uma responsabilidade para continuar a investir na sua carreira. Como a escritora brasileira Andreia del Fuego, encontra no conforto familiar o requisito para existir como artista?
Sem dúvida. Os artistas são profissionais com carreira frágil. Nós nunca sabemos o que nos vai acontecer, mesmo fazendo uma boa obra. Vejo as minhas filhas, e os eventuais futuros filhos, como inspiração maior para poder ter um percurso profissional de melhor sucesso. E ser melhor profissional passa por ser uma melhor mãe e melhor esposa. O que quero deixar como legado para as minhas filhas é que, independentemente do sucesso que possa ter, fiz o melhor que podia, trabalhei o máximo que podia e dei o máximo de mim e não passei por cima de ninguém. Portanto, quero deixar como legado para elas que mantive os meus valores e construi a carreira possível. Este é o exemplo que qualquer pai deve querer deixar para os seus filhos. Mais do que legado financeiro, devemo-nos preocupar com o legado de natureza moral, espiritual, de valores e de capacidade de trabalho. As minhas filhas incutem em mim maior capacidade de trabalho, para poder ser melhor do que poderia ser sem elas.
Onde quer chegar com música?
Mais do que o dinheiro e a fama, o meu alvo é coração das pessoas. Em qualquer arte, enquanto não tocarmos o coração das pessoas e as fazer sair da sua zona de conforto, ainda temos muito trabalho a fazer. Obviamente, quero correr o mundo, trabalhar internacionalmente e fazer chegar a cultura moçambicana a mais pessoas.
Sugestões artísticas para os leitores d'O País?
Sugiro a pintura do Chichorro e a música das irmãs Ibeyi.
Perfil
Selma Uamusse nasceu em Maputo, em 1981. Aos seis anos, foi viver para Portugal. É profissional de música a partir 2000. Desde então, criou os projectos Selma Uamusse Nu Jazz Ensemble e Tributo a Nina Simone. Colabora com vários músicos, de estilos musicais diferentes, como são os casos de Rodrigo Leão, Luiza Sobral, Chico António, Cheny Wa Gune, Elisa Rodrigues e Rita Redshoes. No mês passado, participou, em Maputo, no Mozambique Music Meeting.