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Sangare Okapi: 20 anos de um poeta experimental, existencial e sensual

A celebração dos vinte anos de carreira de Sangare Okapi ficará marcada pela reedição dos seus dois primeiros livros, que resultou na obra Poemas de Revisitação do corpo Seguido de Apoteose do Nada (2025). E, fará sentido celebrar estes 20 anos do poeta do Bairro do Aeroporto também com uma brevíssima incursão às obras publicadas em 2011 e 2018, Mafonematográfico Também Círculo Abstracto e Os Poros da Concha, respectivamente. 

Uma das marcas da poesia de Sangare Okapi é a sua diversidade formal e temática. Do ponto de vista formal, e pela novidade que, de uma forma geral, representa na literatura moçambicana, importa destacar a sua incursão pela poesia experimental (poesia experimental para os portugueses e poesia concreta para os brasileiros), por ser um dos poucos casos de escritores moçambicanos a explorar os aspectos grafemáticos da linguagem verbal, de onde resulta a natureza icónica dessa poesia. Referimo-nos à poesia visual como uma das manifestações do experimentalismo. Outro poeta da sua geração que explora este tipo de poesia é Dinis Muhai, que publicou Rascunhos para uma comunicação improvável (AEMO, 2008). Sangare Okapi e Dinis Muhai foram colaboradores da revista literária Oásis – Jovens pela Literatura.

A poesia visual e a poesia concreta 

A poesia visual apela a um olhar atento ao que é dito ou sugerido, de modo a aferir o seu sentido, a sua representação e construir o seu significado, a sua interpretação. Ela tem, comumente, sido grafada por imagens ou por caligramas. Sangare fá-lo em formato de caligramas: as palavras propagam-se na folha em branco, sugerindo que o leitor construa uma imagem desse mapa e associe essa imagem com os sentidos e significados das palavras que a compõem. A este tipo de poesia se designa, de forma mais específica, poesia concreta, que é uma variação da poesia visual. Mais do que ser escutada ou ouvida, a poesia concreta deve ser vista. Mafonematográfico […], livro publicado em 2011, é, sob este ponto de vista, um exemplo paradigmático:

Como se depreende, a poesia concreta exige que o seu autor realize um jogo de palavras que recorda um exercício de carpintaria. Neste sentido, é sugestivo o aviso colocado no pórtico da obra, onde se diz o seguinte: “ninguém sabe, mas ali sua-se”. Isso alerta-nos, de facto, para o trabalho oficinal representado pelo concretismo. No poema da página 25, essa oficina sugere que os caracteres do texto se esvoaçam ou se propagam, recordando o vento aludido. Leia-se, ainda, o poema da página 36, que se referindo ao mar e a barcos, parte dele está representado em formato de uma onda. Vejam-se ainda os poemas da página 38 e 39.

Por outro lado, do ponto de vista temático, destaque-se que grande parte do trabalho de Sangare Okapi é caracterizada pelo tratamento das seguintes questões: a memória e a metapoesia, o vazio, o absurdo, o erotismo. Ao celebrarmos os seus 20 anos de produção poética, decidimos aflorar sobretudo as suas manifestações temáticas, por serem estas as que, de forma simbólica, remeteram e remeterão os seus leitores para as questões existenciais, num mundo de “declarada” falência de utopias individuais e colectivas.

A memória (literária) moçambicana 

Mais do que serem textos pejados de simbolismo, os poemas de Sangare homenageiam, muitas das vezes, os seus gurus literários: José Craveirinha, Luís Carlos Patraquim, Filimone Meigos, Eduardo White, Rui Knopfli, Francisco Guita Jr., Heliodoro Baptista, Gulamo Khan, entre outros. Aliás, a poesia de Sangare é dos poucos exemplos moçambicanos que não disfarça uma espécie de compromisso em estabelecer um diálogo obsessivo com a memória literária moçambicana, como se pode ler no poema “Patraquimmiana” (p. 41), onde se ouvem, fundidas na sua voz, as vozes de Craveirinha e Patraquim (mas também a de Fonseca Amaral, entre outras menos explícitas). Neste sentido, a sua obra consegue ser esteticamente engajada no fortalecimento e consolidação de uma imagem de moçambicanidade literária.

Patraquimmiana

Para J.C

“Longe embora cidade paráclita

a língua se nos cola ao céu da boca

se vier o olvido.”

Fonseca Amaral. Exílio.

 

Não sei com que estranha miragem. Confesso.

Meu lírico cartomante das noitadas pela Mafalala!

Sim, agora que o medo já não puxa lustro na cidade. Velho Zé,

livre e limpo da morte, regressas pelos carris da memória,

mãos aninhadas nos bolsos rotos. A mesma cartola preta,

amarrada ao vento e um pássaro que já não cabe no verso

preso no nembo da língua, desmentem o teu estatuto

de cidadão do futuro e regressas, velho Zé!

Nenhuma epopeia trazida dos escombros se levanta do rosto,

nenhuma elegia brota do coração, nenhuma!

E regressas, velho Zé, poeta em todas as latitudes!…

                                                                                                              (p. 41)

A metapoesia

A poesia de Sangare é alegoricamente autorreflexiva: o poeta ou a poesia, através de uma associação com outras “realidades” pensa, questiona a sua própria natureza. A linguagem, para além de ser o campo da manifestação de sentimentos, emoções e ideias de um mundo que é interiorizado, transforma-se num processo de busca dos seus próprios fundamentos estéticos, do processo de transformação dos materiais da língua em arte. Simbolicamente, não deixa de ser, este exercício, um desafio que se propõe ao leitor, no sentido de buscar, ele também enquanto produto de diversas linguagens, enquanto matéria que é linguagem, a sua própria idiossincrasia. Leiam-se ainda sobre esta questão, nesta antologia, os poemas das páginas 26, e 29.

Transpiro nos dedos

        simples materiais

                           de carne

para a navegação

 

Mar     azul,

branco é o papel

sem a margem

do teu busto

 

Lanço as redes,

que são as letras,

no arremesso

do papel a cabeceira

                         começo.

 

Transporto outro poema

para o oriente do corpo.

                                        (p. 20)

 

O absurdo

A estética do absurdo, na óptica dos teóricos Carlos Ceia e Harry Shaw, aborda ou questiona o sentido da existência, ignora ou deforma as suas convenções tradicionais, revela o contra-senso, o incoerente, a inversão da lógica, do que resulta, muitas vezes, a representação da solidão e do isolamento. 

Azar! Azar é ter mil asas por vocação e não possuir uma para voar.

                                                                                                           (p. 75)

Quantas distopias caberão neste poema? Num ano em que países como Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe celebram os seus 50 anos de Interdependência, quantas evocações podem ser feitas, a partir dessas asas que não voam, para reparar os absurdos das nossas Histórias nacionais? Para compreender esta temática na presente antologia, podem ser lidos também os poemas às páginas 28, 34, 37.

O vazio

Wolfgang Iser advoga que a estética do vazio consisti no preenchimento, pelo leitor, de espaços em branco constantes de uma obra literária. Neste sentido, a obra se realiza no processo de leitura e em função da enciclopédia do leitor. Isto é passível de ser verificado na leitura de qualquer texto. Grande parte da obra de Sangare Okapi carece desse preenchimento de espaços, através do reconhecimento de algumas palavras que recordem um determinado contexto social, histórico ou cultural. A este propósito, em Mafonematográfico […] (p. 24), o poeta faz referência a “cinco elefantes africanos”, com recurso às iniciais dos seus nomes, a saber: EM, MC, JC, LH, UK. Estas entidades são caracterizadas como os “big five”. Conhecendo o contexto de escrita de Sangare, essas iniciais são reconstituíveis em Eduardo Mondlane, Mia Couto, José Craveirinha, Lindo Hlongo e Ungulani Ba ka Khosa. Pensando no que seriam os “big five” da História e da Cultura de Moçambique é que se descodifica os nomes e se preenchem os vazios da dedicatória e, por extensão, do que o livro vai sugerir. Entretanto, num contexto diferente (de quem desconheça esses “big five”), apenas entenderia a colagem de letras como manifestações do concretismo já referido anteriormente. Um outro exemplo desse deste tipo de vazio pode ser encontrado no poema da página 38.

Entretanto, de acordo com Carlos Ceia, a noção do vazio é extensível ao conteúdo do não ser, o que nos reenvia para questões e dilemas existenciais. São, portanto, duas componentes que podem caracterizar a compreensão do vazio literário. Quanto ao não ser, veja-se o exemplo seguinte:

Repara: a minha casa é um deserto certo e aberto. Tenho as portas por comportas e os braços em jeito de crucifixo que neles gostava que as mais humildes aves pousassem com todas as flores na boca. Eu, que sou vazio e singular sobre a pedra angular do destino. Como não? Mal me nasce uma garça na garganta pela aurora toda a desgraça sou: definitivamente, antes vale um Deus no verso que no Universo.

                                                                                                                                                  (p. 59)

Como expressão também do absurdo que reenvia para a solidão ou para o isolamento, o vazio em Sangare Okapi se manifesta sobretudo nas suas primeiras obras, a saber: Inventário de angústias ou apoteose do nada (2005) e Mesmos barcos ou poemas de revisitação do corpo (2007). Leiam-se também os poemas das páginas 19, 23, 30.

 

A sensualidade

Na poesia de Sangare, os alertas para a abordagem do erotismo vêm desde a sua primeira obra, como se pode verificar no exemplo seguinte:

Amêijoa minha nocturna

tua é a cápsula aberta,

como na flor apta a corola

para a acepção do pólen.

                                                     (p. 11)

 

Há, entretanto, uma viragem para uma sensualidade mais acutilante, no livro Os Poros da Concha (alusão à uma concha já perfurada, portanto, nem tanto fechada). O livro é cheio de enigmas que carecem de conhecimento advindo da área cultural, para o descortinar. Logo desde o início, somos avisados, a partir dos paratextos, que a temática abordada é referente a representações do corpo. 

A abordagem desse tema é realizada de modo contido, mesmo em casos nos quais o léxico remeta directamente ao objecto representado. Enfim, trata-se de uma obra hermética.

No Ronga, língua do sul de Moçambique, a concha é designada, em linguagem corrente, por mbatsana. Em sentido figurado, a mesma palavra é utilizada para designar a vulva. Desse modo, para quem possa transitar entre o Português e o Ronga, constata, logo a partir da capa, a menção ao referido tema. O poema da página 53 desse livro é gritante para a explicação do título do livro. Daúde Amade, escritor moçambicano, faz, também, uma leitura na mesma linha, ao referir que Os Poros da Concha remetem às “aberturas do feminino”. Diz o poema:

 

jamais retornarás estes ínvios atalhos

como um notívago tropeçando o sonho

pois há no teu corpo um casulo com olhos

velando irremediavelmente em ti o canhu

 

chama-se casa e com ela uma vela piscando

                                                                                (p. 53)

O canhu é, na verdade, um fruto afrodisíaco. Esse fruto e a vela, referidos no poema, caracterizam, por extrapolação, dentro da cultura ronga, a viscosidade e a protuberância, respectivamente, susceptíveis de serem encontradas no interior da vulva. Os restantes poemas, alguns dos quais envoltos em jogos de palavras, são todos eróticos. Vejam-se, entre outros, os poemas das páginas 16, 17, 18, 20, 48.

Finalmente, cultivando a sensualidade, o vazio, o absurdo, a metapoesia, a memória ou o concretismo, a poesia de Sangare Okapi é eminentemente sonora. Isto significa que o poeta não dispensa o laborioso trabalho com a língua. A palavra é a chave mestra com que Sangare abre em nós universos de experiências individuais e colectivas.

Antes estar só era casual. Agora estar só é um ritual.

                                                                                             (p. 66)

É isto, e muito mais que fica por dizer, que faz de Sangare Okapi um poeta cuja preocupação com o simbólico é tutelar. Está de parabéns o poeta.

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