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Rui Baltazar: um homem cuja vida se confunde com a justiça nacional

Foto: O País

Morreu Rui Baltazar, o primeiro ministro da Justiça de Moçambique, primeiro presidente do Conselho Constitucional e um dos redactores da primeira Constituição da República de Moçambique. Rui Baltazar dos Santos Alves foi um jurista importante para o país e era crítico ao sistema político moçambicano. O jurista completaria 91 anos no dia 24 de Setembro.

Se a justiça é um dos pilares de um Estado, Rui Baltazar é um dos pilares da própria justiça.

O homem que morreu na madrugada de sábado viveu para dar vida ao Estado moçambicano. Nasceu em Maputo, quando se chamava Lourenço Marques, em 1933. Nessa altura, Moçambique era parte do Estado português.

Baltazar foi à metrópole para estudar Direito, curso que veio a concluir em 1956. Dois anos depois, concluiu mestrado em Ciências Político-Económicas. Ambas as formações foram feitas na Universidade de Coimbra, em Portugal.

Com as ferramentas completas, voltou a Moçambique para servir, e foi um longo serviço. Começou por exercer a advocacia, entre 1959 e 1974. Nesta altura, Moçambique estava em transição.

Rui Baltazar foi ministro da Justiça no Governo de transição, ou seja, antes da proclamação da Independência Nacional. Em 1975, assume a mesma pasta e lá permanece até 1978, quando assumiu a pasta das Finanças. Contribuiu na redacção da primeira Constituição da República.

Na Universidade Eduardo Mondlane, foi reitor e director das faculdades de economia e direito; na diplomacia, foi embaixador; e, na política, foi Conselheiro de Joaquim Chissano, entre 2002 e 2003.
Feito tudo isso, Rui Baltazar contribuiu para que nascesse o bebé cujo parto descreveu como tendo sido “bastante penoso” e que “enfrentou, não poucas, resistências.

assaram-se longos 12 anos para que se concretizasse a iniciativa de dar à luz um órgão de soberania que estava constitucionalmente estatuído”. Os mecanismos em que esta criação aconteceu também eram estranhos aos olhos de Rui Baltazar.

Baltazar explicou que uma das razões da resistência talvez fosse a afronta que o órgão viria fazer aos outros de soberania. Ainda assim, o jurista tinha críticas relacionadas com o acesso ao Conselho Constitucional. “Duas mil assinaturas são demais”.

Falando numa palestra alusiva aos 10 anos do jornal O País, Rui Baltazar também criticou o facto de se ter um Conselho Constitucional politizado e composto por partidos políticos. Por falar em política, Rui Baltazar fez um diagnóstico das eleições no país e o resultado foi que “os processos eleitorais moçambicanos sofrem uma espécie de ébola político-crónico, que se manifesta através da constante invocação, após cada eleição, da existência de fraudes. Este fenómeno das fraudes ocorre porque, para além de outras razões, sofremos um défice de cultura e de cidadania; de falta de educação democrática, de ausência de valores e sentido de responsabilização, e porque manifestamos complacência com a violação das leis, abusos de poder e autoridade”.

E é, em parte, com isso que ele teve de lidar durante os seis anos em que esteve à frente do Órgão. Um exercício de cujo fim ele se orgulhava.

Mesmo de se ter retirado dos cargos, Rui Baltazar continuou a pensar sobre o país. Por exemplo, lá esteve quando a Ordem dos Advogados trocou de bastonário, de Tomás Timbane para Flávio Menete. Muito mais do que pensar na circunscrição jurídica, recuperou o que aprendera nas Ciências Político-Económicas para fazer análise sobre a crise que se vivia em 2016, depois das dívidas ocultas.

Dizia que o país tinha passado por aquela situação porque “se promoveu uma prematura e perigosa euforia, propícia a esbanjamentos, megalomanias, fundados em eldorados energéticos anunciados com todas as nefastas consequências a que agora temos de assistir”.

Nesta ocasião, Rui Baltazar mostrou a sua estupefacção em relação à sociedade que se está a construir no país, centrando-se nos altos níveis de corrupção e impunidade.

No ano passado, na celebração dos 20 anos do Conselho Constitucional, Rui Baltazar também escreveu um artigo que consta da quarta edição de “O Guardião”, intitulado “Lastimável do Estado de Direito Moçambicano”. Nele reflecte sobre os problemas que enfermam a política nacional, mesmo depois das revisões constitucionais.

“Os acontecimentos ulteriores a tal aprovação ilustram bem como se agudizaram as contradições existentes, o que bem pode ser explicado, entre outros factores, pela continuidade do exercício exclusivo do poder político pela mesma força política, por uma aplicação mecânica duma prática copiada de outros modelos ditos democráticos segundo a qual, quem ganha eleições, ganha tudo, instituindo uma espécie de ditadura de maiorias ao invés de se privilegiar uma política de constante diálogo construtivo e continuado e de busca, à maneira bem africana, de consenso geradores de partilhas de exercício de poder e de benefícios”, escreveu.

Falou também do aceso debate em relação à dupla função do Presidente da República. “Já em outra oportunidade chamei atenção para a displicência com que se ignora o comando contido no artigo 148 da Constituição, desprezando a sua aplicação e fazendo coincidir na mesma entidade a chefia do Estado com a chefia de um partido, factor este que é enorme obstáculo ao funcionamento verdadeiramente democrático do Estado moçambicano. Enquanto não se desfazer esse nó górdio, dificilmente se poderá caracterizar o Estado moçambicano como democrático”.

Falou do passado, do presente e dos desafios que se aproximam ao órgão do qual foi o primeiro dirigente. “O Conselho Constitucional vai, no futuro próximo, ter de tomar graves decisões, com grande impacto na sociedade moçambicana, e deve estar preparado para tal, contribuindo, através da sua independência e da aplicação intransigente, correcta e exemplar da Constituição e das leis, para a paz social, para o melhoramento da democracia e para que se faça justiça a cada cidadão;”

Antes mesmo de ele escrever o que pensa do constitucionalismo moçambicano, na edição anterior de “O Guardião”, outras pessoas tinham escrito sobre si. Uma delas foi Joaquim Chissano, antigo Presidente da República e colega do Governo de Transição e do primeiro Governo de Moçambique.

“Trabalhámos, depois, no governo de transição, eu como Primeiro-ministro e ele como Ministro da Justiça. Foi uma tarefa muito difícil. A soberania e a legalidade eram ainda portuguesas e, apesar da orientação progressista das novas autoridade de Lisboa, a estrutura legal em vigor continua a proteger e a favorecer os interesses dos estrangeiros. De uma forma muito inteligente e com rigoroso respeito pela legalidade, o nosso ministro iniciou uma revisão das questões mais chocantes da ordem colonialista e começou a preparar a reforma jurídica que se seguiria à proclamação da independência. Foi relevante a sua participação no colectivo que concebeu a elaboração da Constituição”.

Na mesma edição, houve vários outros textos de muitos autores, um dos quais Mia Couto, que recebeu o desafio de escrever sobre Baltazar como um lisonjeio.

“Não queria estar longe quando tivesse que se dizer: eis um moçambicano cuja grandeza e dignidade não foram feridas depois de tanta batalha. Eis uma pessoa que nos ajuda a ser mais humanos, a sermos mais humanidade”.

Rui Baltazar escreveu também na edição número 2 d´O Guardião, onde escreveu um artigo com o título “Origem e Desenvolvimento do Constitucionalismo Moçambicano: Antecedentes da CRM 90 com referência aos antecedentes da CRM 2004”. É esta caneta que se pôs, a voz que se calou, e o cérebro que parou de produzir novas reflexões, na madrugada deste sábado.

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