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Rememorando o poeta dos vaticínios infalíveis

Por Luís Nhachote *

 

Ficou para os manuais da história, o facto de José Craveirinha, o poeta-mor moçambicano, ter sido a primeira figura não ligada ao poder a repousar na Praça dos Heróis, tido como o panteão da nata da Frelimo.

O ano de 2002, em que ele completou 80 anos de idade, foi decretado pelo Conselho de Ministros como o ano de José Craveirinha.

Foi uma justa homenagem, considerando o percurso deste nacionalista, que é também considerado o maior e o mais conhecido poeta moçambicano de todos os tempos. Poeta de dimensão universal e intelectual de grande porte, que contribuiu na formação e construção da moçambicanidade, Craveirinha usou a sua escrita para denunciar e combater a incoerência as injustiças coloniais.

Mesmo depois da morte física do poeta dos vaticínios infalíveis, a sua vasta e importantíssima obra literária fica imortalizada.

 De referir que  a sua obra maior, “Karingana wa karingana”, foi classificada como um dos cem maiores livros de África do último século.

 

O percuso

 

De nome completo José João Craveirinha, nasceu numa casa de madeira e zinco, aos 28 de Maio de 1922, na então cidade de Lourenço Marques.

Filho de pai algarvio e mãe maronga, iniciou a sua actividade jornalística no “O Brado Africano”, um jornal de profunda militância nacionalista desde o início do século passado.

Colaboraram para o Brado Africano grandes nomes como os irmãos Albasini, Estácio Dias, Karel Pott (primeiro advogado moçambicano no tempo colonial), a falecida poetisa Noémia de Sousa e outros intelectuais sonantes da época.

Passou depois para o Notícias (onde, durante muitos anos, manteve uma coluna semanal, Conctato). Escreveu também para o Notícias da Tarde; Voz de Moçambique; Notícias da Beira (onde volta a assinar uma nova coluna semanal, Recontacto); Tribuna, Cooperador de Moçambique e Tempo.

Mas foi como poeta que Craveirinha se tornou figura emblemática.

A sua obra poética é reconhecida unanimemente como uma das mais originais do espaço lusófono e não só, tendo, por isso, recebido várias distinções e menções honrosas. Em 1991, em Lisboa, Portugal, como colorário da grandeza da sua obra, recebeu o mais almejado prémio literário da língua portuguesa: o prémio Camões.

Era o coroar de um mestre da profissão mais solitária do mundo: a escrita.

A sua obra em prosa, compreendendo a crónica, o conto e o ensaio, permanece ainda desconhecida do grande público.

Para além da sua actividade como jornalista e poeta, Craveirinha desempenhou um papel de relevo na vida da Associação Africana a partir dos anos cinquenta, onde era presidente da mesa da assembleia geral até ao seu encerramento.

O poeta também foi desportista, tendo praticado futebol no Clube Desportivo João Albasini e no Clube Desportivo de Lourenço Marques e treinador de atletismo.

 

O poeta

 

Não se afigura fácil dissertar sobre a poesia de Craveirinha sem compreender o contexto em que ele escreveu: as suas inquietações, ansiedades, dúvidas, sonhos, aspirações. “Falar sobre a poesia de um verdadeiro poeta é sempre um acto de indiscrição em que se comete a intrusão e desrespeito pelo autor também, mesmo quando se diz bem”…(1) As palavras são da autoria do próprio punho de Craveirinha, numa crónica publicada a 21 de Dezembro de 1969, acerca do livro do seu contemporâneo e amigo Rui Knopfli, inserida no “A voz de Moçambique”.

Portanto para se falar de Craveirinha é preciso recuar no tempo e no espaço em que os próprios versos carregados de uma força prodigiosa e protestatária que nos permitem ver as realidades, as atrocidades daquela época no período antes e pós-independência, como teremos oportunidade de ver quando nos referimos ao livro “Babalaze das Hienas”. Em José Craveirinha encontramos três poetas: o crítico, o eligíaco e o militante que se dissociam de um todo através de vários períodos históricos.

Eduardo Mondlane, “fundador” da Frelimo, no seu “Lutar por Moçambique” no capítulo 5, intitulado “Resistência – À procura dum movimento nacional” faz referência ao papel dos intelectuais durante o regime colonial.

Diz Mondlane: “Na poesia política dos anos quarenta e cinquenta predominavam três temas: reafirmação da África como mãe-pátria, lar espiritual e contexto de futura nação; levantamento do homem negro noutras partes do mundo, chamada geral à revolta(…) No grito negro, Craveirinha conseguiu dar um dos mais vividos testemunhos de alienação e revolta que jamais foram escritos: ver livro “Xigubo” página 9 (nove)”.

Poucos do grupo de Craveirinha conseguiram escapar ao seu isolamento e fazer ligação entre a teoria e a prática(2)

Em paralelo, Craveirinha desenvolve activdade política, um pouco na clandestinidade.

No final dos anos quarenta, juntamente com o seu amigo e decano do fotojornalismo, Ricardo Rangel, Noémia de Sousa e Dolores Lopes, redige uma carta exigindo a independência de Moçambique.

Em 1963, um pouco antes do início da luta armada, o poeta, no auge do protesto escreve um poema frontal ao governador colonial. Para alguma compreensão vale apena citar alguns extractos. Leia:

 

Excelentíssimo Sr. governador

 

Excelentíssimo senhor governador.

Excelência,

Eu abaixo assinado mui respeitosamente venho

dizer que o poeta de coração na sua terra

do alto da sua protética insignificância

não passa de um simples fabricante

de problemas e vaticínios

mais tarde ou mais cedo

sempre certos

(…..)

Agora

Excelentíssimo senhor governador.

Quer prender? …prenda!

quer matar? …mate!

Mas só mais isto: Muito cuidadinho.

Muito cuidado com a alergia dos poetas

Muito cuidadinho senhor governador! (3)

 

O poema acima explica as razões por que a PIDE/DGS esteve sempre no seu encalço. O poeta no auge do protesto, e, em plena praça pública reclama o bem mais precioso de todos os homens: a liberdade e a vida. Estas e outras atitudes custaram-lhe a prisão entre 1965 e 1969, na companhia de Malangantanak e Rui Nogar. É na cadeia que nasceram os versos de um dos seus mais conhecidos livros: Cela 1.

Craveirinha é também reconhecido pela crítica especializada como o pai da metáfora irónica, provocatória e por que não profética.

O seu livro de estreia “Xigubo” rico de versos que carregados de visões Messiánicas, é o depositário sincero de um crente: Um Moçambique para moçambicanos.

No “poema do futuro cidadão”, em que se assume como cidadão de uma nação que ainda não existe, de uma forma metafórica de que se especializou, o poeta deixa a ideia de que só existiria se o País fosse livre do julgo colonial.

E, como seus vaticínios são sempre certos, onze anos depois, cumpria-se a sua primeira grande profecia: Moçambique ficava independente e Craveirinha como todos nós tornou-se cidadão deste País, pelo qual sonhou, lutou e escreveu.

Nos seus escritos também pontificava a negritude, na senda de poetas como Leopold Sedar Senghor, Aime Cesaire e Leon Damas,

Assume-se como grande clamador da unidade nacional, como podemos ver no brilhante ensaio de Rui Baltazar (…) mas antes de querer ser Universal, Craveirinha quer-se moçambicano.

Esta é a característica que devemos assinalar.

O poeta vence uma das mais graves limitações que atormentam e flagelam os homens em África: os seus versos contêm uma mensagem que transforma todo Moçambique num todo matizado, é certo, mas sempre um todo coeso e global. Homens do Norte a Sul, do Rovuma ao Maputo, cruzam até formar uma identidade, tal como os grãos de areia que se compactam.

Na “epístola Maconde” os macondes ganham alma de sena, os senas sangue de ronga, os rongas olhos de macua, os macuas gritos de chope, os chopes iras de zulu, vencendo as diferenças tribais, linguísticas, religiosas e étnicas (…)

E é esse mesmo abraço fraternal que Craveirinha envolverá não só os negros mas todos os homens, seja qual for a cor da sua pele…(4)

Com a proclamação da independência e a carnificina entre os irmãos que se seguiu, o sentimento de revolta haveria de se instalar no coração do poeta e entregou-nos o livro. “Babalaze das Hienas”.

Neste trabalho, o poeta aponta-nos, sem equívocos, a falta de consciência, de respeito pela vida humana e a autêntica loucura de guerra que olha pelo negativismo. Da falta de ética das leis da civilização, por todos aqueles que se consideravam democratas e criadores da morte. Veja o poema “eles foram lá” da pág. 19. Vejamos alguns extractos:

 

Vovô

 Amanhã não precisa

 Ir ao hospital

 Ontem eles foram lá

 deram maningue tiros

 partiram tudo, tudo

 (…) e violaram a senhora parteira(5)

 

Mas antes, em 1974 entregou-nos “Karingana wa karingana”,a sua mais festejada obra e celebramos e fizemos dezanove vezes o refrão:

“Sia-Vuma”. Neste mesmo ano, integrando um grupo de ex-presos políticos esteve em Dar-Es-Salaam, para o estabelecimento das conversações entre a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) e Portugal.

E é em Sia-Vuma, em versos de esperança antevia um País de campeões olímpicos e como as suas profecias sempre certas, 26 anos depois cumpriu-se a maior de todas: Maria de Lurdes Mutola, que ele mesmo levou e incentivou-a a praticar atletismo, “lavrada” pelas mãos do seu filho mais velho, Stélio Craveirinha, em Setembro de 2000 em Sidney, Austrália, cortava a meta em primeiro lugar, para gáudio de todos os moçambicanos e da África na primeira medalha de ouro olímpica ganha por Moçambique.

A bandeira moçambicana foi içada para o alto do mastro ao som do hino nacional. Observemos o extracto desta grande profecia:

 (…) E seremos viajantes por conta própria

 jornalistas, operários com filhas também dançarinas de ballet

arquitectos, poetas com poemas publicados

compositores e campeões olímpicos

‘‘Sia-Vuma’’(6)

 

 

Os prémios

1959- Prémio da cidade de Lourenço Marques

1961- Prémio Reinaldo Ferreira (Beira)

1961- Prémio ensaio

1962- Prémio Alexandre Dáskalos (casa dos estudantes do império, Lisboa)

1975- Prémio Nacional da poesia da Itália

1975- Medalha de ouro da comuna de Concesio (Bréscia-Itália)

1983- Prémio Lotus (associação dos escritores afro-asiáticos)

1985- Medalha Nachigwea, atribuída pelo governo moçambicano

1987- Medalha de mérito da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo

1991- Prémio Camões

1997- Prémio vida literária, AEMO

1998- Prémio Rui de Noronha

2002- A Universidade Eduardo Mondlane atribuiu-lhe o grau de Doutor Honoris Causa.

 

A obra

– Chigubo, Lisboa, Casa dos estudantes do império, 1964

– Xigubo, Maputo, Instituto Nacional do Livro e Disco (INLD) 1980, AEMO-1992.

– Cântico a Um Dio de Catrame, Milano Lerice, ED, Bilingue, 1966.

– Karingana wa karingana, Lourenço Marques, 1974, Maputo, INLD, 2ª Ed. 1982; Maputo, AEMO-1995

– Cela 1, Maputo (INLD) 1980

– Maria, Lisboa, ALAC-África Literatura, Arte, Cultura, 1998

– Voglio essere tamburo, Venezia, Centro Internacional delle Gráfica, Coop, 1991

– Babalaze das Hienas, Maputo, AEMO-1997

– Hamina e Outros, Maputo, Ndjira, 1997

– Maria, Maputo, Ndjira, 1998, Lisboa, Caminho, 1998

– Contacto, (crónicas), Maputo, 1998, Centro Cultural Português, 1999.

 

 

Bibliografia consultada:

 

(1) Craveirinha, José, “Contacto e outras crónicas” páginas 55 a 60, Instituto Camões 1999

(2) Mondlane, Eduardo, “Lutar por Moçambique” páginas 115 a 119, Penguim books, 1969

(3) Diálogo, Cadernos, “As palavras amadurecem 1” páginas 84 a 86

(4) Baltazar, Rui, “Sobre a poesia de José Craveirinha”, páginas 39 e 40, “Cadernos de consulta” (AEMO, nº7)

(5) Craveirinha, José, “Babalaze das Hienas”, página 19, AEMO, 1995

(6) Craveirinha, José, “Karingana wa karingana”, páginas 139 a 142, AEMO, 1995.

 

*Jornalista e aspirante a escritor.

 

 

 

 

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