(Comeu e não limpou a boca)
Contexto
Na última semana, foi submetido à apreciação pública o Relatório sobre a Conta Geral do Estado de 2024. Como tem sido recorrente, as manchetes dos jornais e os debates televisivos giraram em torno de um tema que a opinião pública já conhece demasiado bem: o desvio e a má utilização dos recursos do erário. O caso mais citado foi o desaparecimento de 33,6 milhões de dólares provenientes das receitas do gás natural, verba que, de acordo com a lei, deveria ter sido canalizada para o Fundo Soberano.
A indignação gerada por este exemplo emblemático dominou as discussões. Contudo, a pergunta que se impõe é se tais desvios representam a causa dos problemas da governação em Moçambique ou se, pelo contrário, são apenas manifestações de algo mais profundo. Ao observar o conjunto de anomalias descritas pelo Tribunal Administrativo, fica claro que não se trata de episódios isolados. Eles são sintomas de uma doença mais grave: a erosão dos fundamentos do Estado de Direito.
É nesse quadro que este artigo procura ir além do imediato. Mais do que contabilizar valores perdidos ou indignações pontuais, o objectivo é analisar as condições estruturais que permitem tais desvios. O problema maior não está apenas na gestão deficiente de recursos públicos, mas na prática persistente de governar fora dos limites da legalidade, reduzindo a lei a um enunciado sem força vinculativa. Explorar esta contradição — entre a promessa normativa e a realidade governativa — é essencial para compreender as fragilidades da nossa democracia e os desafios para a sua consolidação.
O percurso normativo: avanços no papel
A noção de Estado de Direito ocupa um lugar central na teoria e na prática da governação moderna. Ela assenta na premissa de que a autoridade pública deve ser exercida dentro de limites legais claros, universais e obrigatórios para todos. A legalidade não é apenas um enunciado formal: é um princípio estrutural que organiza a relação entre poder e norma, garantindo previsibilidade, igualdade e justiça.
Em Moçambique, a evolução constitucional e legislativa do país mostra, à primeira vista, um esforço considerável para se aproximar deste modelo. Desde a independência, a Constituição foi revista em múltiplas ocasiões para incorporar elementos da democracia representativa, da descentralização e dos direitos fundamentais. Foram igualmente aprovadas leis detalhadas em domínios cruciais: gestão orçamental, administração pública (ex: lei n.º 9/2002 e lei n.º 4/2011), exploração de recursos naturais (ex: lei n.º 20/2014) combate à corrupção (ex: lei n.º 6/2004), criação de tribunais especializados (ex: lei n.º 18/2018), regulação da actividade económica (ex: lei n.º 1/2022).
Acresce ainda o desenvolvimento de instrumentos electrónicos modernos, como o e-SISTAFE, destinados a garantir maior transparência na gestão das finanças públicas. O quadro normativo, portanto, é vasto e sofisticado.
Contudo, o Estado de Direito não se mede pela quantidade de leis ou pela sofisticação tecnológica. Mede-se pela sua aplicação efectiva, pela igualdade perante a lei e pela capacidade das instituições em fazer cumprir as regras sem distinção, e no ordenamento jurídico moçambicano são elas a Assembleia da República (AR) e a Procuradoria Geral República (PGR).
O Relatório TA 2024: um espelho desconfortável
O recente Relatório do Tribunal Administrativo relativo à Conta Geral do Estado de 2024 ilumina esta interrogação com clareza perturbadora. Segundo o Tribunal Administrativo, as contas apresentadas pelo Executivo apresentam violações reiteradas das normas de elaboração e execução orçamental, incumprimento sistemático de procedimentos contabilísticos definidos há mais de duas décadas, elaboração de mapas financeiros fora do sistema electrónico concebido para garantir integridade, ausência da cobrança de impostos sobre a renda mineira, não-transferência das receitas florestais e faunísticas às comunidades locais, omissão das contribuições destinadas ao Fundo Soberano, e ainda a contracção de empréstimos de grande dimensão sem autorização parlamentar. Este padrão persistente remonta a 2002, ano em que foi aprovada a Lei n.º 9/2002 (SISTAFE), cujas disposições continuam, duas décadas depois, a ser sistematicamente desrespeitadas, mesmo com as recomendações recorrentes do TA. Portanto, trata-se de um catálogo de práticas que não são meros acidentes administrativos: são sinais de uma governação que, em múltiplos momentos, actua como se a lei fosse facultativa.
A gravidade não reside apenas no detalhe das irregularidades. Reside no princípio que é violado. Num Estado de Direito, a lei é universal: aplica-se a todos, do cidadão mais humilde ao governante mais poderoso. Quando o governo ignora normas que ele próprio aprovou, transmite uma mensagem destrutiva: que a lei é apenas um instrumento de conveniência política, válido para uns, dispensável para outros. O resultado é a corrosão da confiança social e a erosão da legitimidade das instituições.
Implicação de um “Estado de Esquerda”
As consequências desta erosão, como vimos acima, multiplicam-se em diferentes esferas. (ii) No plano económico, a não-cobrança de impostos sobre a renda mineira (IRRM) representa uma perda colossal de receitas num país que enfrenta desafios severos em matéria de financiamento de serviços públicos.
Vale lembrar ainda que, num contexto de pobreza estrutural, cada metical não arrecadado corresponde a escolas não construídas, hospitais não equipados, estradas não reabilitadas. Por outro lado, (ii) no plano social, a não-transferência de receitas às comunidades constitui não apenas uma injustiça, mas uma violação de direitos reconhecidos em lei. As populações que vivem em zonas de exploração florestal, faunística ou mineira vêem-se privadas de compensações que deveriam mitigar os custos ambientais e sociais da actividade extractiva. A frustração resultante alimenta tensões locais e mina o sentido de pertença ao projecto nacional.
(iii) No plano político, a repetição de práticas ilegais por parte do Governo gera uma cultura de impunidade. Se quem governa pode violar a lei sem consequências, por que razão haveria o cidadão comum de respeitá-la? O efeito de contágio é inevitável: multiplicam-se os comportamentos informais, a evasão fiscal, as práticas corruptas. O Estado de Direito perde a sua função ordenadora e transforma-se num enunciado vazio, incapaz de regular a vida colectiva. De lembrar que, durante as manifestações, a polícia se tornou alvo por se entender que esta não seguia a lei.
Por fim, o relatório do Tribunal Administrativo também revela outra fragilidade: (iv) a debilidade dos mecanismos de fiscalização. Desde 2002, as recomendações desta instituição são reiteradamente ignoradas. Esta ausência de consequências transforma o controlo institucional num ritual formal, sem eficácia real. O parlamento, por seu turno, raramente exerce a sua função fiscalizadora com independência plena, funcionando muitas vezes como extensão do executivo. Por sua vez, a PGR é eficiente em perseguir um ladrão de galinhas, ou um nhoguistas do Mercado Estrela, mas perde capacidade quando se trata dos Boisses. O resultado é um ciclo vicioso: relatórios são produzidos, irregularidades são registadas, mas a governação prossegue como se nada tivesse sido dito.
Este padrão não é exclusivo de Moçambique, mas reflecte um dilema frequente em democracias jovens e em Estados marcados por legados autoritários: a dificuldade de transformar normas formais em práticas enraizadas. O que se observa é uma espécie de “dupla realidade”: por um lado, uma Constituição e um corpo jurídico que reflectem os mais avançados princípios democráticos; por outro, uma prática governativa que frequentemente os ignora. Entre a promessa normativa e a prática política abre-se um vazio que fragiliza a própria ideia de democracia.
Um sistema político pode organizar eleições periódicas e manter uma aparência institucional democrática, mas, sem Estado de Direito efectivo, corre o risco de degenerar em formalismo. As eleições deixam de ser suficientes para legitimar o poder quando este se exerce acima ou fora da lei. A democracia reduz-se então a um ritual procedimental, desprovido da substância que a sustenta: a submissão do poder à norma.
Como inverter esta trajectória?
A resposta não se encontra na aprovação de mais leis, mas na criação de condições para que as existentes sejam respeitadas. Isso implica três transformações decisivas, nomedamente:
- A primeira é institucional: órgãos de fiscalização como o Tribunal Administrativo devem ter autoridade vinculativa, de modo que as suas recomendações produzam consequências jurídicas e políticas concretas. Isto implica transformá-lo urgentemente em Tribunal de Contas;
- A segunda é política: a Assembleia da República deve reforçar a sua independência em relação as amarras políticas, exercendo de forma efectiva o papel de controlo do executivo. Os partidos da oposição devem tomar liderança e iniciativa (será necessário contratar serviços especializados para prestar a assistência técnica);
- A terceira é cultural: é preciso cultivar uma cidadania que veja no Estado de Direito um património comum, e não uma imposição distante. Sem pressão social, as instituições permanecem vulneráveis à captura pelo poder político.
Moçambique encontra-se, assim, perante uma escolha de fundo. Ou transforma o seu património normativo numa realidade prática de governação regulada pela lei, ou continuará prisioneiro de uma contradição em que a legalidade é proclamada mas não vivida. A história mostra que regimes que ignoram sistematicamente o Estado de Direito acabam por perder não apenas a confiança dos cidadãos, mas também a capacidade de assegurar desenvolvimento sustentável. Na Venezuela, a fragilização das instituições e o desrespeito sistemático pelas normas constitucionais geraram uma crise humanitária sem precedentes, demonstrando como a erosão da legalidade pode corroer tanto a economia como a coesão social.
A arbitrariedade pode parecer vantajosa no curto prazo para quem governa, mas no longo prazo mina a própria sobrevivência do sistema político.
