Espaço de análise: Alberto da Cruz e Egídio Chaimite
Contexto: Desde que emergiu de uma devastadora guerra civil, há mais de três décadas, Moçambique ficou conhecido como um país que faz “apenas o suficiente” para evitar o colapso. O país sobreviveu a repetidos episódios de violência, crescente polarização política e crises pós-eleitorais, com base em acordos de paz liderados por elites políticas, que priorizam a estabilidade de curto prazo em detrimento da reconciliação, mais duradoura.
O mais recente dos acordos é o Compromisso para um Diálogo Nacional Inclusivo 2025 (CDNI), assinado após a crise eleitoral de 2024, marcada por protestos generalizados e repressão violenta por parte do Estado. O CDNI reflecte uma ambição política mais ampla. Teoricamente, visa desencadear um diálogo nacional que enfrente as falhas estruturais da governação, incluindo a reforma constitucional, a independência do poder judicial, a reestruturação do sistema eleitoral, a descentralização fiscal e administrativa, bem como a criação de mecanismos de reconciliação. Este acordo marca o quarto grande pacto político desde 1992.
Este artigo nasce da necessidade de aprofundar o debate sobre a reconciliação nacional em Moçambique, um dos temas centrais do novo acordo político pós-eleições de 2024. Embora frequentemente tratada de forma abstrata ou protocolar, a reconciliação ganhou nova visibilidade e densidade política após o discurso do antigo presidente Joaquim Chissano na recente Conferência dos Partidos Libertadores da África Austral, onde reconheceu publicamente os erros cometidos pelas elites dirigentes em nome da unidade nacional. Essa autocrítica rompe décadas de silêncio e abre espaço para discutir os limites dos modelos anteriores de reconciliação baseados na amnistia, no silenciamento das vítimas e na exclusão de amplas camadas sociais. Ao propor uma leitura crítica, comparativa e propositiva, este artigo busca contribuir para o actual processo de diálogo político, oferecendo elementos concretos que permitam transformar a reconciliação de um ideal retórico num compromisso institucional e social efectivo.
Reconciliação: o que é?
Longe de se restringir ao perdão ou à convivência pacífica, reconciliação nacional é um processo complexo de reconstrução de laços sociais, institucionais e históricos profundamente afectados por violência, exclusão ou opressão. O seu ponto de partida remonta a tradições religiosas, sobretudo as fés abraâmicas, onde a reconciliação simbolizava o restabelecimento de harmonia e o perdão divino. Essa herança moral influenciou abordagens modernas, orientadas para a justiça histórica e a reparação colectiva.
Ao longo dos séculos, o conceito ganhou forma política, especialmente com o surgimento das comissões da verdade — como a da África do Sul — que colocaram o testemunho das vítimas no centro da reconstrução nacional. A reconciliação passou então a ser entendida como justiça restaurativa: ouvir, reconhecer, perdoar — e reconstruir. No entanto, esse modelo foi alvo de críticas, sobretudo quando desacompanhado de reformas estruturais, justiça económica ou participação efectiva das populações afectadas. A reconciliação entre elites pouco transforma realidades marcadas por desigualdade e ressentimento.
Nesse contexto, a reconciliação deve ser assumida como o ponto de confluência entre verdade, justiça, misericórdia e paz. Não é um evento, mas um espaço político e emocional no qual comunidades divididas confrontam o passado para construir um futuro comum. Esse modelo enfatiza que, sem coragem moral e compromisso com a verdade, não há cura, muito menos transformação.
Hoje, a reconciliação nacional exige mais do que narrativas de unidade, e este é um imperativo em contextos como o de Moçambique. Depois de sucessivos acordos, que não produziram uma paz duradoura, a reconciliação depende da reconstrução da confiança entre cidadãos e instituições, do reconhecimento das injustiças históricas e da redistribuição real de poder e oportunidades. Sem isso, a reconciliação corre o risco de ser apenas um ritual político, desconectado das dores e das aspirações do povo.
O preço do silêncio: o passado
A guerra civil moçambicana (1977–1992), travada entre o então movimento rebelde da RENAMO e o governo da FRELIMO, deixou mais de um milhão de mortos e milhões de deslocados. O Acordo Geral de Paz (AGP) de 1992, assinado em Roma, foi celebrado globalmente como um modelo de paz negociada. No entanto, desde o início, apesar da sua abordagem pragmática, era minimalista: amnistia total para todos os actores, integração política e socioeconómica dos líderes da RENAMO e uma decisão conjunta de enterrar o passado. Ou seja, não houve comissões da verdade. Nenhum julgamento de crimes de guerra. Nenhum reconhecimento público das vítimas. A lógica era simples: esquecer para sobreviver. Em outras palavras, a prioridade era virar a página, e não compreendê-la.
Entretanto, o silêncio institucionalizado não impediu o retorno da violência. Em 2013, a RENAMO voltou a insurgir-se, denunciando promessas do AGP não cumpridas e exclusão política. O acordo que se seguiu, em 2014, restaurou o cessar-fogo, oferecendo novamente benefícios militares e eleitorais. Em 2019, após novos confrontos, um pacto semelhante prometeu descentralização e desmobilização de combatentes, sem alterar o padrão de negociações rápidas, tecnocráticas e centradas em elites.
O Compromisso de 2025 surge de um cenário distinto: não de guerra armada, mas de protestos urbanos, desencadeados por uma crise eleitoral e agravados por desconfiança institucional. Ao contrário dos anteriores, o novo acordo menciona desigualdade estrutural e promete inclusão mais ampla. Ainda assim, carrega o peso de sua genealogia — nascido dentro de uma tradição de pactos reactivos, limitados ao restabelecimento da ordem, e sem raízes claras num projecto de reconciliação nacional.
Para além das elites: o presente e o futuro
Hoje, a reconciliação nacional exige mais do que narrativas de unidade e pactos de silêncio entre as elites políticas. No país, onde a paz, como acima foi dito, tem sido garantida por acordos entre lideranças partidárias, mas não sustentada por confiança popular, é evidente que os limites desse modelo já foram alcançados. A reconciliação, para ser real, precisa de deixar de ser uma linguagem de cúpula e tornar-se um processo vivido e participado pela base da sociedade.
O discurso recente do antigo presidente Joaquim Chissano aponta nessa direcção. Ao reconhecer que, “em nome da unidade nacional”, se abafaram vozes críticas e se bloquearam processos de renovação democrática, Chissano quebra a tradição de autojustificação das forças de libertação e interferência da mão externa. A sua fala revela que os próprios arquitectos do sistema pós-independência percebem os riscos de uma reconciliação que se tornou ritualizada: um pacto entre antigos adversários, mas não entre Estado e cidadão.
A questão que prevalece é: desta vez é de vez? Mais importante ainda, conseguirão os actores políticos e a sociedade aproveitar este momento para fazer uma discussão profunda sobre reconciliação que vá além do superficial e, finalmente, confrontar as feridas históricas e institucionais que continuam a fragmentar a nação?
Esta é uma importante reflexão, sobretudo neste momento em que o país se prepara para embarcar num processo de Diálogo Nacional.
Como alertou recentemente Joaquim Chissano, há que fazer mudanças. Voltando ao passado recente, destacou que “Em nome da unidade nacional, … mostrámos intolerância às vozes críticas e silenciámo-las. Em nome da estabilidade, fechámos o espaço para a renovação… falhámos em criar oportunidades para a participação activa da juventude e das mulheres.”
É preciso romper o ciclo de pactos de silêncio. Este exercício implica abordar e confrontar directamente os factores estruturais da violência e da exclusão: desigualdades regionais, concentração de recursos, instituições capturadas, juventude sem futuro económico e político.
Há alguns sinais promissores, que merecem ser capitalizados: uma vez que o CDNI inclui elementos que, se levados a sério, podem representar um novo caminho: mecanismos locais de resolução de conflitos, promessas de inclusão económica e política, e fortalecimento da descentralização. Mais importante ainda, traz à tona a ideia de que a reconciliação exige também o restabelecimento da confiança nas instituições do Estado, respeito pelas liberdades individuais e a garantia de que todas as vozes possam ser ouvidas — não apenas toleradas, mas influentes. O desafio, no entanto, não está apenas no conteúdo, mas no compromisso real com a sua implementação. Sem vontade política, mesmo os melhores dispositivos legais permanecem letra morta.
A reconciliação de que Moçambique precisa é aquela que descentraliza a voz. Isso implica incluir lideranças comunitárias, organizações da sociedade civil, igrejas, universidades e especialmente os jovens, não como figurantes em cerimónias oficiais, mas como co-autores de um novo pacto de cidadania. Sem essa abertura, o país continuará preso a ciclos de instabilidade mascarados por acordos formais.
Em última instância, a reconciliação deve deixar de ser um processo de e entre elites e passar a ser um processo nacional, entre o Estado e o seu povo, entre o passado e o presente, entre a memória e o futuro. Como demonstram experiências bem-sucedidas em contextos africanos diversos, da África do Sul à Serra Leoa, a reconciliação duradoura só floresce quando reconhece a dor de todos, redistribui o poder de decidir e fortalece a confiança colectiva nas instituições.
Que caminhos?
Se Moçambique quiser transformar os acordos de paz em reconciliação genuína, será preciso mais do que boas intenções e promessas formais. A experiência acumulada no país e em outros contextos africanos mostra que a reconciliação duradoura só é possível quando vai além da elite política, enfrenta as causas profundas do conflito e devolve dignidade às vozes silenciadas. Com base nisso, propõem-se as seguintes recomendações, baseadas nas lições de vários países:
- A primeira lição vem da África do Sul, cuja transição democrática foi guiada por um processo constitucional gradual, estruturado e amplamente participativo. Ao contrário de reformas apressadas entre elites, os sul-africanos combinaram técnica jurídica e negociação política, culminando numa constituição legitimada por milhões de contribuições populares. Para Moçambique, isso sugere que a actual reforma constitucional, prevista no acordo de 2025, deve ser amplamente debatida e validada, entre outros, por referendo, garantindo, não só legalidade, mas também legitimidade social;
- Da Libéria, emerge a importância de mecanismos formais de justiça e verdade. Após a sua guerra civil, o país criou uma Comissão de Verdade e Reconciliação com poderes vinculativos e articulada com órgãos independentes de reforma da governação. Essa abordagem sinaliza que a verdade não é um luxo, mas uma necessidade em sociedades marcadas por trauma. Em Moçambique, onde nunca houve comissões públicas sobre a guerra civil ou os episódios de violência pós-eleitoral, essa experiência convida à criação de estruturas capazes de reconhecer vítimas, emitir recomendações concretas e restaurar a confiança social. Devem-se evitar as recorrentes amnistias, sob pena de se repetirem os mesmos erros do passado;
- A experiência de Serra Leoa evidencia a necessidade de reformar profundamente as forças de segurança e o sistema de justiça. Ao despartidarizar o exército e profissionalizar a polícia, com apoio internacional e envolvimento comunitário, o país reduziu drasticamente o risco de retorno à violência. Em Moçambique, onde o legado da politização das forças de segurança continua a alimentar desconfianças, esse exemplo mostra que neutralidade institucional e mediação local são pré-condições para a estabilidade;
- Do Ruanda, extrai-se uma poderosa lição sobre justiça restaurativa com base comunitária. As Gacaca Courts — tribunais locais baseados na verdade, perdão e reintegração — permitiram que o país processasse milhares de casos sem paralisar o sistema judicial, envolvendo directamente as comunidades no processo de cura. Moçambique pode adaptar essa lógica, promovendo fóruns de verdade e reconciliação locais, que não substituem a justiça formal, mas actuam onde o Estado muitas vezes não chega;
- Por fim, o Acordo de Belfast na Irlanda do Norte oferece um modelo institucional para sociedades historicamente polarizadas. Combinando partilha de poder, protecção legal a minorias e educação para a paz, o acordo construiu bases para a convivência democrática entre grupos antes irreconciliáveis. Em Moçambique, marcado por tensões entre as zonas Centro e Norte e o governo central, e por exclusão de grupos sociais como jovens e mulheres, esse exemplo aponta para a urgência de políticas que reconheçam a diversidade, ampliem a representação e eduquem para uma memória nacional inclusiva;
- Por fim, importa destacar a importância do combate à corrupção: este é um elemento essencial para a reconciliação, uma vez que desvios de recursos públicos que permanecem impunes alimentam a desconfiança, a exclusão e as desigualdades que estão na raiz dos conflitos. Sem instituições independentes, justiça equitativa e transparência, qualquer promessa de paz será percebida como vazia. A reconciliação só é possível quando o Estado demonstra, com acções concretas, que serve ao bem comum. Esta é uma temática que merece mais debates.
A reconciliação duradoura depende de oportunidades económicas concretas para todos, especialmente em regiões historicamente excluídas. Investimentos direccionados ao desenvolvimento local, acesso a crédito, formação profissional e inclusão de jovens e mulheres no mercado de trabalho, etc., ajudam a reconstruir laços sociais e reduzir tensões. Na África do Sul, programas de empoderamento económico como o Black Economic Empowerment buscaram corrigir desigualdades herdadas do apartheid, enquanto Ruanda implementou políticas de desenvolvimento rural integrado para reinserir comunidades afectadas pelo conflito. Esses exemplos mostram que justiça económica é parte indispensável da paz.
