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Quando o tempo se faz matéria entre encontros e desencontros

E como pintar as vozes sobrepostas, umas às outras, as ruas, as pessoas, a cidade, e tudo que deriva de tudo isso com um tacto subjectivista? Tomo e Manhice encontram-se no expressionismo. Para um a arte é um palco em que o inefável ganha vida e vibração, para outro é um espaço de reclamar o tempo que, por ser ela mesma, vai se resguardando atrás da cortina e, por vezes, fica empoeirado de tão esquecido, então a oficina é o local onde se gubuta (se sacode) essa poeira e traz de volta ao palco para a sua contemplação. Esse espaço onde há o inefável e a recuperação do tempo que dialogam, numa primeira fase de interpretação, foi inaugurado no dia 15 de outubro, do presente ano, na Galeria da sede do BCI, às 18 horas.

Os quadros, perfilados, são como uma escada que nos leva para o centro da cidade, ora para fora dela, ora para qualquer lugar, mas o seguro a se dizer aqui é que nos leva para dois centros em que a penetrabilidade é colocada sempre à prova, e esse é o seu interior. Vasco Manhiça e Bernardo Tomo são duas gerações que se encontram e se reencontram nessa e com essa exposição. Há esse gesto simbólico, como a tentativa de tornar toda a coisa urbana simbólica, em que dois amigos, depois de um longo período, reencontram-se. Contudo, há um encontro também das obras perfiladas na Galeria. Na verdade há encontros, num único mesmo espaço desses dois artistas plásticos.

O primeiro encontro é referente ao abstracto que é um material estético das oficinas dos dois. O facto em que nenhum facto consta nesses quadros exclui a possibilidade de uma serendipidade do quotidiano, ou seja, mergulha-se por entre as obras e, provavelmente, não há nenhum chão firme em que se pise que nos lembre a matéria de que somos, como seres que procuram sempre por referências. Sente-se esse estar com as nuvens nos pés, caminhar pela areia movediça e ainda sonhar em chegar a um destino. Entre a conotação e a denotação, esses dois artistas vão além dessa dualidade como Nietzsche foi além doutra dualidade, e chegam num espaço em que os significados são sempre subjectivos. Em todas as obras, há ausência de elementos do mundo real — e há quem questione o que é real, mas sou mais pragmático do que filosófico nesse caso — o que situa essa exposição, “A matéria do tempo”, num lugar além do real, do reconhecível, em poucas palavras, que situa no abstracto, onde içamos as mãos e nada pegamos.

O segundo encontro de Tomo e Manhice, duas gerações, revela-se precisamente no expressionismo. A ausência de figuras reconhecíveis, ou não pintando coisas, ou mesmo a não ilustração,  é uma característica potente e patente dessa exposição intitulada, acho que não havia revelado o nome da exposição, “A Matéria do tempo: fragmentos de um reencontro”, que também é uma característica do expressionismo. Há esse diálogo entre os dois artistas. Muito mais do que chegar em algum destino, o caminho é o que mais importa, para eles. A coisa, como tal, perde a relevância comparada à pintura rápida, que, no fim, revela querer evocar emoções, sentimentos e impulsos. O espontâneo, aqui, é o espírito dessas duas oficinas. Juntando o primeiro encontro e esse segundo, resulta em abstração expressiva, que é a tônica da exposição, em que, repito, a ideia e o objectivo final não são de representar a realidade, mas de representar estados interiores.

Essa constatação, faz-me duvidar muito dos discursos sobre cinquenta anos de independência, e o reviver da memória colectiva de um povo que tem no coração o 19 de outubro marcado, desde o Mbuzini. Parece uma relação forçada porque, se apresentada, num contexto outro, em setembro, por exemplo, essa temática viria à tona ou iria mudar também fazendo das obras refém das datas para significarem? E não esqueço que uma obra nasce, sempre, num contexto. Mas faz-se da coincidência, entre a inauguração da exposição e a data, um facto verificável e imutável para se atribuir o conceito de uma exposição? A questão seria outra, os artistas, ao compor esses quadros, tinham isso em mente? Tratando-se de arte abstracta, qualquer conceito, parece, concatena-se sem problemas. Está bem.

Entre encontros, há também desencontros. Uma simbiose que não se completa, para a nossa felicidade. Se ambos são abstractos e expressionistas, com pinceladas rápidas, cores da terra e quentes, e uma textura que agrava, num sentido inverso, a experiência sensorial trazendo-a à superfície, como se desse corpo às emoções que as querem revelar. Nesse dar das mãos, bifurcam-se nesse entroncamento: enquanto  Tomo usa mais a geometria, formas rectangulares, que até podem, ao se espremer a interpretação, chegar na razão de que se representa edifícios, janelas ou outros objectos, mas esses objectos são tão reais para esse meio abstracto e expressionista que se diluem. Em alguns quadros, tomo até recuperar um pouco a geometria que, aos poucos, nos vai lembrar à faces e casas, mas de forma tímida. O artista, com a abstração geométrica, faz a ponte entre o racional e o emotivo, a estrutura e o gesto expressivo.

Agora, Vasco Manhice é a abstração expressiva em estado puro. Não faz das geometrias a sua técnica de pintura. Manhice não se preocupa com as formas, não há forma nenhuma. Há apenas um pincel na mão e emoções na superfície da pele, estas que servem de bússola para o pincel. Só assim a casualidade faz sentido, onde a consequência disso são as linhas curvas, espiraladas, e sobrepostas. Essas linhas curvas e sobrepostas criam movimento dentro dos quadros, para-se um minuto e há um redemoinho, ou uma onda, ou uma coisa qualquer que gira nas nossas cabeças. 

Onde, para muitos, as cores e a textura são apenas o formal nas artes plásticas, como dito por Severino Ngoenha na FFlC, havendo ainda o significado. E terá que se ver o sentido e significado do quadro no diálogo entre signos ali expostos, nessa exposição, contrariamente, as cores ultrapassam esse formalismo para a própria matéria de significação, ou seja, passam a ser signos. Isso é até algo a se aceitar, mas numa exposição dessa natureza, em que as obras são uma abstração por completo, um título para cada quadro seria usado como uma premissa para uma interpretação mais ou menos segura. E a exposição peca nesse quesito, em que as obras são apenas perfiladas sem títulos. A ausência de um título pode ser propositada ou não, mas se perde aqui um ponto de partida para se reflectir sobre as mesmas de forma mais cautelosa. E sem contar que, com o título, vem o spoiler do contexto e tudo mais.

Parecendo que a curadoria trocou os títulos por numeração dos quadros, peça ainda mais ao não enumerar todos os quadros. Fazendo parecer que a curadoria apenas pendurou os quadros e deixou lá, sem esse cuidado de identificar os mesmos. Aliado à isso, há ausência das dimensões dos quadros, e alguma informação sobre técnicas, que, vendo, é mista.

Com tudo, a exposição “A matéria do tempo: fragmentos de um reencontro” encerra no dia 27 deste mês em curso. Entre formas geométricas e linhas espiraladas, fundem-se os artistas nesse diálogo entre o abstracto e o expressionista, em que o pulsar da cidade e das ruas no seu interior é candente.

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