Celso Muianga é dos editores literários moçambicanos mais consagrados. Exercendo a sua profissão há 15 anos, pelas suas mãos passaram obras de vários autores nacionais, como Albino Magaia, Mia Couto, João Paulo Borges Coelho, Paulina Chiziane, Aldino Muianga, Suleiman Cassamo e Sónia Sultuane. Com tanto conhecimento acumulado ao longo dos anos, nesta entrevista, Muianga explica o que é ser editor no país, refere-se aos factores que podem potenciar o mercado livreiro nacional e ainda clama por um subsídio urgente, por parte do Estado, e por apoio de instituições de boa vontade, de modo que se fortaleça a estrutura editorial moçambicana.
Celso Muianga, o que é esta coisa de ser editor?
É um bocadinho complicado dizer, numa entrevista como esta, mas penso que um editor é um agitador de ideias. Por exemplo, há escritores que escrevem, no entanto, não têm noção do seu talento. Então, o editor é aquela pessoa que se aproxima dos autores, porque tem “olho grande”, agita-lhes e acompanha-lhes no seu trabalho diário de construção do livro. Essa trajectória é feita com negociações intermináveis, porque há coisas que o editor vê, que o escritor não consegue, e coisas que o escritor vê, que o editor não contempla. Por isso eles interagem e discutem até haver um casamento perfeito.
É uma profissão gratificante ou ingrata?
Eu julgo que é gratificante, por causa da carga de emoção que transporta e do descobrir, a cada dia, de um novo universo que nos dá o ar como alimento para a vida. Esse é que é o maior proveito
Uma das duas funções é encontrar bons livros. Existem requisitos essenciais que o ajudam a identificar uma boa obra literária?
Não há fórmulas fixas. Isso também depende da bagagem do editor, das suas preocupações e das circunstâncias. Por vezes há o inesperado ou qualquer coisa que desperta e que aponta para algum caminho. Tem a ver com o deslumbramento e com a carga emocional que o texto provoca, e isso é daquelas coisas que não podemos quantificar. Há um certo conhecimento do mundo e do que é que a casa procura publicar e o que o editor quer projectar para o seu público, talvez para criar uma construção ou desconstrução.
Reconhece uma certa pressão, em termos de responsabilidade, quando está a trabalhar um livro?
Por vezes, sim. Mas isso acontece pouco. O que não falta é a ansiedade do autor terminar e publicar o livro, e isso acontece mesmo com autores que publicam há mais de 30 anos. O que o editor deve procurar fazer, nessas circunstâncias, é dosear e tentar indicar ao autor o caminho, explicando-o que, se for o acaso, é preciso deixar o livro amadurecer durante uns seis meses ou o tempo necessário. Quando o livro sai e os autores vêm o resultado, depois agradecem.
A figura do editor é valorizada no contexto literário moçambicano?
Eu penso que os autores e algumas editoras reconhecem. Se calhar, aqui em Moçambique, os editores não sejam tão valorizados como no universo anglo-saxónico. A edição inglesa valoriza mais o editor, o homem invisível que mais contribui para que o texto ganhe aquela potência que deve ter, porque um livro, depois de publicado, é para toda vida. No universo saxónico, sim, o editor é valorizado. No nosso, nem tanto, até porque não temos, por definição, o hábito de reconhecer os intelectuais.
O que o seu trabalho lhe permitiu certificar ao longo desses anos nas letras?
Isso exige uma resposta de duas horas, mas vou tentar ser sintético. Permitiu-me conhecer de perto os grandes nomes da literatura moçambicana e conviver com eles enquanto autores e pessoas, e também conhecer a realidade da valorização e desvalorização do livro em Moçambique. Nos últimos 13 anos, por isso, ando com uma preocupação na área da formação dos professores, que, muitos deles, aparecem com pouca bagagem de leitura de fruição, do conhecimento do mundo e mesmo de reflexão. Quando despontou, em Portugal, o Plano Nacional de Leitura, convivi de perto com a comissária, há mais ou menos 14 anos, e criei um plano para Moçambique, que fosse usado na área de formação dos professores. E é essa a minha angústia por não ver esse projecto realizado, porque o professor é o maior vínculo de mudança na cabeça do seu aluno. Outra coisa, testemunhei momentos em que editoras resistiram com ou sem patrocínios de livros. Lembro que por volta de 2010, quando uma das operadoras de telefonia móvel do país deixou de patrocinar os livros, tivemos de fazer um empréstimo no banco [na altura em trabalhava para editora Ndjira], de modo que publicássemos 16 títulos. Isso fez-me viajar pelo mundo e conhecer outras experiências, fazer estudo de mercados, o sul-africano, o chinês e o português. Lembro que tivemos discussões acesas com a nossa administração, na altura, e posso dizer que venci, porque o meu projecto deu resultados. Em seis meses conseguimos pagar ao banco e até hoje temos livros no mercado a circular. Há aqui uma experiência que é um ganho em termos de conhecimento do mundo e do mercado em si. Outra coisa, tive a oportunidade de acompanhar esse boom literário que o país registou nos últimos anos, com movimentos dispersos como Kuphaluxa (Maputo), Café de Debate (Marracuene), Tindzila (Inhambane), Xitende (Gaza), e etc. Penso que todos os movimentos, agora, estão a convergir para o mesmo ponto. Se as coisas continuarem assim, acho que nos próximos três ou quarto anos teremos uma geração de autores muito boa.
A palavra “filantrópico” é a que melhor descreve quem trabalham na área literária no país?
Eu penso que não. A filantropia sustenta o trabalho editorial. É um parceiro que dá valor. Mas, por vezes, os próprios filantropos sofrem muito na carga fiscal, quando fazem o exercício anual financeiro, porque temos aqui muitos buracos, como a Lei do Mecenato que não está regulamentada e uma série de coisas que foram aprovadas há muito tempo, mas que não estão a ser implementadas. Por exemplo, a Política do Livro, que foi aprovada em 2008, o grande marco do legado do então Ministro da Cultura, Armando Artur. Mas tudo aquilo ficou em letra morta. Nunca mais ouvimos falar da Política do Livro. E o parque gráfico moçambicano precisa ser apoiado ou de ter política a nível do Estado para a redução ou extinção do imposto sobre o papel. Isso ajudaria na impressão ou comercialização do livro a nível interno. Penso que se metade das questões que deixamos ficar no seminário de 2012 fossem atendidas, a questão do livro não seria um mito.
Uma vez disse, numa entrevista, que é necessário que o livro vá além da sua qualidade. O que isto quer dizer?
É o que disse Baptista-Bastos a Nelson Saúte, há 30 anos, o livro é imprescindível numa sociedade, justamente na nossa, que temos 70% de jovens. Precisamos nutrir esta juventude de espírito de pensamento, com qualquer coisa que funcione para além da aparência. Tem de haver alguma coisa de substância.
Como é que fazemos entender às pessoas que nós somos o que lemos, e não o temos?
É um trabalho longo. Primeiro, precisamos de formar leitores, e essa é uma das coisas que a Fundação Fernando Leite Couto, o Instituto Camões e o Centro Cultural Brasil-Moçambique têm efeito nos últimos anos: formar público consequente, que não desaponta com qualquer coisinha. Temos de ter uma linha de orientação, que inicia na escola primária, continua na escola secundária e, depois, na universidade. Eu tenho muitas dificuldades em encontrar os meus colegas das literaturas a trabalhar nessa área. Conheço o Léo Cote, o Américo Pacule e alguns mais, mas somos poucos. Somos uma pequena ilha.
Apesar de sermos essa pequena ilha, há esse boom literário. Como está a nossa literatura?
Com algum espanto, devo dizer que a nossa literatura está num bom caminho, e não é um bom caminho do politicamente correcto. Não sei de que fomos feitos, mas somos assim… É nesse espanto e deslumbramento que sinto que temos uma geração que nos permite pensar que a breve trecho, médio ou longo prazos, teremos grandes autores. Estou a pensar na Tassiana Tomé e Eliana N’dzualo, acredito que ela vale muito mais e que nos vai brindar com bons projectos. Também acredito na minha colega, Leocádia Valói, ela vai dar o salto. Penso que estas três mulheres ainda nos vão surpreender.
Estamos em Junho. Soa à independência. Na sua opinião, quais foram as grandes realizações literárias ao longo destes 45 anos?
A valorização do nosso país, como nação, que é uma construção mais prolongada. Penso que devemos à literatura o conhecimento do nosso chão, no sentido de nos conhecermos como donos de uma certa raiz e de uma voz. E o nosso hino nacional é exemplo disso.
Ao longo desses 15 anos na edição literária também perdeu aqueles que contribuíram para a concretização do seu trabalho. Não existem editores sem autores. Como é para si quando deixa de ter a possibilidade de trabalhar com um escritor/ poeta?
É uma coisa dolorosa, devastadora, um vazio aberto que não se preenche, ou seja, uma coisa tão profunda quanto a própria morte.
E quando se fica a saber que há textos inéditos, como foi o caso de Albino Magaia?
Aí renasce a esperança de que o diálogo vai continuar, num outro formato. E por ter tido um convívio prévio com ele, torna-se possível orientar até mesmo a revisão que se faz ao livro, porque se conhece as marcas do escritor.
Quais são os autores que, actualmente, representam o grande futuro para a literatura moçambicana?
Temos a Virgília Ferrão, das poucas mulheres na ficção narrativa. Penso que, em geral, temos de trabalhar mais na ficção narrativa. Há ali qualquer coisa que ainda não está encaixada na literatura moçambicana. Também temos o Edmilson Mavie, que é uma grande promessa na prosa; o Léo Cote, outra grande esperança para a nossa literatura, assim como Álvaro Taruma, Pedro Pereira Lopes, Japone Arijuane, Tassiana Tomé, Dany Wambire, Lino Mukurruza, Jaime Munguambe, Hirondina Joshua, Melita Matsinhe, Mélio Tinga e um talento que despontou um pouco mais tarde: Bento Baloi, que nos vai surpreender com belíssimas obras. Sónia Sultuane, Hélder Faife, Rogério Manjate, Sangare Okapi, Lucílio Manjate e Mbate Pedro já são de outra galáxia.
Estamos a conseguir exportar as nossas grandes promessas literárias?
A pé coxinho. Inclusive, nas últimas Correntes d’Escrita, em Portugal, estivemos com a Hirondina e quase lançamos um livro dela na Fundação Saramago. Isso não aconteceu por causa da COVID-19. Enfim, penso que institucionalmente precisamos fazer muito mais.
Nessa edição do Correntes d’Escrita esteve com um escritor que perdeu a vida vítima de COVID-19. Como foi para si, quando teve a notícia de que Luís Sepúlveda estava infectado?
Logo que terminou uma das sessões do Correntes eu e ele ficamos horas a conversar, inclusive me contou que passou por Moçambique. Ele contou-me que esteve preso e que teve tuberculose na prisão, e penso que isso contribuiu para que o seu sistema imunológico cedesse. Pronto, foi devastador e preocupante saber que o Sepúlveda estava infectado. É um grande amigo que se perdeu.
É editor da Fundação Fernando Leite Couto, que está a cinco anos a lançar novos autores. Como tem sido para vocês promover e divulgar literatura e outras artes?
São cinco anos de construção de um sonho, da família, dos filhos e de todos que quiseram imortalizar o nome de Fernando Couto. Penso que a Fundação veio mudar a dinâmica da Cidade de Maputo, quer ao nível da formação de leitores, quer ao nível de formação de público. Houve mudanças e é visível, ao nível das casas de pasto, aquele modelo que a Fundação adoptou. Quando nós abrimos não havia quase ninguém a usar aquele modelo. Mal a Fundação fez um ano ou dois foi um boom por toda a cidade, o que desconfinou o nosso convívio a vários níveis. A presença desta casa é uma grande marca, indelével, na cultura moçambicana. A Fundação, nestes cinco anos, conseguiu uma coisa que é inédita, publicar oito novos autores, que se estrearam em livro. Acho que é obra.
O que falta para alcançarmos, como país, em termos literários?
Precisamos, urgentemente, de um subsídio do Estado e de apoio de instituições de boa vontade, para que possamos fortalecer a nossa estrutura editorial, com autores a terem acompanhamento de qualidade, que lhes permita representar bem Moçambique, dentro e fora de portas. Precisamos muito dessa abertura, sobretudo nesta época de COVID-19, em que instituições privadas sofreram um abalo em termos de contas. Espero que o Estado rapidamente intervenha com políticas claras para salvar o sector.
Sugestões artísticas para os leitores do jornal O País?
Sugiro O menino que odiava números, de Celso Cossa; A história do João Gala-Gala, de Pedro Pereira Lopes e Chico António; e O homem que comeu o hospital, de Edmilson Mavie.
Perfil
Celso Muianga, jornalista, editor e activista cultural moçambicano.
Colabora com os jornais O País e Savana. Colaborou nos vários canais da Rádio Moçambique, emissora pública de rádio. Foi também assistente de programas, redactor e locutor do Emissor Provincial de Maputo. Coordenou um projecto de divulgação da cultura e literatura moçambicanas, pelo projecto Contar Moçambique na Voz das Palavras. Este projecto percorreu diversas escolas da cidade e província de Maputo.
Mantém colaboração na área cultural em Maputo com o Centro de Recriação Artística, Museu da Mafalala. Realizou, no bairro da Mafalala, oficinas de leitura para crianças do ensino Primário. É voluntário da Academia Aga Khan e da Escola Superior de Jornalismo, apoiando professores primários de escolas das cidades da Matola, Maputo e Boane, formando leitores e desenvolvendo acções do gosto pela leitura.
Actualmente é coordenador editorial da Fundação Fernando Leite Couto, cujo patrono foi seu mentor e mestre, entre 2002 e 2013, a quem sucedeu como editor na editorial Ndjira, filial da Editorial Caminho.
A Fundação Fernando Leite Couto tem como prioridade a tutoria e publicação em livros de novos autores, tendo publicado, em quatro anos, 28 títulos, com destaque para vários novos autores.
É formado em jornalismo, Linguística e Literatura, pela Universidade Eduardo Mondlane.