Sinto-me honrado por fazer parte da geração de moçambicanos que, com alguma audácia, vai construindo e narrando a nossa história. É gratificante saber que estamos percorrendo um caminho em que a nossa sapiência, como nação, está sendo registada por nós. É um exercício feito de forma institucional, no protótipo estatal, privado e por indivíduos que presumem ser parte complementar do registo dos factos da nossa nação. Porém – há sempre um «mas» – não estamos, internamente e com maior engajamento, a partilhar as fontes e a fazer circulá-las para que o circuito de lavra de conhecimento, registo e disseminação seja permanente e fecundo. Se a nossa herança material e imaterial serve de base para a construção do conhecimento histórico julgo ser importante e pertinente a liberalização e a partilha de fontes de informação. Sou persuadido a reconhecer que a matéria sobre a partilha de fontes é tão sensível por isso deve passar por parâmetros jurídicos e legais. E, sem rodeios, concordo em absoluto. Aceito que devemos ter parâmetros éticos para o manejo de fontes. Por isso, para ser mais específico deixo bem explicito que, neste artigo, falo de fontes socioculturais e, sem quisermos alargar mais a contestação, de fontes artísticas. [Sobre fontes bélicas e da legitimidade do primeiro tiro, deixo com os outros].
Na sociedade moçambicana, culturalmente, valorizamos os saberes escritos, os acervos e os registos vivos da tradição oral. Evidentemente, nem sempre são honrados de acordo com a sua importância. Muitos desses saberes ficam relegados, a maior parte do tempo, a uma condição de invisibilidade nos diversos subsistemas de partilha, réplica e divulgação de erudição. Assim é, pois são escondidos ou porque uma certa entidade (estatal, privada ou individual) crê que o mosaico que possui é de consumo exclusivo. Chegado a este obstáculo cabe questionar sobre os factores que fomentam essa condição: o quê faz uma entidade negar de partilhar fontes? Quais são as motivações para uma entidade ou uma pessoa com alguma notabilidade social negue de ser uma fonte? Sem nos apercebermos estamos a legitimar a catalogação negativa que sofremos ao longo dos séculos que engorda o seguinte pensamento: somos um povo, exclusivamente, oral e que não sabe ortografar a sua história. Sim, sem giros, estamos! Partilho para melhor percepção, acostando-me no ofício de editor, alguns contextos: individual e institucional. Embora, encarquilhados, servirão de exemplos.
No contexto individual parto da forma que me predispus a escrever/documentar, nos últimos anos, com uma logística insignificante e hiper-limitada, sobre o percurso de alguns cultores das nossas artes. Falo de dois tipos de autores: escritores e músicos, para ser mais específico. A primeira marcha, principal mas não única, para escrever sobre uma personalidade artística é aproximar-se dela e partilhar o anelo e utopia de escrever uma biografia, um ensaio, um artigo ou um outro documento que mesmo sendo da sua profissão artística irá, inevitavelmente, falar da sua vida privada. Sigo esse procedimento pois ajuda a construir um facto histórico sobre o autor a ser estudado e reforça as leituras circunscritas à volta dele.
Ouvir, directamente, o protagonista possibilita uma maior compreensão dos acontecimentos históricos. Do mesmo modo, permite-nos o acesso ao passado, o qual já não podemos vivenciar, nem alcançar directamente. Ou seja, o autor – sobretudo vivo – é a verdadeira fonte para o conhecimento da sua história. Posteriormente, podemos cruzar com outras fontes sejam elas escritas ou audiovisuais. Nessa busca tenho convidado alguns autores.
Porém, recebo respostas cómicas e que não merecem estar neste texto. As diversas respostas, agrupo-as em duas abordagens: i) autores que afirmam «não ter tempo» para facultar informação e, consequentemente, não aceitam ser fontes primárias do seu próprio labor artístico; [esta forma de dizer «não» tem sido um balde de trampa para alguns estudantes, mesmo credenciados, que desejam fazer uma tese de final de curso em assuntos de género; alguns autores ainda acreditam, infelizmente, no antropólogo muzungo e que a entrevista deve ser cedida com o tilintar do dólar ou euro]; e ii) artistas que, liminarmente, querem ser pagos antes de tudo. Óbvio que o artista deve viver do seu labor. É justo e legítimo que assim seja. Porém, mesmo com um plano e uma explicação editorial límpida o artista continua querendo ter Metical antes da obra feita.
É assim em outros quadrantes e é justo que assim seja. Sim, é. Porém, para nós essa realidade ainda é uma miragem por razões todos conhecem. Infelizmente, por estar a sonhar coadjuvado por uma logística insignificante e hiper-exígua, pois o assunto mecenato anda no plano sobrenatural, limito-me a estagnar a minha utopia nas garrafas de maçarico que outrora foram abrigo de azeitonas-pretas-oxidadas.
É neste enredo que passeamos ao ponto de não termos uma simples brochura e crónicas, para não dizer história, do pandza, do tufo, do rap moçambicano, do mapiko & Cia; não temos biografias de Eduardo White, Kapa Dêch, Pai Leão, Massukos, Amin Nordine, Mingas, Lília Momplé, Zena Bakar e outr@s que robustecem a música/literatura moçambicana.
Não aceitamos ser fontes e não liberamos as fontes de informação. Perante este cenário, como devem afigurar, não se faz nenhum registo, não se produz nenhum documento e continuamos na paz e na alegria do Olimpo até o dia que o nosso autor é chamado para ir ao terráqueo celestial. Quando isso acontece nos consolamos com frases como «foi embondeiro», «colosso das nossas artes», «decano da nossa moçambicanidade» e aquelas frases hipócritas de auto-consolação e homenagens póstumas. Resultado, ficamos sem registo porque a fonte essencial não foi acolhedora o suficiente para que o seu percurso e labor artístico fossem documentados. [Mais uma vez aceito ponderação: o artista deve viver, óbvio, do seu labor e não estou afirmando que ele deve dizer «sim» para tudo que lhe aparece. Mas, viver do «não» até para um movimento que serve de replica para o nosso labor artístico é um acto inconcebível. Enfim, não citarei nomes porque «a vitho i mpondo»].
No contexto institucional a coisa tem mais fetidez. A burocracia para ter acesso a uma informação em instituições, sobretudo estatais, um dia fará Ngungunhane ressuscitar. Mesmo com o cumprimento de todo o protocolo que passa por apresentar uma credencial, fazer um requerimento para ter a anuência da instituição que nos deve facultar a informação, ainda me deparo com respostas como: «teu pedido ainda não foi respondido», «o chefe que deve assinar este documento não está», «volta dia seguinte». De refutação em refutação, passam-se semanas sem ter uma resposta para aceder a uma informação como, por exemplo, «quantas editoras, quantas livros ou quantos discos foram registados, em 2022» ou «quantas casas de cultura existem no país».
Se uma instituição que zela pelas indústrias culturais e criativas leva meses para me facultar uma informação básica, não quero imaginar no dia que irei perguntar sobre o orçamento gasto para organizar um festival da cultura. É perturbador a sonegação de uma informação que devia ser de conhecimento nacional sem que ninguém fosse bater a porta do ministério. Cito, a título de exemplo, as enunciações culturais que foram proclamadas pela UNESCO património imaterial da humanidade: timbila (Novembro de 2005), nyau (2007) e, recentemente, o mapiko (2023). Adquirimos chancelas mundiais, todavia não temos acervo sobre essas expressões culturais. É atroz estar nessa condição. Os agentes submissores dessas propostas contentam-se, apenas, com a proclamação mundial. Não se comprometeram em fazer divulgação e partilha para que nós, outros – editores, jornalistas, académicos e demais interessados – sejamos replicadores dessa informação. Consequência: temos poucos livros, brochuras ou folhetos que falam das manifestações chanceladas pela UNESCO como património mundial. O que devia ser de domínio público tornou-se exclusivo.
Por isso, não tenhamos vergonha de assumir, que muitos moçambicanos – sobretudo em idade escolar – não tem noção que essas práticas artísticas são património imaterial. Portanto, vamos liberar as fontes para escaparmos do cerco que arroga espólio como, apenas, uma doutrina solene, de cariz política e de ratificação de bem cultural sem que não seja do domínio do cidadão. Liberemos as fontes, os arquivos para criarmos acervos pois de nada vale termos inúmeros patrimónios imateriais sem existência, mínima, de documentos de consulta (e.g., livros, folhetos, brochuras, documentários).
[O plangor vai para outras entidades: imprensa escrita e audiovisual (e.g., RM, TVM, Notícias); repartições públicas, entidades de investigação (estatais e privadas); fundações que se crê serem filantrópicas e museus (e.g., não se percebe como o curador de um museu saracoteia, durante meses, para dizer quantas mostras faz por ano e qual é a média de visitantes mensais). Sonegar informação devia ser crime pois não possibilita a criação de saber e de produção de acervos. As instituições devem se vincular a Lei n.º 34/2014, Lei do Direito à Informação. Mais do que vincular-se a lei, as instituições devem operacionaliza-la. Creio, embora seja professor da 4.ª classe e não jurista, estamos perante uma interrupção legal. Entendo que a lei mencionada tem o potencial de gerar uma mudança radical na forma como os moçambicanos passam a se relacionar com o acesso à informações de utilidade pública e para fins a que este artigo reclama. Por exemplo, instituições de ensino superior como Escola Superior de Jornalismo e Escola de Comunicação e Artes/Universidade Eduardo Mondlane formam profissionais de informação, nessa área específica, para fechar a lacuna de organização, divulgação e, sobretudo, promoção de informação. Óbvio que ter informação é ter um tipo de poder. Assim de viés e por respeito a lei alargo a reflexão – que será complementada por outros profissionais – com algumas questões: o que muda com a implantação desta lei; porque essa mudança tarda a observar-se; o que está faltando; quem ganha com isso; o que se perde; o que é maior entre o que se ganha e o que se perde? É certo que existem restrições de acesso à informação: segredo de estado, justiça, sigilo profissional […] como esclarece o art. 20, lei n.º 34/2014, lei do direito à informação. Porém, não percebo onde pode existir sigilo para dizer quantas editoras foram registadas, em 2023; ou o artista me facultar o número de músicas que gravou].
Trouxe exemplos artístico-culturais, convicto de que existem de outra natureza, para espelhar o quão é doloroso não ter informação para rabiscar um artigo, uma biografia ou um documento sobre uma determinada exteriorização artística que deve ser do conhecimento nacional. Portanto, enquanto continuarmos a sonegar informação continuaremos com uma república sem acervos – sim, estou a repetir, propositadamente, a palavra «acervos» – pois é urgente começarmos com essa marcha para não perpetuemos a falácia de que somos um povo que não sabe registar a sua história. Por estas e outras razões, para cessar este artigo, continuarei na linha da frente, a bater portas e a incomodar as instituições e alguns dos nossos cultores (músicos, escritores e gestores culturais) com o desígnio de fazer acervos e ser replicador do que existe de melhor e detestável da nossa sina artístico-cultural.
Bayete!
P.S.: aos que ofereceram suas jornadas artísticas para que eu fazer ensaios (Ghorwane, Paulina Chiziane, Pureza Wafino, João Cabral, João Ribeiro, Elcides Carlos, Aniano Tamele, Carlos Cardoso, Edson da Luz), bayete; uma vénia para instituições que documentam a vida cultural do país (ARPAC, Khuzula e Museu da Mafalala); e, todos participantes do primeiro volume do caderno de música moçambicana. Kanimambo!