No dia 17 de Setembro de 2025, a Ilha de Moçambique comemorou dois séculos e quatro anos. Passam 204 anos que a Ilha de Moçambique foi elevada à categoria de cidade. Ela continua imponente e com maior apreciação no seu valor cultural e histórico. Realmente, ela segue singular e esbelta mesmo depois dos ciclones que atravessaram Nampula e trucidaram parte da zona costeira.
Quando credenciamos que já expusemos tudo sobre a Ilha de Moçambique – património mundial, cultural e natural, desde 1991 – percebemos que a ilha esta além das casas de pedra e cal. Que está além dos fortins, fortalezas, palácios, templos, igrejas, mesquitas e um conjunto de casarões do modelo árabe, indo-português. Que está além da sacralidade dos rituais de beleza e do tufo que marca parte dos vários ilhéus daquela parcela de Nampula, daquele fragmento dos emakuas.
É no calcar da memória que o cancioneiro da Ilha de Moçambique continua sendo uma incógnita para mim. Das vezes que tive a possibilidade de visitar a ilha, infelizmente ainda não empatei com os dedos das mãos, centralizei o meu olhar para os cânticos que acompanham o tufo. Contudo, ainda não havia prestado atenção para os cânticos que são enunciados em actividades pesqueiras ou outras refregas feitas no mar. Falo concretamente da substrução musical ou do cântico que acompanha as naharas que fazem oxokhola (nome na língua macua-nahara para indicar mulheres mariscadoras que encontram nas malhas do mar o seu sustento económico e diário; que colhem, apanham mariscos entre rochas e estuários que banham a Ilha de Moçambique). Evidentemente, o que caracteriza as naharas não é somente o oxokholar (faina para encontrar os frutos do mar). São dotadas, também, de talentos artesanais e da agricultura. Todavia, na prática do oxokhola percebem-se, mesmo que de forma ligeira, alguns cancões do mar que, para a minha gula convencional, são um júbilo. É no cancioneiro nahara, no momento de oxokholar, que oscila a minha inquietude. Que sabedoria ancestral é entoado na hora do oxokholar?
A trova nahara, neste contexto do trabalho com e no mar, assume dois prismas: i) elemento motivacional para aguentar a labuta que na maioria das circunstâncias, se não todas as ocasiões, é feito debaixo do sol e ii) reavivar as múltiplas heranças que fazem e constituem o tecido sociocultural da Ilha de Moçambique. O primeiro prisma seria para enganar o corpo. O segundo, mais do que uma fruição artística, serve para reavivar a cultura da ilha e perpetuar a memória das naharas, dos ilhéus e dos artefactos que compõem o trabalho da busca dos frutos do mar. O cancioneiro nahara torna-se um elemento participativo e intercede para invocar o que não deve morrer daquela prática que já é ancestral. Assim, o cancioneiro nahara alcança um papel bastante relevante na formação das atitudes hodiernas, na construção e produção de um olhar sobre a realidade social da ilha. Auxilia no ajustamento das lentes que as naharas utilizam para observar a realidade da Ilha de Moçambique, do seu ofício e dos múltiplos sentidos que esse tipo de trabalho representa: subsistência familiar e base de renda. Embora essas atitudes pareçam pequenas, simples e corriqueiras, a canção, no momento de oxokhola, eterniza saberes e faz um resgate de memória daquilo que é a essência de ser nahara. Óbvio que, a ideia de «eternizar saberes» e «resgate de memória» – como aqui é descrito – é cunhado num ângulo de quem observa e não faz parte daquele contexto. As naharas, embora não utilizem os termos com alforriados académicos e que servem para catalogar essa acção – ou esse cancioneiro que «eu ando a pescar» – tem a consciência que os seus cantos servem par partilhar virtudes, liberdade e com «traços ativistas» – abrem espaços para transitar para uma outra realidade de diálogo com o mar e com os ancestrais.
Diante do que vem sendo explorado, em tempos mais recentes, no intuito de fazer o resgate da memória das naharas, como fez a Professora Vanessa Rodrigues com a reportagem Naharas-Ancestrais suaíli que resistem às imprevisibilidades do vento e do mar (7 de Setembro de 2025, Público, p. 5), torna-se impreterível compreender o vasto cancioneiro que acompanha a prática do oxokhola.
Fazer uma intelecção do cancioneiro nahara ancorado no binómio – «eternizar saberes» e «resgate de memória» – é alicerçar o conceito inaugural deste redacção: a incógnita que a Ilha de Moçambique é para muitos de nós. Ter a azo de ouvir, descrever, encontrar significados das cancões do mar, particularmente do cancioneiro nahara, com aspectos simbólicos que estão interligados com a identidade é encetar os vários significados representativos que encontramos na identidade emakua-nahara. O cancioneiro nahara deve ser pensado como parte principal da identidade emakua, reflectido enquanto suporte da memória social e um dos traços identificadores do valor patrimonial do estímulo interno e de eternização dos saberes da Ilha de Moçambique. Se tencionarmos coagir a nossa reflexão diríamos que: estamos perante um acto étnico fundado no critério ativista. A postura activista das naharas, cientes da palavra «activista» ou não, pois o que importa é o cancioneiro do mar, acentua o reconhecimento da intervenção cultural que elas fazem com vista a destacar a visibilidade da identidade emakua que é o selo branco da Ilha de Moçambique. O cancioneiro nahara fortalece a identidade emakua e oferece uma outra visibilidade que não cabe, apenas, no apanhar dos frutos do mar. Cabe, igualmente, na autoridade económica que ela tem sobre o mar pois é sacro na subsistência de muitos ilhéus.
A partir deste pressuposto podemos propor a aplicação de parte do cancioneiro nahara como elemento de engrandecimento, verbalização e visualização das inquietações colectivas dos ilhéus que oferecem o colorido à Ilha de Moçambique. Portanto, para terminar a minha paixão pelo cancioneiro emakhuwa-nahara, é preciso reconhecemos, no entanto, que os cancões do mar assumem configurações de catalisadores do tempo de trabalho e de perpetuação de memória e da práxis do oxokhola. Por isso, fazer um mapeamento dessas práticas cancioneiras é assumir que as naharas são protagonistas activas para que alguns dos costumes da etnia emakua, especificamente da Ilha Moçambique, sigam como saberes eternos. Assim, o cancioneiro nahara, independente dos lentes e dos epítetos, prescreve um novo olhar para percebermos as dinâmicas que alicerçam um dos vínculos que faz a Ilha de Moçambique ser mágica e, eternamente, incógnita. Recompor a memória, por meio das cancões do mar, realizando o oxokhola, torna-se um elixir para a Ilha de Moçambique. E, esse papel de herança existencial só cabe, apenas, nas vozes das emakhuwa-naharas e no meio da melhor obra que as mãos podem fazer nas margens da Ilha de Moçambique: oxokholar!
