Já se sentiu como se tivesse sido arrancado de um belo sonho sem nunca ter adormecido, apenas para acordar dentro de um pesadelo?
Ora, há livros que não se abrem, nos abrem; não se lê, abduzem-nos; “Sobre Toda as Escuridão” de Melo Tinga, é um desses raros gestos literários que não apenas contam uma história, mas fazem pulsar no leitor o ritmo de uma de um coração ferido. Aqui cada palavra é uma confissão, cada silêncio é um sopro a desfazer fronteiras, entre a ternura e a ruina no princípio a dor.
No princípio, a dor, morte, luto, tem um nome: Suzana. A morte é apresentada sem véus, num realismo que se cola o corpo e transforma em fronteira. Sangue, hálito, sombras, um quarto que apodrece junto do narrador. Não é apenas a perda de alguém: é a erosão da própria existência. Tinga trabalha bem esse mergulho sensorial e mental, tem êxito por transformar algo sem beleza, como lamúrias ou alucinações de um homem em novela, e é onde “Thanatos” se revela.
“A sua ausência atordoava-me. Era um homem triste mergulhado na infinita escuridão… O joelho frio, encostado ao peito, estremecia. Conta-me um lençol cansado, imundo e fedorento. Permanecia de cuecas toda a tarde, as marcas de urina pelo soalho, o cheiro intenso pelas narinas adentro a perturbar os pulmões. Ouvia vozes chegarem de um universo remoto.”
Então, surge Filipa. E a narrativa respira. A sua entrada é quase messiânica: mãos que limpam, olhos que choram, o corpo que devolve ao narrador o calor que julgava perdido. Ela é “Eros” em estado puro, mas não ingenuamente vital. A sua ternura é tingida de lágrimas, e é nesse paradoxo que se ergue a sua força.
“Por que vieste, Filipa?”
“Precisas de te levantar”
“Para onde?”
“precisas regressar”
“De onde?”
Se a Susana arrasta para o abismo, Filipa não conduz ao Paraíso: oferece apenas o regresso possível à superfície. É uma escolha subtil do autor, que impede o embate entre vida e morte, mas, ao mesmo tempo, deixa em aberto se Filipa é personagem de carne e osso ou apenas fantasma necessário. É de se questionar o período entre a morte de Suzana e o início do relacionamento com a Filipa, já agora não está bem claro quando começou.
Segundo Freud, a vida psíquica é movida por duas forças fundamentais, Eros, o instinto de vida, Abrange todas as pulsões e tendem a preservação, união, prazer, amor e criação. Ele não é apenas desejo sexual, mas a energia que liga, que constrói e que mantém a vida. Thanatos, o instinto de morte, manifesta-se como a tendência à agressão, ao desligamento, a repetição destrutiva, e em última instância, ao retorno ao inorgânico. Para Freud a existência humana é atravessada pela tensão inevitável entre esses dois princípios: um que afirma a vida e o outro que a dissolve.
No final, o mar. As ondas repetem-se como ladainha “Onda vem. Bate. E vai”. É nesse ritmo que o Narrador entrega-se não a morte nem à vida, mas à fusão de ambos. É aqui onde a novela de Tinga alcança o auge poético, criando um ritmo hipnótico, ora beijo, ora abismo. A insistência na repetição tem força ritual, mas pode também mecanizar a emoção, o risco da musica tornar-se ruído. Mesmo assim, o mar segue-se como metáfora maior: amantes e túmulo, Eros e Thanatos em estado líquido.
“Suzana é profunda, como este mar. É distante… sinto o som do mar entrar audaz pelos tímpanos. Haveria, dentro, anjos irritados a cantar pela boca das ondas?”
É nessa metáfora que a história se resume, ora, o mar fundo, noturno, Thanatos é onde o narrador quer se entregar, uma negação suicida da realidade. E a terra, Eros, ou melhor, Filipa, onde o desejo de viver habita. E entre o mar e a terra encontramos as ondas personificadas no corpo do narrador, “Onda vem. Bate. E vai”, sem se quer ter seu próprio desejo, apenas se deixa levar.
Sobre Toda Escuridão é, pois, um romance que ousa transformar o luto em estética, arriscando-se a perder clareza para não perder intensidade. A sua grandeza está no equilíbrio instável: entre o excesso e a delicadeza, entre a ferida e o consolo, entre Suzana e Filipa. O mar, último abraço, pede o que o pertence, as ondas, e se retira em maré baixa, deixando apenas uma carta que o tempo irá corroer.
Peça Teatral: “Sobre Toda Escuridão”
A obra, adaptada para o teatro a partir da novela de Melo Tinga, vencedor do prémio Literário INCM/Eugénio Lisboa em 2020, tem direção de Ramadane Matusse e conta no elenco com Maria Ausenda (Filipa) e Paulo Jamine (narrador), além da participação especial da dançarina Francisca Mirine (Suzana). Foi apresentada no Instituto Guimarães Rosa (IGR), com sessões marcadas para os dias 14, 15, 21 e 22 de agosto.
A peça abre como quem liga um pulmão: luz contida, ambiente doméstico em ruínas, corpo no centro. A primeira impressão é de economia cenográfica, apenas dois pufes e um espelho que não teve nenhuma utilidade, para além das vestes da Suzana.
Essa opção formal funciona: concentra a atenção na voz do corpo, nos pequenos gestos, nas expressões faciais. E no final não havia espaço para mais nada, Suzana ocupara tudo e nem Filipa conseguiu libertar espaço.
A atuação dos personagens, privilegia a fisicalidade do luto. O narrador move-se, fito prolongado no vazio. Anda para frente e para trás, seus movimentos espelhavam a sua desordem mental. A personagem da Filipa entra como contraponto: limpeza de objetos, arrumação, canto discreto, gestos de cuidado.
A presença de Suzana, no palco, é sobretudo fantasmagórica, lembrada nos gestos, nas falas do narrador e em imagens ou memórias que o corpo reencena. A personagem apresentou diversos passos de dança contemporânea, no entanto, ela mostrou ter um grande potencial, para além do que mostrou. Esta estratégia concentra a peça no que o livro trata em longas narrações: “Cadernos de Alucinações”, a ausência também é personagem.
Comparando o livro e a peça
A adaptação teatral toma a metáfora central do romance (as ondas como fronteira entre vida e morte), e a transforma em dispositivos cénicos: repetição de gestos, refrões sonoros , e a alternância imagem/silêncio.
No livro a experiência do luto é conduzida pela narração interior extensa, metáforas acumuladas e ritmo de refrões escritos. A dor vive na linguagem. Na peça a dor ganha corpo imediato, o espetador vê o joelho frio, o lençol, o movimento de limpeza e isso cria uma empatia física urgente. O teatro, portanto, incorpora em imagem aquilo que o livro narra: o corpo passa de representação mental para presença sensorial. Esse ganho é o maior triunfo da adaptação.
No livro a Filipa (Eros), opera como a prática do retorno à vida; na peça, sua ação ritual limpar, cantar cuidar, chamar atenção, é representada cenicamente. O gesto físico de Filipa funciona: é conciso e potente. Ganha vida, maior intensidade e vivacidade do que o livro descreve.
No romance, Suzana (Thanatos), é simultaneamente presença e fantasma textual, na peça opta-se por mantê-la fantasmática visualmente, embora não há muitos elementos que a compõe (como a queda, o sangue, etc…), isso não reduz a sua intensidade.
A confissão “eu matei Suzana” funciona melhor no texto literário (onde a ambiguidade psicológica é sustentada por fluxo interior), do que no palco, onde o público pede evidência material.
O refrão das ondas no romance encontra equivalente dramatúrgico nas repetições gestuais e em elementos sonoros. Isso é uma boa transferência estética a forma do livro vira gesto. A experiência de ver o ator em tempo contínuo (sem recuo reflexivo do livro), coloca o espectador numa relação de urgência com o luto, vantagem teatral clara.
É interessante mencionar o facto de que o narrador apresenta uma certa variação de vestes, e no final é trajados de calças pretas e uma camisa branca, na peça a troca de roupa foi ausente, o que de certa forma faz perder a profundidade cénica e da a impressão de todo o ocorrido ter acontecido no mesmo dia.
Há, porem, uma escassez nos dois, a presença da Filipa, esta personagem perde um pouco do seu poder e impacto pelo facto de ser apresentada apenas na visão do narrador, ela poderia ter um impacto maior e identidade muito além do narrador.
Outro ponto que não se pode esquecer é a confissão do narrador quando ao seu estado psíquico, quando este afirma sofrer de “depressão”, está confissão faz a novela perder o seu mistério e complexidade que é apresentada desde o início, tanto na peça quanto no livro.
“Não posso negar o facto de que a depressão da sua partida abrira uma profunda cavidade. Caminho firme para o fundo da escuridão provocada pelo remorso da morte da minha mulher.”
Contudo, é um livro e uma peça que vale a pena ler, não só como quem descodifica signos linguísticos, mas como quem se deixa possuir pelo fantasma da Suzana, para depois respirar Filipa.

