Este é um tema complexo, uma vez que acaba sempre por nos remeter para a velha questão: Escrever para quê? Ou seja, para que serve a literatura? Ou ainda, o que é a literatura? Na minha opinião, qualquer resposta ou definição será sempre incompleta, dado que a literatura, em si mesma, encerra componentes diversos, como os de ordem estética, ideológica e também espiritual. Por isso mesmo, o processo de escrita, como tal, está intimamente ligado à sua motivação e, por conseguinte, à finalidade da própria literatura.
Começaria, então, na minha perspectiva, por tentar definir a literatura como sendo uma forma de introspecção, de questionamento, de desassossego, de inconformismo, de conhecimento, de arquivo, de retrato da realidade interior e exterior, de crítica e intervenção social, de liberdade, de sonho, de amor à vida, de complemento e aperfeiçoamento do mundo, ou mesmo de transformação da realidade que nos rodeia.
Tal como refere Isabella Lígia Moraes, “A literatura, ainda que tenha o poder de aplacar momentaneamente nossa sensação de descontinuidade e incompletude, não traz paz ao espírito, mas indagações e angústias. A arte, de modo geral, não traz certezas e respostas, pois elas mesmas são manifestações da incerteza humana.”
Mas para que seja realmente literatura, tal como a conhecemos, todas estas formas têm de estar revestidas daquele manto que sempre a caracterizou, e que chamamos de Estética. Portanto, em poucas palavras, diria que literatura é a problematização da realidade interior e exterior, usando recursos estéticos.
Pela minha experiência pessoal, e olhando para aquilo que é a nossa história recente, não posso conceber nem aceitar uma literatura que não tenha, na sua essência, uma função social. Um texto que seja simplesmente lúdico e desprovido de algum poder provocador ou transformador, então não pode ser literatura. Aliás, ainda que seja apenas lúdico, por isso mesmo, esse texto terá sempre uma função social, desde que reúna requisitos literários.
Olhemos então para o nosso caso. Todos nós sabemos que a literatura moçambicana, tal como o nosso País, são recentes. Não têm sequer cem anos de existência. Tanto é que temos ainda vivos alguns dos seus precursores. Refiro-me concretamente ao nosso prosador-mor Luís Bernardo Honwana. Eu tenho dito que a literatura moçambicana, como tal, nasce justamente com a independência nacional, assumindo que antes desta independência éramos simplesmente cidadãos dum País que ainda não existia, parafraseando o poeta José Craveirinha.
A literatura produzida no período da resistência colonial, a par dos temas transversais ao tempo e espaço, como o amor e as questões existenciais, teve o condão de denunciar a opressão colonial, criando e alicerçando assim uma consciência nacionalista e africanista, por escritores como Rui de Noronha, Noémia de Sousa, José Craveirinha, Luís Bernardo Honwana, entre outros, por sinal precursores da literatura moçambicana.
Eu sou carvão!
E tu arrancas-me brutalmente do chão
e fazes-me tua mina, patrão.
Eu sou carvão!
E tu acendes-me, patrão,
para te servir eternamente como força motriz
mas eternamente não, patrão.
Eu sou carvão
e tenho que arder sim;
queimar tudo com a força da minha combustão.
Eu sou carvão;
tenho que arder na exploração
arder até às cinzas da maldição
arder vivo como alcatrão, meu irmão,
até não ser mais a tua mina, patrão.
Eu sou carvão.
Tenho que arder
Queimar tudo com o fogo da minha combustão.
Sim!
Eu sou o teu carvão, patrão.
(José Craveirinha)
Durante a luta de libertação nacional, uma vez mais a literatura configurou-se como um dos instrumentos de luta contra o colonialismo, de denúncia e também de diplomacia, angariando apoios internacionais para a causa dos moçambicanos, através de textos e da poesia de Combate, com autores como Marcelino dos Santos, Armando Guebuza, Jorge Rebelo, Sérgio Vieira, Rafael Magune, entre outros.
AS TUAS DORES
As tuas dores
mais as minhas dores
vão estrangular a opressão
Os teus olhos
mais os meus olhos
vão falando da revolta
A tua cicatriz
mais a minha cicatriz
vão lembrando o chicote
As minha mãos
mais as tuas mãos
vão pegando em armas
A minha força
mais a tua força
vão vencer o imperialismo
O meu sangue
mais o teu sangue
vão regar a Vitória.
(Armando Guebuza)
No período pós independência, o País testemunhou o surgimento da geração 80, pontificada pelo movimento literário Charrua que, face à realidade do seu tempo, e movida pelo sentido patriótico, ensaiou rupturas com o seu tempo, introduzindo na literatura moçambicana novas formas e novos conteúdos, em contraposição ao texto panfletário e laudatório em voga, em relação ao sistema político então instituído no País. Por outro lado, porque herdeira de uma tradição de luta, a Charrua produz uma literatura também de denúncia, desta feita, da guerra civil e das atrocidades dela consequentes, da fome e da precariedade generalizadas no seio da sociedade moçambicana, dos excessos e abusos de poder, entre outros males associados ao processo. Mas mais do que isso, é realmente a geração Charrua que lança as sementes daquilo que é a literatura produzida hoje em Moçambique.
Homoíne
[fragmento]
Os nossos mortos são muitos,
são muitos os nossos mortos
dentro das valas comuns
e há um enorme pássaro que se encanta,
é o pássaro lento do esquecimento,
pássaro de sangue, pássaro que se levanta
dos vermes que estão comendo os nossos mortos por dentro
(…)
(Eduardo white)
A geração de escritores posterior à Charrua e outras subsequentes, herdeiras também de uma tradição de rupturas com o seu tempo, (aliás, esta é uma característica da génese da própria literatura) tem sabido dar continuidade, com sentido patriótico, a toda esta herança literária recebida das gerações anteriores, despertando consciências para causas colectivas, preocupando-se com uma identidade nacional, alicerce da nação ora em construção.
A terra a saudade sobre o meu terraço.
Aço azul do céu. Seta certa perto do peito.
Emakhuwa é como onda no asfalto.
Lembra-nos a casa, a cana, o caniço
ou bambu. Nosso barco encalhado com terra,
transportando marítimo o silêncio da Ponta da Ilha.
(Tufo mudo na cicatriz da tarde).
Onde em Maputo porque circuncisos garotos somos
nossas garotas o rosto de m’siro maquilham?
(Sangare Okapi)
Em síntese, podemos então concluir assumindo que o processo de escrita, ainda que seja um acto individual e solitário, é consequente da experiência vivida ou presenciada, pessoal ou colectiva, que decorre num espaço e num tempo determinados em que o escritor está inserido, e donde este capta os problemas existenciais, a realidade e os dilemas sociais, processando-os através da criação literária, a fim de propor novos caminhos, novos paradigmas, novos mundos igualmente possíveis.
*Texto introdutório da conversa com escritores e leitores no quadro da feira internacional do livro de Quelimane.