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O meu voto

Levei flores para ir votar. Votar tem de ser com sentimento, as escolhas têm de ser feitas com amor, o futuro precisa disso: amor!, por isso levei flores.
Acordei cedo, naquele dia, à hora dos que não têm licença para despertar depois do sol. No banho, sem a urgência dos dias em que tenho de ir trabalhar, dei por mim um tanto piegas, a assobiar, um assobio romântico, baixinho, quase surdo, sob o ruído molhado das bátegas frias do banho.
Era uma melodia antiga que me saía dos lábios, que só as pessoas da minha idade grisalha reconhecem. Um hino dos tempos em que se falava do povo com muito perfume e sentimento na voz. Daquelas melodias que em vez de dançar, apetece marchar. E marchei com brilho nos olhos, para a paragem dos chapas.

Pelo caminho, num quintal ajardinado, ajardinado como o futuro, com plantas que espreitavam curiosas para a rua, colhi flores, as mais belas flores, assobiando aquela música que fala do povo, indiferente ao cão que de dentro do quintal salivava e ladrava.

Reconheci o posto de votação à distância, pela longa fila à entrada. Endireitei as roupas e as pétalas amarrotadas na enchente do chapa em que ensardinhei, aprumando-me para o evento. Enquanto a fila fluía como uma serpente preguiçosa, eu assobiava aquela melodia e fechava os olhos ao aproximar o nariz àquelas flores, provando-lhes os perfumes.

Pousei as flores sobre o púlpito onde iria apoiar os cotovelos para preencher os boletins de voto. A solenidade do momento pedia-me para parar o assobio. Parei, mas a melodia da música que fala do povo ecoava na minha cabeça. Segurando o queixo, introspectivo, como se o pensamento me saísse pelas barbas, pus-me a pensar que aquele momento, pela importância, merecia mais pompa. O meu voto era com amor, não merecia estar a ser feito assim, friamente. Mais do que fechar os olhos e atirar moedas a um poço de desejos, o meu voto era uma delicada carta para o futuro.

Como no amor em que os corpos merecem os cuidados horizontais de uma cama, aquele momento merecia o conforto de uma escrivaninha, um banco adornado em que eu me sentasse, ao lado de uma janela com uma vista para o país, que me inspirasse para aquela carta: “Querido futuro…”.
Mas porque na falta, o amor inventa cama em qualquer lugar, votei assim mesmo. Com o peso da minha mão e caligrafia grave, fui sentenciando com um enorme X sobre os rostos dos políticos no boletim de voto, como quem desenha corações no canto perfumado de uma carta de amor.

Despedi-me “Atenciosamente…”. Dobrei-a pelos principais pontos cardeais como se dobrava nos tempos em que cartas e flores ainda não se enviava por correio electrónico. Introduzi-a no enorme envelope que a urna é e, como aquele velho carimbo sobre os selos, a tinta indelével manchou-me o dedo.

Mas não foi o indicador que meti no frasco de tinta indelével. Preferi um dedo mais comunicador, trabalhador, experiente esgravatador, garimpador incisivo, conhecedor de profundezas, das mais abissais vísceras, pois democracia é a liberdade de enfiar o dedo que eu quiser naquele frasco, consciente de que o meu voto é um leve manguito… indelével.
Depois de fechar os olhos e cheirá-las, deixei ficar as flores sobre a urna de votos. E caminhei lenta mas firmemente, para o futuro. Não me saía do assobio aquela melodia que fala do povo.

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