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“O meu grande objectivo com a fotografia é transmitir o ‘eu’ das pessoas”, Jay Garrido

Para Jay Garrido, a fotografia é a razão das coisas. A imagem, por isso, não é apenas uma circunstância. De igual modo, preserva em si um conjunto de factores. Por exemplo, o momento, o tema, o movimento, a expectativa e a emoção das pessoas. Jay Garrido é um fotógrafo de humanidades. Daí, ao longo do seu percurso, ao fotografar, sempre esmerar-se em transmitir o que considera “eu interno das pessoas”. Nesta entrevista, o artista fala das possibilidades de uma imagem, do que lamenta não ter fotografado e de um projecto para breve: uma individual de fotografia.

 

 

Jay Garrido, o que significa a fotografia para si?

Depreendo-me com a fotografia no seu sentido mais literal, que é do grego, foto (luz) e graphein (escrever). Nós, essencialmente, estamos a escrever com a luz. Há aquele velho adágio que diz: uma palavra vale por mil palavras. Então, estamos a escrever mil palavras numa imagem. Acho que essa é a grande motivação de qualquer fotógrafo, transmitir as mil emoções e os mil sentimentos que possa ter durante o momento em que está a fazer fotografia.

 

A fotografia é uma forma de interpretar essa luz?

É exactamente isso e é diferente para todos. Já tive a experiência de trabalhar com muitos fotógrafos e de estar em vários ambientes. Em todos os cenários, os fotógrafos executam a sua forma de ver o mundo de forma diferente.

 

O que diferencia a visão do fotógrafo?

Quero acreditar que isso tem a ver com o desenvolvimento da pessoa ao longo do tempo. Desde que nasceu até à fase em que está a criar aquela fotografia. Todas as experiências que a pessoa foi passando na vida vão criando uma espécie de carácter fotográfico, da mesma forma que a pessoa tem um carácter psicológico. Por exemplo, há fotógrafos mais literais e os que são mais subjectivos. Portanto, a interpretação varia de fotógrafo para fotógrafo.

 

Em algum momento, o seu trabalho apresenta essas duas componentes: mais realística e mais subjectiva. O que tem a dizer em relação a essa combinação?

Antes de mais, deixa-me dizer que eu sou um fotógrafo que gosta de estar com pessoas. O meu tipo de fotografia sempre está ancorada à ideia de que sempre tem de ter uma pessoa lá. Há momentos em que eu tiro fotografias de outras coisas. Isso é experimentar e sair um pouco da minha zona de conforto e, às vezes, dá um bom resultado. Mas a maioria das vezes, eu quero sempre estar ligado a retratos. Fotografar pessoas mesmo que seja de forma experimental ou de forma subjectiva.

 

Por exemplo, Bruno Huca e banda Gran’Mah.

Sim. Fotografei Bruno Huca enquanto fazia uma performance. Em relação à banda Gran’Mah, aquilo era para ser uma coisa e inverteu-se de tal forma que acabou ficando a capa do último álbum que eles lançaram. Nós combinamos uma ideia e fomos atrás dessa ideia. Mas, enquanto estávamos no local, houve uma luz acesa e saíram fotos que não estavam no meu plano original quando saí de casa para ir fazer aquela sessão com eles. Houve uma boa sinergia entre mim, criativo visual, e eles, criativos de áudio. Lidar com a música faz parte do meu desenvolvimento pessoal. Eu sou filho de músico. Beber um pouco da criatividade deles foi bom.

 

Como é esta coisa de explorar o infinito, dando imagem ao ritmo, como fez com Gran’Mah?

O meu grande objectivo ao fotografar pessoas é tentar transmitir o seu eu interno. Esta procura do infinito sempre foi, para mim, um processo de estar a tentar exprimir criatividades, tentando descobrir onde melhor me encaixava. E descobri que é atrás de uma máquina. Então, da mesma forma que eu lutei para descobrir o meu eu, como fotógrafo, através da fotografia, eu tento captar o eu da outra pessoa.

 

O grande objectivo é dar outros sentidos improváveis à realidade ou é fugir da realidade?

Para mim, é um pouco dos dois, porque a parte da subjectividade é a fuga da realidade.

 

Captando um momento que não se repete…

Exactamente. O mundo existe a milhões de anos. Com uma fotografia, nós estamos a travar um centésimo de um segundo dentro desses milhões de anos. E isso nunca mais se vai repetir. Não aconteceu até aquele momento e não voltará a acontecer depois daquele centésimo de um segundo.

 

Isso deve dar muita responsabilidade a um fotógrafo.

Dá. Por exemplo, no momento do casamento, em que o padre diz que o noivo pode beijar à noiva, se a máquina falha, acabou. Podemos repetir o momento, mas aquela foto nunca carregará a emoção daquele primeiro beijo. Então, a responsabilidade de captar o momento é muito pesada porque estamos a eternizar…

 

Já lhe aconteceu a máquina falhar num momento em que precisava?

Felizmente, não. Mas já tive um problema com um cartão a posterior. Ao meter o cartão no computador para baixar as imagens, o cartão falhar. Mas para isso existem pessoas especializadas em recuperar os dados, embora seja muito caro. Ainda assim, vale a pena honrar o que foi acordado. Aliás, durante muito tempo, eu fiz menos dinheiro com a minha arte fotográfica do que aquilo que poderia ter feito, porque eu funcionava mais como artista do que como um homem de negócios. Hoje em dia, tendo filhos e uma renda de casa e combustível que está cada vez mais caro para pagar, comecei a ter um bocadinho mais acuidade nos negócios e comecei a tornar os meus preços mais realísticos para aquilo que eu estava a fazer. Ainda assim, não estou dentro do escalão do que poderia cobrar, mas não sinto necessidade de cobrar mais, porque não procuro mais do que eu preciso.

 

O dinheiro é uma consequência?

O dinheiro é uma consequência e se o artista fizer bem o seu trabalho, o dinheiro sempre virá. E nunca deve ser visto ao contrário, ou seja, nunca se deve pensar em ganhar dinheiro para fazer arte melhor. A primeira pessoa que olhou para mim com uma máquina e disse “Por favor, não pares nunca”, foi Ricardo Rangel. Até hoje eu tenho essa máquina guardada em casa. Eu acredito que ser artista fazia parte do meu destino mesmo antes de saber.

 

Tendo convivido com Rangel, Malangatana e Roberto Chichorro, há momentos que lhe ocorre que deveria ter fotografo todos eles?

Há vários momentos. Por exemplo, no caso de Malangatana, um dia antes do Natal, a minha tia Otília foi ter connosco com ele. Malangatana virou-se para minha mãe e disse vou oferecer-te um presente de Natal. Ele pegou numa folha A4 e numa caneta de tinta permanente e lá fez um desenho a Malangatana. Isso foi de 93 para 94 ou de 94 para 95. Até hoje nós temos esse desenho em casa. Eu vi a pintura a acontecer e eu gostaria de voltar no tempo para fotografar justamente aquele momento em que ele desenhava a conversar com a minha mãe e a minha tia Otília. Outro momento, Malangatana tinha uma escultura enorme, em casa dele, à volta de uma escada. Eu vi uma parte daquela escultura a ser feita. Esse é um dos momentos que eu gostaria de ter fotografado. O meu pai foi director da Empresa Moçambicana de Entretenimento. Eu vi um dos álbuns dos Ghorwane a ser gravado. Eu era pequenininho e ficava na cabine de som com o técnico, a assistir a história da música moçambicana a acontecer sem fazer a mínima ideia do que se estava a passar. Mais um momento que eu gostaria de ter registado: aquele em que Beto Sarmento, na cabine de som, controlava os canais de áudio quando a banda lá fora atacava os instrumentos musicais. Gostaria de ter estado apto para fotografar esses momentos, mas todos aconteceram antes de ter 10 anos de idade.

 

Há momentos que fotografou, mas que hoje preferia não ter fotografado?

Já ocorreu estar a chegar a casa – o meu prédio encontra-se num cruzamento –, ao sair do carro, ver um acidente. Eu moro num dos cruzamentos da Vladimir Lenine. Nesse dia, o condutor que vinha a alta velocidade daquela avenida foi cortado a prioridade. Por isso desviou o carro da estrada para evitar o embate com outro carro e atropelou uma criança no passeio, que, infelizmente, faleceu ali. Eu acabava de sair de um trabalho e tinha a câmara comigo. O meu primeiro instinto foi ir para o local do acidente. Eu fotografei o carro que estava a fugir, mas, infelizmente, não foi com a resolução suficiente para apanhar a matrícula. Depois, fotografei a destruição. Infelizmente, tive de apanhar um cenário que era de morte. Eu preferia que não tivesse passado por essa experiência.

 

A sua fotografia pretende investir na esperança?

Certo. Eu gosto de acreditar que a minha fotografia concentra-se em momentos positivos, que as pessoas gostariam de se lembrar, do que o contrário.

 

Além das pessoas, o que mais gosta de fotografar?

Mais recentemente, tomei o gosto de fotografar coisas mais abstractas. Por exemplo, as ondas do mar. Fiz a primeira vez e gostei. Passei a fazer por todas as praias por onde passo. Mesmo processo, mas resultados sempre diferentes. Enfim, as melhores fotografias de um fotógrafo acontecem-lhe. Não é forçado. Ele tem de estar no sítio certo, no momento certo e não forçar as coisas.

 

E quanto a exposições das suas fotos?

Eu sou muito crítico em relação ao meu trabalho. Fiz uma exposição no início da minha carreira quando tinha o interesse de pôr o meu nome na praça pública. Essa exposição aconteceu em 2010. Foi a minha única exposição até aqui. Olhando para trás, penso que não deveria ter feito aquilo daquela forma e isso deixou-me com uma espécie de reticências e muita autocrítica em relação a fazer exposições. Quando for a expor, quero que esteja bem patente que aquilo é à minha imagem. Estou há seis anos a preparar uma exposição. Originalmente, era para ter sido exposta em 2017, mas, depois de ter começado em 2016, não tinha atingido o número de fotografias que eu desejava. Em 2018 casei-me e a partir de 2019 não havia condições para expor. Mas tenho material suficiente. O tema é acertado e forte e tenho uma curadora, que é Sónia Sultuane. Desde o início do projecto que eu pensei que devia ter um curador que olhasse para o meu trabalho com os olhos diferentes dos meus. No meu estágio e dentro das pessoas que eu conheço pessoalmente, não consigo encontrar alguém mais digno de ver o meu trabalho, pela experiência que tem. Eu acredito que não passa de 2023, até porque a minha esposa tem dito que estou com muitos projectos de exposição que não estou a fazer.

 

Acredito que a Sónia Sultuane é uma das pessoas que gostou muito de fotografar. Ela é tão fotogénica…

Além de fotogénica, ela tem uma boa energia. Sempre que posso interagir com ela, não me nego a essa oportunidade. Sempre que me encontro com ela, surge-me uma ideia nova do que posso fazer.

 

Sugestões artísticas para os leitores do jornal O País?

Sugiro o livro O último voo do flamingo, de Mia Couto, e o filme The prestige, de Christopher Nolan.

 

Perfil

 

Jay Garrido nasceu a 12 de Maio de 1984. “Sempre disse que a primeira coisa que me aconteceu no mundo foi sentir um raio de sol, e, por isso, alimento-me muito da luz do dia e da energia boa do sol”. O fotógrafo considera-se uma mescla de artes. “Sou filho de Música e Paixão. Sempre me vi englobado numa perspectiva artística, e deixei o fluxo da vida me encaixar onde melhor me sentia”. Actualmente, considera-se um Curador de Aventuras Audiovisuais.

 

 

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