“O espaço não é realida de em si, mas sim a experiência do homem, e a perspectiva não é lei constante do espírto humano” –
Maria Raposo (1999)
Há quem, de longe, olhando-nos como quem decifra qualquer coisa que mereça essa investida calculada, interpela-nos com algumas palavras como “você vai escrever sobre isso”. Uma pergunta não aberta, até porque, sabe-se, a convenção não segue para esse caminho, mas uma pergunta deixada ao acaso, e sem nenhuma tonalidade de pergunta, e que se conflui nessa ambiguidade de recomendação, pergunta e afirmação; convenhamos, o silêncio que daí advém é a única coisa sensata. Esse augúrio de quem deixa tudo para o lado e faz uma imersão naquele singular momento revela muito da exposição. E essa coisa bela deu-se na inauguração da exposição colectiva “mahanhela” (vivências em ronga/changana) na última quarta-feira (06/08), na Fundação Fernando Leite Couto.
Já tendo exposto cá o título que carrega esta exposição, considero que já estejam criadas as condições para esse retomar de juízos. Sim, juízos, pois são muitos. Por um dado momento paramos com um pensamento em mãos, e num outro instante atropela-nos um outro, e assim acabamos nesse baile de parar e sermos atropelados. E eu ter escrito sobre aquele preciso momento em que alguém me falou sobre escrever sobre a exposição, talvez sem uma explicação consciente — e como dá-nos regozijo ter o Freud para explicar algumas das nossas incoerências somente com a palavra inconsciente — era mesmo para esse fim de retratar e fotografar pensamentos instantâneos, o que é o pano de fundo da técnica e proposta pictórica de Phamby.
Vamos falar da obra “A nsati ni lovholile”, que, traduzindo para português, signfica “eu lobolei a mulher”, com as dimensões 98cm x 90cm, um acrílico sobre tela. Primeiro que, tal como nas outras obras, Phamby usa o pincel com muita rapidez. Essa rápida pincelada pode suscitar ideias de que Phamby “despacha” o seu trabalho. Contudo, em algumas vezes, em artes, nem todos os adereços estão inseridos na obra para esse jogo dialógico que visa balbuciar qualquer significado que seja, às vezes, está apenas para o ornamento da própria obra, nesse olhar atento à estética. Essa falta de sensibilidade criva no apreciador, que está nessa incessante procura pelo que se diz, a ideia de que uma obra está, como se pode pensar, no caso de Phamby, “despachado” (feito sem cauto).
Com pinceladas rápidas — e que se entenda bem o que quis dizer, porque é mesmo isso, pinceladas rápidas — Phamby, nessa sua missão pictórica, pinta um homem carregando nas costas uma mulher, a sua já mulher. Os talvezes aqui também se misturam (darão-me, por agora, um tempo para ser Mia Couto): por um lado nesse gesto pode interpretar-se carinho que um homem tem pela mulher a qual lobola, por um outro lado pode trazer à tona o sentimento generalizado que se tem quando um homem, finalmente, paga o dote, então ‘carrega’ a sua mulher. E esse carregar pode não ser mais de carinho, mas de ‘coisificação’ da própria mulher, em que o homem já se sente o proprietário da mulher. Ou mesmo um outro terceiro lado: pode ser interpretado como uma simbologia de como o casamento é visto; neste ponto a biblia, que é uma tradição outra, e a tradição africana andam de mãos como marido e mulher pintados no quadro “casamento” do mesmo artista na mesma exposição: ambos concordam que o homem é o provedor. Em palavras outras, talvez, há aqui a representação de como, no casamento, quem “carrega” quem. Esse carregar já é diferente do primeiro e do segundo, esse carregar tem o sentido outro ainda, que é do homem alimentando a mulher, e a mulher vivendo nas costas do marido, como quem não anda com os próprios pés, aliás, não vive com os próprios pés.
Se há aqui uma suposta bifurcação (sendo mais fiel à realidade semântica do quadro, trifurcação), há também um ponto de confluência de todos esses três caminhos: o lobolo, que se torna um regozijo para ambos. Essa temática pasmada e clara para todos encontra suporte nos cabritos, simbolizando o dote que sempre se dá, o “xibakela” de vinho que também é um requisito para essas cerimónias, e a caixa de cervejas e algum e outro objecto que trazem à tona a ideia de bens, que reflectem também os valores (monetários) usados para honrar aos pais da mulher.
Essas todas coisas no quadro, o cabrito, o vinho, as cervejas, criam essa atmosfera mais ponderada, mais mediada e meditada, que foge um pouco da proposta que Phambyra nos dá nessa exposição, quando, por exemplo, ele pinta a “sala azul” e o “tipo 1”. O primeiro pode ser uma captação do silêncio, tanto sonoro como de movimento, simbolizada por objectos no seu devido lugar, e o outro, o “tipo 1” que pode projectar o modo de viver de pessoas de média baixa renda.
Vê-se, por exemplo, nessas duas pinturas a captura não da mensagem, mas a tentativa de trazer o instante, aquele momento que ocorre em qualquer lugar mas passa despercebido, e quantos instantes nos passam despercebidos (!). O instante do silêncio na “sala azul”, o instante em que um homem e uma mulher dão-se as mãos no quadro “A mutchato”, os instantes de apreensão e início de emoções como a felicidade nos “rostos familiares III e V”. No caso de “A nsati ni lovholile” esse instante é muito dilatado por detalhes como cabrito, o vinho, as cervejas que não dão o sentido de um momento em específico no evento todo, de um piscar de olho em toda a cerimônia, mas são quadros significativos que se complementam e criam “the bigger picture”, que é uma expressão em inglês usada para referir ao entendimento duma situação que inclui mais do que é imediatamente aparente. Ou seja, Phamby, nesse quadro, “A nsati ni lovholile”, não é imediato, mas ponderado; os críticos franceses diriam que ele foi mais um ‘Peintre d’atelier plutôt que de plein air, celui qui observe la nature et saisit l’instant (pintor de oficina do que de ar livre, aquele que olha a natureza e capta o instante).
Tendo em conta o imediatismo que caracteriza os quadros, e menos conseguido nesse quadro em particular por excesso de detalhes que, no lugar de captar o instante, captam toda a forma do acto de lobolar ou a sua completa e metódica significação, o diálogo do cotidiano presente nas suas mostras como o próprio lobolo, os rostos familiares, o casamento, a sala azul e o tipo 1, alia-se também as pinceladas que são rápidas, como que o artista não dá importância à perfeição, onde a luz e a cor são mais importantes na criação de formas do que linhas, aliás nem há linhas. Esse é um outro ponto a segurar, também para rever a ideia do despachar que se possa pensar nos quadros de Phamby: este não usa da linha para criar formas, mas deixa com que a cor e o pincel dêem formas aos seus próprios desenhos.
Phamby não é, como se pode dizer, um retratista. De lado a lado, Maria Chale, no quadro “disponível por encomenda”, é/foi uma retratista, sendo por isso passível de se encaixar nessas exigências de perfeição linear nos traços que fazem as formas. Se a Maria Chale está mais para uma realista, tendo como ponto de análise a obra em alusão, Phamby já é um impressionista, tendo em conta essa exposição, e tudo que já disse atrás. Se por um lado há esse capturar do que é realidade e suas vivências, por outro lado esse capturar vai divergir de formas/caminhos entre as duas formas de fazer a pintura. A Chale é fiel à realidade, então há essa tentativa de se retratar na perfeição, e essa não é a oficina de Phamby, esse foca-se nos instantes, nos momentos singulares e imediatos, ou seja, “como o tempo possui apenas uma realidade, a do instante, os atos de criação dos impressionistas são instantâneos” (RAPOSO, 1999), em que a rapidez nas pinceladas dão-se pela razão de querer captar o segundo em que tudo muda.
Já tendo esse ponto de pressuposição, Phamby, em “a nsati ni lovholile” não se foca no todo, mas contraria, diria eu, o gestaltismo (uma teoria de formas da psicologia) quando enfatiza a parte isolada e pouco lhe interessa a percepção holística da experiência humana sobre o lobolo. E se for isso, aqui se teria a falta de profundidade da própria obra. Mas, todas as minhas crenças apontam para esse destino: o artista nos dá o instante de exultação do casal quando se finaliza todo o processo de lobolar, e eles podem, finalmente, ficar juntos.
Phamby não pinta com régua e esquadro, não é a sua intenção procurar perfeição linear nos traços, mas procura capturar uma imagem que, por ser executada sem preparo, acaba desfocada. Como o tempo que é um tecido feito de instantes, o artista procura capturar esses momentos instantâneos, como se dissesse que a vida, muitas das vezes, não se explica, mas passa, então procura perenizar estes instantes que justifacam a vida e que passam, o revirar dos olhos, o bocejar numa conversa entediante, ou mesmo a exultação quando se casa, finalmente, quem se ama.
Referência:
Raposo, M. T. R. (1998/1999). O conceito de imitação na pintura renascentista e impressionista. Revista Eletrônica Print by FUNREI, Metavnoia, (1), 43–50. http://www.funrei.br/revistas/filosofia