Em Moçambique, a juventude vibra com o ANAMOLA. Vibra porque vê nele frescor, novidade, energia. Vibra porque está cansada da velha política que se arrasta há cinquenta anos com as mesmas caras, os mesmos discursos e os mesmos truques.
Nunca fui de partido nenhum. Nunca carreguei cartão de membro, nunca bati palmas em congressos, nunca fui cabo de ninguém. Nunca. Talvez, num ou noutro momento da minha juventude, tenha me iludido com a possibilidade de apoiar uma ideia revolucionária que nascia — mas logo percebi que todo movimento, cedo ou tarde, se fecha e vira partido. E partido é sempre máquina, é sempre engrenagem, é sempre estatuto e disciplina. Movimento é vida, mas partido é burocracia.
Eu não me filio a igrejas talvez numa tenra imatura idade fui, nem a clubes de futebol, nem a partidos políticos. Não tenho deuses, nem políticos, nem pastores que pensem por mim. Sou um jovem herético, céptico, liberal, humanista e existencialista. E justamente por não ter amarras, ouso dizer o que muitos não dizem: a juventude de Moçambique precisa aprender a pensar por si, antes de se deixar manipular pelas máquinas partidárias.
Se sabe que a juventude moçambicana tem sede de mudança. Essa sede é legítima. O país não precisa de mais discursos vazios, mas de uma verdadeira transformação social, política e cultural. Nesse contexto, nasce o ANAMOLA: muitos jovens acreditam que ele é um movimento, uma revolução. Mas, entre a vibração e a consciência há um abismo. É preciso fazer uma pausa, jus, pensar, analisar e compreender: ANAMOLA não é um movimento — na verdade, pela Constituição, é apenas mais um partido. Um partido legalizado, que tem de funcionar com estatutos, regulamentos e hierarquias. E a diferença é fundamental.
E aqui surge a contradição: pode um partido ser movimento? Pode um partido ser revolução? A resposta é não. Um movimento pode inspirar um partido, mas um partido nunca poderá ser um movimento revolucionário, porque o movimento é espontâneo, orgânico, plural, enquanto o partido é institucional, hierárquico e regulado. Um partido é criatura da lei. Um movimento é criatura da vida. Um partido é estatuto, disciplina, organograma. Um movimento é fluxo, energia, espontaneidade. Ao se legalizar como partido, o ANAMOLA entrou para a arena institucional, com todas as suas regras e vícios.
E aqui começam os problemas: muitos jovens do ANAMOLA já não toleram críticas. Pensam que criticar o partido é atacar o sonho. Confundem divergência com traição. Isso não é novo: a FRELIMO sempre funcionou assim. Desde os tempos da luta armada, quem questionasse a linha política do partido era visto como traidor. A disciplina partidária substituiu a liberdade crítica. A mesma lógica continua até hoje: quem critica o partido é inimigo do povo.
A RENAMO fez o mesmo. Ao longo da sua história, quem divergia da linha de Dhlakama era afastado, punido ou silenciado. A lógica de “ou estás connosco ou contra nós” sempre predominou. O mesmo se repete no MDM, onde os líderes locais que ousaram questionar Daviz Simango foram marginalizados e o próprio Venâncio e os demais sabem disso. É a velha política de inimizade que Achille Mbembe tão bem descreveu.
Essa aversão à crítica não é exclusiva da política. A religião sempre funcionou do mesmo modo. Quando monges ou pensadores medievais ousaram questionar a Bíblia, a Igreja os queimou vivos. Chamavam-nos hereges, como se pensar fosse pecado. Daí nasceu a Inquisição, tribunal do medo, que calava as vozes divergentes. O Islão político também usou a mesma lógica: guerras santas para eliminar os infiéis e consolidar o monopólio da fé.
Os partidos — todos eles — se parecem com igrejas. E eu não sou de igreja nenhuma. As igrejas queimaram hereges na fogueira; os partidos queimam dissidentes no silêncio, na exclusão, no desemprego, na perseguição. A Igreja criou a Inquisição; os partidos criaram a censura e a disciplina. A Igreja inventou guerras santas; os partidos inventaram guerras civis. No fundo, é sempre a mesma lógica: quem critica é inimigo, quem pensa diferente deve ser silenciado.
Ora, em política, o resultado foi semelhante. Sempre que alguém ousou pensar diferente, surgiram partidos oposicionistas — não porque o sistema aceitava a crítica, mas porque a crítica era expulsa e obrigada a organizar-se em novas estruturas. É assim que nasceram muitos partidos de oposição em África: não como fruto da diversidade democrática, mas como produto da exclusão política.
Em Moçambique, não é diferente. A Frelimo expulsa, marginaliza, silencia. Daí surgiram desertores, dissidentes e, no fim, partidos como a RENAMO e o MDM e outros. Agora surge o ANAMOLA, tentando ocupar o espaço da esperança popular. Mas se não aprender com essa história, se repetir os mesmos erros, se não aceitar a crítica, acabará por transformar-se numa cópia das forças que hoje combate.
E aqui está o perigo: um partido que não tolera crítica é igual a uma igreja que queima hereges. A política torna-se uma nova religião. O líder é visto como um deus invisível — presente em todos os discursos, mas ausente quando o povo precisa de prestação de contas. O povo torna-se massa obediente, recitando slogans em vez de pensar. Por isso, quero partilhar dez pressupostos que mostram claramente essa tensão — e que servem para a juventude reflectir e não se deixar enganar pelo entusiasmo sem pensamento crítico.
- Um partido nasce da lei; um movimento nasce da vida.
O ANAMOLA está inscrito como partido político, regulado pelo Estado. Isso significa que tem de obedecer regras jurídicas, apresentar contas, seguir estatutos. Um movimento, ao contrário, nasce da rua, da consciência coletiva, das lutas sociais. Não precisa de autorização do Estado para existir, porque é expressão direta do povo.
- Partido é estrutura vertical; movimento é fluxo horizontal.
Num partido há presidente, secretário, porta-voz. Há cargos e hierarquias. Num movimento, não: todos são vozes, todos são protagonistas. Quando o ANAMOLA insiste em se chamar movimento, ignora que já está preso na verticalidade da lei que o reconhece como partido.
- O partido divide; o movimento agrega.
Um partido vive da disputa eleitoral, precisa mostrar que é melhor que os outros. Isso gera competição, inimizade e clubismo. Já o movimento social não se define contra outro movimento, mas pelo objetivo comum (liberdade, igualdade, justiça). O ANAMOLA, sendo partido, já entrou no jogo da divisão.
- O partido obedece a estatutos; o movimento obedece à consciência.
Militantes de partidos não podem falar livremente contra o seu partido, porque há disciplina interna. Num movimento, a crítica é parte da vida. Se os jovens do ANAMOLA não aceitam críticas, já estão a comportar-se como militantes partidários e não como cidadãos livres.
- Ser membro de partido não é ser revolucionário.
Muitos jovens do ANAMOLA pensam que ser membro de partido é já ser revolucionário. Não é. É apenas uma escolha institucional. A revolução está na rua, no pensamento crítico, na desobediência ao status quo — nunca apenas no cartão de membro.
- Movimento é luta pelo bem comum; partido é luta pelo poder.
O objectivo último de qualquer partido é conquistar o poder do Estado. O objectivo de um movimento é pressionar o poder, fiscalizá-lo, mudar consciências. ANAMOLA, como partido, inevitavelmente, terá de disputar cadeiras no parlamento. Isso não é revolução, é institucionalização.
- A política não é propriedade dos partidos.
Aristóteles dizia que o homem é zoon politikon, animal político. Isso significa que política é vida comum, partilha de destino. Reduzir política a partidos é empobrecer a cidadania. ANAMOLA, se quiser ser mais que partido, terá de voltar-se à vida da sociedade civil.
- Movimento é diversidade; partido é disciplina.
No movimento cabem várias vozes, até contraditórias, porque a força está na pluralidade. Num partido, há disciplina de voto, disciplina de opinião, disciplina de ação. Quem diverge é castigado ou expulso. Isso já está a acontecer com membros do ANAMOLA que não aceitam certas críticas.
- A juventude precisa aprender a diferença entre engajamento e fanatismo.
Ser engajado significa participar, refletir, propor. Ser fanático significa obedecer cegamente, defender sem pensar. Muitos jovens do ANAMOLA estão a cair no fanatismo partidário, confundindo crítica com traição. Isso é sinal de imaturidade política.
- Partido não é revolução; é administração da revolução.
A revolução é sempre maior que qualquer partido. Um partido pode, no máximo, administrar os resultados da revolução. Mas se a revolução é capturada pelo partido, morre. Assim aconteceu em Moçambique: a FRELIMO foi movimento libertador, mas ao virar partido matou a revolução. O mesmo destino ameaça o ANAMOLA.
A Constituição da República legalizou partidos como instrumentos de representação política. E aí está o primeiro ponto de reflexão: um partido é uma instituição do Estado, não uma insurreição contra ele. Por isso, todo partido, seja ele a FRELIMO, a RENAMO, o MDM ou o mais recente ANAMOLA, nasce dentro da moldura legal e não pode, em hipótese alguma, transgredir os limites dessa legalidade. A revolução, pelo contrário, nasce sempre da ruptura, da desobediência, da ousadia de ir além. Por isso, um partido nunca será movimento, e um movimento nunca poderá ser partido.
E termino com 11 pressupostos sobre o fim da revolução moçambicana da geração 18 de Março e o nascimento do partido.
- A juventude moçambicana trancou a crítica. Hoje, criticar um partido é ser logo acusado de “inimigo”, “vendido” ou “agente infiltrado”. Mas sem crítica, não há revolução — há seita e obediência. E aqui está a armadilha: os partidos transformaram jovens em crentes, não em pensadores.
- Não há mais revolução em Moçambique. As ruas, que já foram espaço de resistência, hoje estarão vazias. Cada protesto será visto como manifestação partidária, e não como voz popular. O que quer dizer, em Moçambique, a revolução acabou. A rua já não é espaço de resistência. Toda manifestação é criminalizada ou classificada como partidária. Se alguém protesta contra a fome, logo se pergunta: “É da FRELIMO? É da RENAMO? É do ANAMOLA?” A voz do povo se dissolve no ruído das bandeiras.
- Ninguém mais irá à rua. Porque a rua foi apropriada pelas bandeiras. Todo grito será imediatamente classificado como pertencente a esta ou àquela cor, nunca como grito de um povo livre. A rua deixou de ser da revolução para ser do comício.
- Há hierarquia partidária. O militante não é sujeito livre, mas peça de engrenagem. Obedece, marcha, vota, aplaude. Se não, é expulso. O militante é soldado. A crítica é traição. O partido é quartel. Não por acaso, a linguagem política é sempre militarizada: células, brigadas, disciplina, camaradas. O jovem aprende cedo que ser político não é ser livre, mas ser obediente.
- O partido é legalizado pela Constituição. Isso significa que ele não pode transgredir, não pode ultrapassar, não pode quebrar as grades que o Estado lhe impôs. O movimento é ilegal, selvagem, criador. O partido é legal, domesticado, regulado. Todo partido é legal. E o que é legal não pode ser revolucionário. A legalidade domestica o ímpeto do grito. A revolução é sempre ilegal: os primeiros cristãos contra Roma, os hereges contra a Igreja, os guerrilheiros contra o colono. Mas, uma vez legalizados, tornam-se ordem, dogma, partido.
- Os membros aceitam e obedecem. Mesmo que não compreendam, mesmo que discordem.. Por isso, os partidos, obediência é mérito; crítica é pecado. Quem critica é chamado de divisionista, desestabilizador, inimigo interno. A obediência é premiada com cargos, a crítica é punida com expulsão.
- A consequência da desobediência é a exclusão. Não há espaço para o dissidente: ele vira inimigo, traidor, marginal. Assim o partido reproduz a lógica da igreja que excomunga e da política que silencia. A Inquisição política não usa fogueiras, mas difamação, expulsão, silêncio.
- O movimento morreu quando virou estatuto. Porque o movimento é chama, é espontaneidade, é grito. Já o partido é acta, congresso, disciplina. Vive de congressos, estatutos e reuniões. Quando o movimento vira partido, o fogo vira cinza.
- A juventude confunde engajamento com submissão. Muitos jovens acreditam que ser político é ser obediente ao partido, e não crítico diante da sociedade. Confundem militância com servidão. Hoje, muitos jovens acreditam que ser militante é dizer “sim” ao líder. Confundem engajamento com idolatria. O militante não é crítico: é fã. O partido virou estádio de futebol, onde se grita o nome do craque e se vaia o adversário.
- Não haverá mais espaço para revoltas autênticas. Toda manifestação será imediatamente cooptada, absorvida, etiquetada como “pró” ou “contra” este ou aquele partido. A voz do povo desaparecerá sob o rótulo. Ou seja, haverá cooptação das revolta. Toda revolta popular é rapidamente cooptada. Quando camponeses protestam, dizem: “É manipulação partidária”. Quando estudantes marcham, dizem: “Estão infiltrados”. O povo perde voz, porque tudo é absorvido pela lógica partidária.
- O resultado é o fim da revolução. Porque sem crítica, sem rua, sem autonomia, sem desobediência, sem risco — não há transformação. Há apenas manutenção de uma ordem partidária que se alimenta da juventude como massa de manobra.
Na política moçambicana, o problema é agravado pela gerontocracia. Os mais velhos decidem, os mais jovens obedecem. As juventudes dos partidos são escadas de ascensão, não espaços de pensamento. A OJM, a Liga Feminina, as juventudes partidárias — todas domesticadas para servir ao projeto do poder.
ANAMOLA, que nasce sob a esperança de ser movimento, já carrega em si o destino de ser partido domesticado. Seus jovens militantes já aprenderam a reagir à crítica como a Igreja reagia aos hereges: com fúria, não com reflexão.
Reflexão Final
Juventude de Moçambique, pensai: não confundam entusiasmo com consciência. Não confundam cartão de membro com cidadania. Não confundam partido com movimento.
O anúncio de que o ANAMOLA atingiu mais de 64 mil membros em apenas 10 dias caiu como uma bomba no panorama político moçambicano. Para uns, é sinal de esperança. Para outros, um exagero propagandístico. Para os mais atentos, é mais do que isso: é um sintoma.
Se quisermos olhar com rigor, não podemos apenas repetir números. Precisamos perguntar, como diria Gramsci: qual é o “bloco histórico” que sustenta esse entusiasmo? Em outras palavras: o que significa, em termos de poder real, ter 64 mil nomes numa lista num país que há quase 50 anos vive sob hegemonia de um só partido?
É evidente que muitos dos 64 mil membros inscritos de ANAMOLA jamais se identificarão publicamente. Viver em Moçambique significa viver sob a sombra do medo: medo de represálias no emprego, medo de perseguição política, medo de exclusão social. Assim, uma parte significativa desses membros será invisível — militantes ocultos que podem existir apenas no número, não na acção. Ou se forem alguns quadros serão eles na liderança. Como o fixarão Raúl Novinte. E só serão publicados assim que forem dados cadeira confiável. Isso é crucial: o número cresce, mas a coragem de se expor não cresce na mesma proporção.
A ANAMOLA, legalmente, é um partido. Pode querer parecer movimento, pode falar como se fosse revolução, mas a sua natureza oficial já o condena a ser aquilo que todos os partidos são: uma instituição que busca poder. A verdadeira revolução não cabe nos estatutos, não cabe no registo do Conselho Constitucional, não cabe nos gabinetes. A revolução vive na consciência crítica e na luta organizada do povo. Por isso, ser militante não é suficiente. É preciso ser cidadão ativo, livre, pensante. Porque sem isso, amanhã estaremos apenas a repetir a mesma história: partidos que nascem como esperança e morrem como instrumentos de poder.
Um partido é apenas uma máquina de disputar poder. Um movimento é uma energia de transformação social. Se o ANAMOLA não abrir espaço para crítica, se não cultivar debate, se não aceitar divergência, morrerá como todos os outros: velho antes mesmo de envelhecer. A história mostra: quem proíbe crítica fabrica dogma. Quem fabrica dogma fabrica guerra. A Igreja fez guerras santas. A política faz guerras partidárias. O resultado é sempre o mesmo: sangue, silêncio e repetição dos mesmos erros.
Enquanto a juventude trancar a crítica, não haverá revolução. Haverá apenas partidos — legalizados, obedientes, disciplinados, hierárquicos — que alimentarão a ilusão de mudança, mas reproduzirão o mesmo sistema. Por isso digo: a juventude precisa escolher entre ser herege ou ser crente; entre ser crítico ou ser obediente; entre ser movimento ou ser partido.
