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O Diálogo Inclusivo que Deixou de Ser Diálogo

Introdução: Em Moçambique, a palavra “diálogo” tornou-se omnipresente, repetida como um refrão político, mas raramente concretizada na prática. Desde o lançamento do chamado Diálogo Nacional Inclusivo, em 2025, o termo assumiu centralidade na narrativa oficial como resposta às tensões e polarizações resultantes das eleições de 2024. A sua invocação carrega uma promessa de reconciliação e refundação democrática, mas a observação do processo revela mais contradições do que avanços. O diálogo que deveria ser um espaço de construção de entendimento mútuo foi rapidamente capturado pelas lógicas de poder que marcam a política moçambicana.

Dialogar para ganhar, e não para dialogar: A hegemonia do partido no poder, a fragilidade da oposição e a instrumentalização da sociedade civil ajudam a explicar o percurso que o diálogo tomou. A Frelimo percebeu desde cedo o valor simbólico do processo, apresentando-o como vitrine de pluralismo e abertura, ao mesmo tempo que mantém o controlo da sua agenda e define os limites da participação. O diálogo converte-se, assim, num mecanismo de gestão de tensões e não de transformação política. Os partidos menores, enfraquecidos por sucessivas derrotas e falta de base social, vêem nele mais uma oportunidade de sobrevivência do que um compromisso com a construção colectiva. A sua presença assegura visibilidade, acesso a recursos e uma sensação de relevância, mas pouco acrescenta à substância da discussão. No mesmo cenário, actores emergentes como Venâncio Mondlane — figura controversa e inquieta — vêem-se, eles próprios, como catalisadores e vítimas desse processo. Criador da ANAMOLA, partido emergente que procura transformar o descontentamento em força política, Mondlane tornou-se presença incômoda. Fora da plataforma oficial, mas sem abandonar o discurso do diálogo, decidiu fundar um diálogo paralelo, como quem ergue um espelho diante do Estado. Porém, ironicamente, o espelho devolve o mesmo reflexo: cálculo, não entendimento.

O paradoxo torna-se evidente: aquilo que foi concebido como espaço de inclusão rapidamente se converteu em ritual de exclusões recíprocas. As mesas de auscultação multiplicam-se, os comunicados são divulgados com pompa e as câmaras registam cada gesto, mas a confiança pública permanece mínima. O diálogo existe mais como performance do que como prática, e a sua função parece ser a de administrar diferenças em vez de as resolver. Nesse processo, a sociedade é frequentemente reduzida ao papel de espectadora, convocada a legitimar decisões já tomadas em instâncias anteriores, sem verdadeira possibilidade de influenciar os resultados. 

(A ANAMOLA já apresentou a sua proposta de reformas. Nesse contexto, importa questionar qual a utilidade do diálogo recentemente lançado por si. Legitimação? Do mesmo modo, a proposta de agenda apresentada pela COTE visa, em última instância, indagar junto da população de Sabié se esta prefere um sistema semipresidencial ou presidencial?)

Entre o ideal de diálogo e o faz de conta: A teoria científica oferece ferramentas úteis para compreender esta contradição. Paulo Freire recorda que o diálogo é, antes de tudo, um acto de reconhecimento do outro como sujeito. Não se dialoga para vencer, mas para transformar e compreender. Jürgen Habermas, por sua vez, define a democracia como espaço da razão comunicativa, onde a verdade resulta da força do argumento e não da posição de poder. A distinção que faz entre racionalidade comunicativa e racionalidade estratégica é central para interpretar o caso moçambicano. O diálogo moçambicano opera predominantemente sob racionalidade estratégica: fala-se para legitimar posições, preservar hegemonias ou garantir sobrevivência política, e não para construir consensos genuínos. O resultado é um processo colonizado pelo sistema, onde a linguagem deixa de ser instrumento de entendimento e passa a ser moeda de troca.

A experiência internacional mostra que diálogos autênticos são necessariamente conflituosos, demorados e onerosos. O processo de paz na Colômbia só ganhou legitimidade quando incluiu vítimas e comunidades rurais marginalizadas, mesmo que isso tenha atrasado o calendário e aumentado a complexidade. O Acordo de Belfast, na Irlanda do Norte, revelou que não há reconciliação possível sem regras claras de igualdade de voz, mediação independente e compromissos verificáveis. A transição democrática da Coreia do Sul demonstrou que diálogos políticos só se tornam duradouros quando acompanhados por mecanismos de responsabilização e transparência pública. Em todos estes casos, o custo foi elevado, mas o resultado foi a criação de legitimidade. Moçambique, pelo contrário, procura atalhos: quer velocidade, harmonia e imagem, como se fosse possível colher os frutos da conversa sem o esforço da escuta.

O sentido perdido da palavra: O problema é também linguístico. Palavras como “inclusão”, “reconciliação” e “refundação” perderam densidade normativa e circulam como etiquetas performativas, sem correspondência na prática. O discurso político tornou-se espectáculo, uma feira de intenções em que se fala mais para ser visto do que para construir compromissos reais. Quando a linguagem se esvazia, a política perde a sua função deliberativa e transforma-se em ritual legitimador.

O Diálogo Nacional Inclusivo, tal como conduzido até agora, corre o risco de se tornar um espantalho democrático: visível, mas vazio. Mais do que resolver as tensões nacionais que justificaram a sua criação, tende a perpetuá-las, reforçando a percepção de que a política em Moçambique é menos espaço de deliberação e mais arena de encenação. A ciência mostra que diálogos genuínos só existem quando são inclusivos de facto, quando aceitam o desconforto e quando produzem acção concreta. Sem estas condições, o país continuará preso ao paradoxo cruel de falar incessantemente em diálogo enquanto dialoga cada vez menos.

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