O País – A verdade como notícia

O dever de perturbar o sono dos decentes

Um País tem heróis e heróis. Os primeiros são aqueles que merecem ruas, avenidas, praças, escolas e aeroportos em seu nome. Celebra-se a sua bravura. Os segundos são aqueles que passam despercebidos e, por isso, não são celebrados. Pertencem a esta segunda categoria todos aqueles que participam na construção do País pela crítica. Esta não se reduz ao simples acto de dizer o que está mal, embora isso seja importante. Tem a ver também com o simples acto de interpelar, isto é perguntar de novo se as coisas são realmente como se pensa que são.

O jornalismo faz isso muito bem. Não o faz sozinho. Fá-lo com todos aqueles que não são apenas moçambicanos, mas sentem que são também cidadãos. Um cidadão reconhece que leva consigo nos ombros o fardo de pensar o País e exigir contas a quem o governa. Esse cidadão tem no jornalismo a oportunidade de que precisa para viver a sua cidadania. É uma situação “Win-Win”. O jornalismo ganha interlocutores e o cidadão ganha um meio que permita ser ouvido. Tudo isto pressupõe, claro, a liberdade de imprensa, mas não só: também a coragem de a exigir!

Exercer a cidadania, contudo, não faz de ninguém melhor do que ninguém. Da mesma forma que não pode haver prémio para o simples facto de se ser pessoa, existindo, também não pode haver prémio para a cidadania. Cidadania é, acima de tudo, responsabilidade. O programa “Noite Informativa”, por exemplo, é um espaço de eleição para o cidadão responsável. Quando tudo está mais ou menos bem – que é quase nunca em Moçambique – o “Noite Informativa” é esse espaço de responsabilidade cívica. Quando as coisas estão mal – como agora é, infelizmente, nos últimos anos – esse espaço não é apenas de responsabilidade cívica. Torna-se um espaço de decência, uma virtude cuja falta faz muito mal ao País.

Uma violência contra o Estado, que começou pequena, ganhou proporções que a colocam acima de qualquer capacidade deste Estado de lidar com ela. E, pior, tudo o que o Estado até agora fez para abordar essa violência transformou-se em problema em si. Os mercenários contratados e que drenaram recursos públicos e as tropas estrangeiras chamadas sem consulta pública são uma faca de dois gumes. Quando têm sucesso, como foi o caso com as tropas ruandeses no início, eles mostram o desastre que nós próprios somos. Quando se vão embora, como as forças da região decidiram fazê-lo, dão-nos a forte impressão de que o problema é bem mais complicado do que temos a coragem de admitir.

Seja qual for a leitura que fizermos, o que se torna claro é que estamos entregues. Estamos entregues à prepotência dos nossos próprios governantes, diga-se. As revelações recentes sobre o envolvimento com criminosos internacionais que nos tempos livres ensaiam golpes de Estado tornam o cenário ainda mais sombrio. E quando queremos desenhar um quadro mais completo e, por isso, olhamos para os raptos, para a crise financeira do Estado aparentemente incapaz, não só de pagar aos seus funcionários, como também de honrar com compromissos financeiros com empresas do sector privado, as greves na educação e na saúde, bem como a ameaça de greve dos juízes, as três refeições por dia que continuam a manter o nosso País nos escalões internacionais mais baixos de nutrição, etc., ficamos tontos.

Mas o que estonteia mesmo até nem é a enormidade dos problemas. É a recusa dos decentes de exercerem a sua cidadania. Não é que oportunidades faltem. Quando jovens foram à rua para chorarem o desaparecimento físico do seu ídolo, o músico Azagaia, e tiveram de enfrentar gás lacrimogénio da polícia que devia proteger o seu direito de se manifestaram – e que estranhamente viu neles uma ameaça de golpe de Estado – os decentes ficaram calados. Não vieram ao socorro dos jovens para dizer que foi também pelo direito de manifestação que se lutou pela independência. Quando as eleições municipais foram marcadas por terríveis irregularidades, os decentes continuaram impávidos e serenos, alguns à espera de ganhar na lotaria da candidatura presidencial para depois se pronunciarem. E quando o maior partido do País, de forma atabalhoada, escolheu o seu candidato sem ouvir de nenhuma deles que ideias tinha para o País, essas mesmas pessoas decentes continuaram a cuidar do seu silêncio, porque, ao contrário de nós, que estamos longe do poder político, eles sabem que dez anos não são nada e, em devido tempo, isto é, em 2035, terão nova oportunidade de tentar mudar as coisas.

Os decentes encontram-se em todo o lado, não só em estruturas partidárias. Estão no aparelho do Estado, rangem os dentes como todos nós, encolhem os ombros, exasperam-se em silêncio, mas, de forma obediente, fingem que está tudo bem e que, se não estiver, vai ficar bem. Um dia. Decência é isso mesmo. Não comprometer o bom nome daquele que garante o pouco pão – que até é muito se comparado com o que o pacato cidadão consegue desenrascar – é uma virtude. Aceitar que outros sofram para não perder o que se tem é também uma virtude. A crise moral dum País revela-se nesta equação simples: quando o vício é virtude e virtude é vício.

Nestas circunstâncias, são heróis aqueles que criam oportunidades para que se discuta o País, mesmo se isso significa perturbar o sono dos decentes. O jornalismo faz isso muito bem, porque, no mundo de avesso que Moçambique se tornou, o vício da indecência pode ser uma virtude. O sono profundo em que os decentes parecem preferir estar impede-os de verem que o País está bem mal, aliás, muito mal.

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