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No fundo somos todos uma só raça: a raça humana

Sou Catarina Matusse, nascida no campo onde a vida pulsava lentamente, entre a terra e o ar fresco, onde o sustento da minha família se erguia dos cultivos que a natureza generosamente nos oferecia. Desde cedo, a educação era a luz que me guiava, iluminando o obscuro horizonte dos costumes que me cercavam. Quando terminei a 12.ª classe em Manjacaze, deixei para trás a tranquilidade da minha aldeia e mergulhei no caos vibrante da cidade de Maputo, onde o ritmo acelerado da vida se contrapunha à serenidade dos campos.

Aqui, tudo era diferente: as pessoas moviam-se apressadas, as prioridades eram moldadas por um egoísmo urbano que me destoava, e a luta pela sobrevivência adquiria um novo significado. Adaptar-me foi uma jornada dolorosa, onde cada passo me afastava das raízes que me sustentavam. Porém, não me deixei vencer. Lutei, estudei, e finalmente formei-me, senti um misto de orgulho e solidão. Confesso! 

Estar longe dos meus pais, meu porto seguro, era aterrorizante, mas foi o que escolhi e devo seguir por esse caminho! Até porque tornei-me a mulher que sempre sonhei ser, financeira e emocionalmente independente, capaz de estender a mão a meus pais em Gaza, que ainda aguardavam a minha luz com esperança. A cada vitória, ecoava em mim a mensagem que sempre me ensinaram: que devo sentir-me orgulhosa de ser negra…! 

Nas telas da televisão, nos programas da diáspora, essa afirmação pulsava como um mantra, no entanto, confesso que a melancolia me invade ao perceber que, neste mundo repleto de dinâmicas cruéis, a cor da minha pele, em vez de ser um símbolo de força, muitas vezes intensifica a luta por reconhecimento e dignidade. Sinto-me perdida entre a controversa beleza da minha identidade e a dura realidade que, ainda assim, persiste em deixar cicatrizes profundas na minha alma.

Sinceramente, foi ao sair da minha zona de conforto que percebi que o dilema da negritude não é apenas uma narrativa passada, mas um problema palpável, uma sombra que se arrasta, mesmo nas mais comuns das situações. Enquanto atravessava o oceano, numa viagem pelo mundo fora, deparei-me com uma realidade que doí para além do que imaginava: num autocarro lotado, eu era a única negra. O autocarro, apinhado de gente, tinha poucos assentos, talvez pela escolha prática de acomodar mais almas em pé do que assegurar conforto. As viagens eram curtas, o destino não estava longe, mas a carga emocional que levava parecia interminável.

Ali estava eu, sentada e com um lugar vazio ao meu lado, as acelerações bruscas do veículo fazendo as pessoas balançarem de um lado para o outro de forma incómoda. O que mais me marcou foi que, apesar do espaço escasso, ninguém parecia disposto a ocupar aquele lugar ao meu lado. O entendimento do porquê, tardou a chegar como um peso no meu peito: era a cor da minha pele que estava a intimidar aqueles que ali se encontravam. Nesse instante, uma onda de desconforto invadiu-me, fazendo-me sentir suja, como se a minha existência fosse um fardo.

Encolhi-me, desejando ardentemente ser invisível, evaporar na atmosfera da indiferença. O desejo de voltar para casa explodiu dentro de mim, uma saudade profunda da minha aldeia, onde a cor da pele era apenas uma parte de quem eu era, onde ninguém olharia para mim com olhos de estranheza. Naquele momento, a cidade, com o seu brilho frio e a sua solidão, tornou-se um labirinto opressivo do qual não conseguia escapar. A dor da rejeição, do isolamento, era um eco que permanecia, lembrando-me que, mesmo em um mundo tão vasto e diversificado, a minha luta ainda era apenas a ponta de um iceberg.

E isto ainda era apenas o começo da minha jornada. No meu destino temporário, participei de um sorteio cujo prémio era um telemóvel de grande valor que poderia mudar a minha vida. Quando vi o meu nome na tela, “Catarina Matusse”, o meu coração pulou de alegria, transbordando de esperança. Eu, aquela menina desajeitada do campo, tinha sido agraciada com algo tão precioso! Naquele instante, as memórias da humilhação no autocarro pareciam ter-se dissipado, como se a felicidade pudesse apagar o peso desse momento tão doloroso. Mas, ingenuamente, não sabia que o pior ainda estava por vir…

Ao subir ao palco para receber o meu prémio, um sorriso radiante e genuíno iluminava o meu rosto, mas, de repente, senti um olhar de julgamento que me cortou como uma lâmina afiada. O semblante da sorteadora transformou-se, assumindo uma expressão de desprezo que me fez tremer. Mas eu não me deixei intimidar; era claro que eu havia ganho o prémio, e entre a emoção de ter conquistado aquele objecto desejado e o desprezo daquela senhora, a alegria deveria prevalecer. Contudo, a atmosfera logo se encheu de tensão quando ela começou a levantar obstáculos, a criar dificuldades para me conceder o que era meu por direito, até mesmo tentando manipular a situação de forma criminosa através do meu próprio celular…!

Discutiu-se acaloradamente se eu deveria realmente levar aquele telemóvel para casa, como se a tela que exibia o meu nome não fosse suficiente prova da minha vitória. Para meu espanto, fui desqualificada, sem sequer poder contestar. 

A injustiça da situação era palpável, e até hoje não entendo os verdadeiros motivos que levaram à minha exclusão. O sistema de sorteio era automático, as regras eram claras, e eu, sem dúvida, ganhara aquele prémio. No entanto, a cor da minha pele tornou-se o obstáculo que me impediu de trazer o telemóvel para casa.  

Como posso, então, sentir orgulho de ser negra, quando a realidade me ensina que, mesmo quando a sorte sorri, há sempre aqueles que se aproveitam da sombra do preconceito para apagar o brilho dos meus triunfos? A melancolia e a dúvida permanecem, um peso que carrego todos os dias, lembrando-me que, na luta pela dignidade, a batalha ainda está longe de ser vencida.

Ao longo da jornada de Catarina, somos convidados a refletir sobre a complexidade da identidade e as lutas diárias que muitos enfrentam devido à cor da pele. Sua história não é apenas um relato pessoal, mas um espelho das realidades que persistem em nossa sociedade. 

É imperativo que cada um de nós reconheça que a luta pela dignidade e pelo respeito é uma responsabilidade colectiva. Devemos unir nos em solidariedade, questionar nossos próprios preconceitos e promover um ambiente onde todas as vozes sejam ouvidas e valorizadas independentemente da cor e raça. 

Que possamos agir com empatia, apoiar iniciativas que promovam a igualdade e celebrar a diversidade que enriquece o nosso mundo. A transformação começa com a conscientização e a disposição de cada um para fazer a diferença. Ao nos unirmos, podemos iluminar os caminhos de quem ainda luta para encontrar seu lugar no mundo, assim como Catarina. Lembremo-nos: todos somos responsáveis pela promoção da mudança…

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