O País – A verdade como notícia

“Não se pode combater a riqueza absoluta isolando os pobres”

Naquela manhã, Geremias Mendoso chegou ao estúdio da Stv meio tímido. Mal nos conhecíamos, mas tínhamos a mínima ideia um do outro. A primeira vez que li os seus textos foi na quarta edição do Prémio Literário Fernando Leite Couto, no qual tive o privilégio de ser um dos membros do júri. Apaixonei-me pela sua escrita trágica e hilariante, simples e densa, sensível e acutilante. Também por isso, foi difícil encontrar apenas um vencedor do concurso. Para se desembaraçar da situação, o júri escolheu dois vencedores: Maya Ângela Macuácua e Geremias Mendoso, um jovem simpático, mas sereno, com alma de escritor, mas humilde. Quando chegou ao estúdio, naquele nosso último encontro, mal acreditava que tinha vencido mais um prémio literário. Pelo contrário, caminhava como se pedisse autorização para pisar o chão. Parece que foi ontem, mas, de repente, eis que uma mensagem do seu editor, Celso Muianga, chega a informar-me: “Cumpre-me o doloroso dever de anunciar a morte do escritor Geremias Mendoso, vítima de acidente de viação”. Nunca mais nos encontraremos com Geremias Mendoso, nunca mais falaremos de literatura e destas coisas que escolhemos fazer com ele. A mim cabe lembrá-lo com a seguinte entrevista, feita nos estúdios do programa Artes e Letras, a propósito do livro laureado no Prémio Literário Fernando Leite Couto, em 2022.

 

Como é que se explica que os seus primeiros dois livros tenham logo conquistado prémios literários?
Foi uma surpresa, para mim, não esperava… Eu escrevi esses dois livros da mesma maneira. Ambos têm umas sequências entre o trágico e o hilariante. A ideia de escrever Quando os mochos piam está ligada a outro livro, O gato que chora como pessoa. Em África, esses dois animais, o mocho e o gato, anunciam tragédias. Por exemplo, a morte de um parente ou de alguém que conhecemos. Neste livro, Quando os mochos piam, uso o mocho como narrador dessas histórias.

Escrveu Quando os mochos piam para concorrer ao Prémio Fernando Leite Couto?
Não, não fiz isso. Não costumo escrever para concorrer a um prémio. É o que sempre digo. Os prémios são acidentes de percurso.

Mas no seu caso não parece um acidente de percurso, mas uma regra, já que venceu dois prémios com os seus dois primeiros livros…
Eu escrevi Quando os mochos piam em 2020, depois de ter publicado O gato que chora como pessoa, o que aconteceu em pouco tempo. Depois guardei, como tenho feito. Este livro, praticamente, estava em baixo da almofada.

Porquê?
As possibilidades de publicação, muitas vezes, são difícies e, em Nampula, até onde sei, não há uma editora a funcionar. Então, escrevi esse livro e guardei, mas sempre que pudesse, fazia a revisão ortográfica e gramatical, eliminando as inconsistências e algumas coisas que eu achava pertinente. Só depois é que soube, pela internet, que havia o concurso literário. Aí a primeira coisa que fiz foi revisitar o livro, e vi que reunia os requesitos exigidos pelo concurso. E submeti o livro.

Como é que o livro acontece?
Quando os mochos piam acontece de uma forma triste e alegre ao mesmo tempo. Escrevi este livro na margem da mágoa.

Como se estivesse a rir das nossas próprias desgraças?
Exactamente! Temos a parte da diversão e da tristeza. Mas o que eu pretendo é dar a conhecer aos moçambicanos e ao mundo a nossa tradição e aquilo que as pessoas não sabem sobre Moçambique. Gostaria que este livro viajasse pelo mundo e fosse lido por aqueles que não sabem que Moçambique existe.

Tal como no seu primeiro livro, neste Quando os mochos piam também temos um conto com um gato na origem da personificação…
Dá-me muito prazer fazer isso e acho que é uma forma de dizer que os animais estão muito presentes na minha criação.

E Quando os mochos piam é uma forma de mergulhar na alma humana, de modo a retirar de lá algumas virtudes e algumas imperfeições. Como é trabalhar o espírito humano nesse sentido e o que isso exige de si?
Eu quis fazer com que, nos que lêem, a maldade deixasse de fazer sentido. Essa minha pretensão se evidencia, sobretudo, no conto “O vizinho”, que retrata um homem pobre e que, de repente, enriquece. A certa altura, há uma personagem que diz: “Não se pode combater a riqueza absoluta isolando os pobres”.

Isso faz-me lembrar o texto “Sapatos do outro homem”, sobre desconfianças entre casais e coisas assim. Temos um homem que encontra sapatos masculinos no quarto e conclui que a mulher o traiu. Não se conforma com isso, mas nada pergunta à mulher. Mais tarde, a personagem experimenta grandes reviravoltas por causa da sua desconfiança. O que quis fazer desse conto?
Quis retratar essa mania que temos de não gostarmos de perguntar certas coisas. A dúvida é importante e, como dizia um certo filósofo, a dúvida é o princípio da sabedoria. Então, sempre que tivermos uma dúvida, é importante perguntarmos àqueles que estão perto de nós. É muito importante saber.

Este livro também tem uma componente comunitária. Conseguimos sentir as pessoas, os casais, os vizinhos e etc. Isto exige muita capacidade na activação dos seus sentidos?
Exacto. Eu escrevo histórias e gosto de tratar dos factos dessas histórias com sensibilidade. É isso que me caracteriza. Sobre os vizinhos, acabo por me aperceber de alguns acontecimentos que marcam a minha vida e que os registo em forma de histórias. As histórias já existem, o que importa é o que vem depois disso. Afinal a ficção é feita com base na realidade e a realidade também pode existir com base na ficção.

No dia em que foi anunciado como um dos vencedores do Prémio Fernando Leite Couto, esteve na fundação que organiza o concurso. O que lhe ocorreu minutos antes e depois que o presidente do júri, Francisco Noa, pronunciou o seu nome?
Foi uma surpresa, porque eu não esperava. Às vezes, fazemos as coisas e não esperamos pelo resultado. Quando a organização me ligou para comparacer na cerimónia, na altura, disse-me que eu era um dos finalistas. Então, julguei que iria participar na cerimónia nessa condição de finalista.

E ter sido pago uma passagem de Nampula para Maputo não lhe sugeriu nada?
Nada. Foi mesmo uma surpresa e gostei ainda do facto de sermos dois vencedores. A Maya [Ângela Macuácua] me salvou dessa turbulência e gosto do romance dela. Ela escrve muito bem!

O livro foi mais escrito a chorar ou a sorrir?
Escrevi a sorrir e a chorar ao mesmo tempo. Nada pesou amais. O que faço é, sempre que escrevo um livro, depois encontro um momento para rever. E quando falo de revisão, não é algo apenas linguístico, pois não devemos fazer com o texto aquilo que não é bom. Então, temos que retirar ou incluir alguma coisa.

O que espera de Quando os mochos piam?
Espero que, como todos os livros, que seja lido e viaje para todo o país e as pessoas conheçam a cultura através do livro.

A cultura pode continuar a ser essa ponte que nos leva a algum horizonte?
Pois, porque o autor pode não estar em algum lugar, mas o livro lá chegar.

Neste livro temos Nampula muito presente. Como é que a sua cidade tem contribuído para a sua escrita?
É uma agrande referência porque foi de lá que comcei tudo. Em Nampula há muita coisa que não é conhecida. A Ilha de Moçambique é mais conhecida do que Nampula. A cidade, na verdade, passa a ser conhecida, um bocado, porque as pessoas têm de passar de lá quando vão a Ilha. Nampula me construiu, como pessoa, e deu-me uma visão diferente de Moçambique e de África. Sempre será um lugar de referência e é por isso que a cidade está na minha escrita, mas com uma preocupação universal.

Quer construir-se como contista?
O conto não é o primeiro género literário que explorei, mas a poesia. Eu tenho um livro de poesia que ainda não foi lançado. Comecei a escrever poesia e, depois, migrei para outros géneros, incluindo romance e crónica. Então, não quero fazer apenas uma coisa. É preciso fazer muitas coisas para não fazer nada.

É esse o seu lugar, a literatura na sua pluralidade?
Exactamente! A literatura na sua pluralidade.

Sugestões artísticas para os leitores do jornal O País?
Sugiro Terra sonâmbula, de Mia Couto, Orgia dos loucos, de Ungulani ba ka Khosa, Novos contos da montanha, de Miguel Torga, O meu pé de laranja Lima, de José Mauro de Vasconcelos.

 

Perfil
Geremias José Mendoso nasceu no dia 22 de Agosto de 1996, na Cidade de Nampula. É enfermeiro licenciado pela Faculdade de Ciências de Saúde da Universidade Lúrio. Tem também uma formação em Primeiros Socorros e em Epidemiologia de parasitas oportunistas. Publicou O gato que chora como pessoa e Quando os mochos piam.

 

 

 

 

Partilhe

RELACIONADAS

+ LIDAS

Siga nos