Há dias que acordamos com a alma acabada de voltar do lado de lá e não nos sobra nada senão uma lembrança e olhos na almofada. Tenho o corpo todo molhado, a dissolver-se, a cobrar-me amores.
Há dias que queremos que nos massageiem o coração, a memória, a alma, qualquer coisa, desde que toquem lá com jeitinho e seja tudo eterno. Tenho a alma a sair pelos olhos. Há dias que apenas desejamos que seja tudo profundo, real e eterno, só para nos confundirmos com o mundo que queima dentro de nós. Tenho isto sempre comigo. Em todos os dias há saudades…
Com esse palavreado desassossegado deves estar a pensar que enlouqueci de vez, nem? Dá-me só um tempo para me recompor e hoje prometo tentar-te contar tudo o que me tortura sem aquelas palhaçadas de sempre. Não te entusiasmes assim, então! Eu disse que prometia tentar, não asseguro que o faça.
O perdão que dou ao outro é um subterfúgio para viver em paz. Mas há coisas que por mais que tentemos nos custam perdoar. Muitas vezes esse beneplácito só nos aparece já com a alma a se juntar ao universo e o corpo quase na tumba. Há feridas que sempre estarão ali, latentes, comendo-nos por dentro. A minha relação com o tempo é complexa. Constantemente cobro-lhe o que passou. Nunca vivi tanto a infância e o meu país que agora. Estes beijos voluptuosos ensinam-me a me contentar com o pouco que a memória fumega.
O sábado apresenta-se de céu límpido em Lisboa.
Já vamos em Agosto e o Verão ainda não conseguiu germinar como deve ser. Hoje é a excepção, a cidade se deixou tomar pelo calor. O almoço foi bem forte, ainda sinto o sabor da feijoada na minha boca! Uso como pretexto o facto de ter tido uma semana cansativa e deixo encarnar em mim uma das características daquele animal de sete vidas. A preguiça me toca com propriedade e eu não me faço de gostoso, deixo-me levar. Despreocupadamente me deito e deixo que aconteça o que é suposto acontecer.
? Uyo pfumela, uyo pfumela, uyo pfumelaaa – António Marcos, o nosso maengane, embala-me e sonho-me em criança a correr atrás de uma bicicleta.
A minha infância persegue-me repetidamente ou eu a ela. Ela aconteceu num período de uma genuinidade sem igual. Vivíamos com pouco, mas éramos felizes. Brincávamos na rua até que se fizesse tarde. Ainda houve quem apanhou uma boa sova por apenas ter estado a brincar. Desculpem-me, brincar até tarde. Doía no momento, dia seguinte a história repetia-se. Lugar de criança não era no Youtube ou Facebook a fazer palermices para que tivesse seguidores. Os seguidores eram os próprios amigos. E se tivesses uma bola de futebol, ui se tivesses uma bicicleta! Enchiam-te a casa e nunca te sentias só. Quando o que tivesses se estragava te tornavas também seguidor de alguém. Hoje sou eu, amanhã és tu. Brincávamos todos juntos, até nos sujarmos. A amizade começava por interesse, mas com o tempo tornava-se sincera.
Tive a minha primeira bicicleta com catorze anos, porque me foi dada na escola quando era activista. Devia usá-la como meio de transporte quando ia fazer palestras noutras escolas. Até aquela idade nem eu, nem meus irmãos sabíamos o que era ter uma bicicleta. Era algo caro e que os nossos pais não nos podiam dar. Quando vivi na casa da minha avó aprendi a andar de bicicleta. Meu tio Alfredo, irmão da minha mãe, arranjava bicicletas. Como os mecânicos das oficinas de Maputo que gingam por aí com carros de dono alegando estarem a verificar se os defeitos foram eliminados, eu e meus primos fazíamos o mesmo com as bicicletas. Geralmente o mais esperto ia sentado na bicicleta a pedalá-la e os outros corriam atrás. Confesso que muitas vezes fiz parte do grupo dos que corriam atrás da bicicleta, era matreco. Durante aqueles percursos, que muitas vezes eram longos, todos dizíamos esperançosos a mesma frase:
? Na curva é para você me emprestar.
Quero-te perdoar, tempo. Mas como o fazer se há dias li por aí essa frase e fui tomado por uma nostalgia que constantemente me tortura em pensamentos e sonhos?