Lurdes Mutola. Infelizmente, parece que ela passou como um “meteoro”, que brilhou nos céus, foi por todos visto e idolatrado, mas depois desapareceu da visão de quem tanto a adorou. Ela que cabe, seguramente, na galeria restrita dos maiores fenómenos mundiais do atletismo.
Em mais de duas horas diante de uma plateia atenta, a nossa Menina de Ouro explanou que lhe vai à alma. Não escondeu o desencanto, dando a clara ideia de se sentir amordaçada por não conseguir, efectivamente, ‘passar o rico testemunho” de uma carreira ímpar em Moçambique e nos PALOP. A propósito, cito Mia Couto:
O que impressionou em Mutola, é que correu com atletas de países desenvolvidos, mas em nenhum momento pediu para partir à frente, por ser proveniente de um país subdesenvolvido. Lutou e venceu o coitadismo!
Do sonho lindo à realidade dura
A palestra foi bem enquadrada e com um elemento importante: a paixão de quem viveu, sofreu e sacrificou-se. Não houve ouro servido numa bandeja de ouro:
Tinha eu 12 anos, quando fui aprender a nadar, no Desportivo de Maputo. Mas porque ficava longe de Chamanculo e era difícil a deslocação, acabei desistindo. Comecei a jogar futebol, pois sempre tive paixão por este desporto. Só que na altura não havia futebol feminino pelo que jogava com os rapazes. Um dia o mister Dias, que dava treinos aos iniciados do Águia do Ouro, convidou-me a ser federada. Eu disse: como vou jogar com rapazes? Ele disse venha, vamos ver o que a gente faz. Joguei durante um ano. Depois tive problemas porque quando marquei o golo de empate contra o Ferroviário de Maputo. Eles não gostaram e protestaram. A minha equipa foi desqualificada e eu desmotivada.
Em acção o “olho de lince” de José Craveirinha…
Foi a altura em que o poeta Craveirinha viu a história na primeira edição do Jornal Desafio, foi ao Chamanculo, falou com os meus pais e convenceu-os a que eu mudasse para o atletismo. Na altura não sabia do que se tratava. Mostrou-me vídeos de Jogos Olímpicos. Comecei a entender. Fui treinar mas não durei muito tempo. Recordo-me que nas primeiras duas semanas, no Parque dos Continuadores onde ele me apresentou o filho, Stélio, treinei e nunca senti tantas dores na vida. Desisti. Mas Craveirinha, que para mim foi um herói, voltou à minha procura e convenceu-me de novo. Recordo-me das palavras: “miúda, agarra-te a isto que vais longe”. Na altura, não entendia bem.
Chamanculo no coração
A emoção invade os olhos húmidos de Mutola, que “regressa” ao bairro que a viu nascer e que guarda no coração:
Vou-vos levar, passo a passo, de onde venho. Saí de um bairro considerado pobre, mas rico em muitas coisas. Ele está no meu coração, simboliza aquilo que sou, porque Chamanculo representa Moçambique, por isso levei-o ao mundo e ao pódio. Então, para mim Chamanculo é importante. Tudo começou em 1988, tive a viagem para o Botswana, nos Jogos da zona VI. Graças a Deus consegui a medalha de ouro, nos 800 metros. Quando voltei, já tinha outras ideias. Disse: daqui tenho que chegar às Olimpíadas. Mas como, se não tenho mínimos?
Stélio, o primeiro treinador, entra em acção:
Comecei a treinar a sério e recordo-me que Stélio puxou por mim. Treinava duas vezes, fazia treinos secretos, no Parque dos Continuadores e no bairro, com as minhas amigas. Corríamos até à Toyota, virávamos do Fajardo e voltávamos para o Chamanculo. Tudo isso levou-me aonde não esperava chegar. Acabei conseguindo um lugar para Seul. Ainda hoje guardo o “crachá”.
Medalhas: é triste que só o ouro brilhe
Um novo capítulo, relacionado com algo que ”povoou” a vida de Mutola: as medalhas:
É triste que no desporto da competição, as pessoas só se recordem das medalhas de ouro e raramente do segundo lugar ou do terceiro. As medalhas de prata e de bronze ficam apagadas, mesmo aqui no país. Consegui bronze nos Jogos de Atlanta, embora estando doente. Fui à primeira eliminatória, à segunda e à final, depois fiquei gripada, mas consegui a medalha de bronze. O país esqueceu-se. A minha treinadora já havia-me dito: Lurdes podes vencer dez mundiais, mas se não ganhas uma medalha de ouro, nos Jogos Olímpicos, vais ficar apagada.
A dura luta pelo ouro olímpico, finalmente alcançado em Sydney…
Em 2000, tive que fazer as malas e viver na Austrália, seis meses antes dos jogos. Fui para a Europa competir, mas voltei porque a minha treinadora dizia: Se falhas estes jogos, é como se nunca tivesses ganho nada. Tive que me dedicar a sério nos treinos e na vida particular, sacrificando certas coisas. Por exemplo: não dormir tarde, alimentar-me como deve ser, massagem duas vezes por semana. Às vezes treinava três vezes por dia. Numa semana, só descansava ao domingo. Na segunda-feira, fazia de manhã 40 minutos de longa distância. À tardinha ginásio, porque sem ginásio o atleta não tem força. Ao fim da tarde, entrava na pista. Não foi fácil, mas como queria chegar onde muita gente achava impossível consegui.
Parque dos continuadores: projecto falhado
Costuma-se dizer que o tempo não volta atrás. Eu tinha um projecto, no Parque dos Continuadores. A Nike havia disponibilizado 660 mil dólares, para o reabilitar, faria lá uma piscina dos 50 metros, um edifício para a Federação de Atletismo, um ginásio. Mas, isso não foi possível. Não quero apontar o dedo a ninguém, porque na verdade não sei o que aconteceu. Só sei que eu tinha o dinheiro disponível, mas não era meu. Fez-se a apresentação do projecto, surgiram obstáculos e acabei dizendo à Nike que tudo ficou nulo. Sempre me perguntavam sobre o processo, mas porque seria triste levar dinheiro de dono e não aplicar, desanimada, fiquei alguns anos fora do país, a treinar a Caster Semenya, na África do Sul. Tive a coragem de voltar para apoiar o atletismo, peguei no dinheiro que ganhei para investir na modalidade. Conversei com alguns dirigentes, comprei uma casa na África do Sul, que era para servir de centro de alto rendimento. Foram alguns atletas. Só que não é fácil, porque a modalidade individual também é colectiva. Às vezes esquecemos isso. Posso ser uma atleta de uma modalidade individual, mas se não tem equipa, não funciona.
Venceu o coitadismo
Lurdes Mutola igual a si própria, também fora das pistas. Uma profusão de triunfos. Campeã Mundial na Alemanha; Ouro nos Africanos do Cairo; Mundial de Pista Coberta em Toronto e Lisboa, Prémio de 1 milhão de dólares como atleta mais pontuada!
Lurdes sofreu imensas pressões para mudar de nacionalidade. As vantagens, não só monetárias, seriam muitas. Os americanos tiveram dificuldade em “engolir o sapo”, as cascas de banana eram imensas, por ser uma atleta vinda do 3.º Mundo.
O Estado de Oregan, onde residiu, capitalizou do seu espírito ganhador, da sua capacidade de sacrifício e exemplo de vencedora, sem recorrer a substâncias proibidas. A África do Sul, onde a nossa campeã passou a residir, idem. Só nós, pouco nos temos beneficiado da sua experiência.