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Mia Couto encerra trilogia com “O bebedor de horizontes”

“ – Pergunta a esse branco se quer que chame o rio”. Assim começa a nova obra de Mia Couto, O bebedor de horizontes, a terceira da trilogia As areias do imperador.

A ser lançada esta quarta-feira, às 18h00, na Fundação Fernando Leite Couto, em Maputo, a nova obra do Prémio Camões 2013 conta a estória da nossa própria história, tendo Ngungunyane nos holofotes da narradora. Esta é a forma encontrada por Mia Couto para pôr em causa a ideia de que apenas existe uma versão da história. Convicto de que o passado de Moçambique é plural, desconhecido, o escritor escreveu como quem pretende preencher um vazio, afinal nós não conhecemos quem fomos há 100 anos e mesmo há 20. Então, há no livro uma tentativa de sugerir que, para percebermos quem somos hoje, há que conhecer o passado de maneira mais rica, tranquila, até para não pedir contas a esse próprio passado e fazer-se a reivindicação de que uns são melhores que outros ou que merecem mais que os outros.

Em O bebedor de horizontes, Ngungunyane já se encontra no exílio, mas a maior parte da narrativa é a viagem do imperador pelos oceanos (Índico e Atlântico), sem descartar a violência que o personagem sofreu em nome de um império, feita para dissuadir as exigências que os moçambicanos de um período poderiam ter para escrever a sua própria história. “É uma drama, uma espécie de uma tragédia pessoal de um homem que, de repente, está a sofrer uma deportação num exílio, numa terrível solidão – por isso ele é um bebedor de horizontes, porque o limite da sua paisagem é um horizonte, sempre igual, do mar”, revelou Mia.

Com efeito, O bebedor de horizontes não é apenas uma estória de um imperador decadente, no limite da sua força, igualmente, é uma estória de amor, com algumas obsessões que Mia assume pertencerem-lhe, como a condição da mulher, questões ligadas à identidade, “porque me interessa discutir que identidades temos cada um de nós como pessoas e como colectividade. Essa identidade é sempre uma miragem. Na verdade, são múltiplas”.

Então, quanto custou escrever o livro? Mia Couto foi categórico: “um livro sempre custa a vida inteira. Para fazermos um livro, temos que ter acumulação de alegrias, sofrimentos e esperanças”. Ainda assim, o escritor confessa que o livro, dos três, foi o mais difícil, porque já possuía o percurso que tinha que seguir, o que implicou algum respeito com a história oficial, mas isso não impediu possibilidades de fuga. “Tive de conversar com gente mais velha, guardiã da tradição oral, e tive que ter a possibilidade de fazer essa viagem”.

Ao desbravar Ngungunyane, Mia sublinhou que o passado, na sua percepção, é uma construção, não é uma coisa sagrada que pode ser erguida e dizer-se que esta é a única verdade. Há várias versões do nosso passado, que variam de acordo com quem conta e com os momentos que nós próprios contamos. “O mais grave que pode acontecer é um manipulador aparecer e dizer que o nosso passado é este, acabou e é uma coisa definitiva”.

O terceiro volume de As areias do imperador sai sob a chancela da Fundação Fernando Leite Couto, depois de os outros dois livros, Mulheres de cinza e A espada e a azagaia, terem sido lançados em 2015 e 2016, respectivamente.

O bebedor de horizontes será apresentado por Lourenço do Rosário e Severino Ngoenha.

Quando o sonho é uma maneira de viver a eternidade

Cada livro é um livro. Uns são mais fáceis de escrever e, outros, nem por isso. No caso de O bebedor de horizontes, Mia Couto explica que dos três livros da trilogia As areias do imperador este terceiro foi bem mais difícil. “Tive dificuldade de escapar deste quotidiano muito exigente no país, porque qualquer dia acordamos e deparamo-nos com alguma coisa que nos arrebata no sentido de roubar a nossa alma. Então, em cada livro encontrei uma ilha, no sentido literal. Fui para os Açores um mês e meio, o mesmo período fiquei num escatelo de Itália, e ainda estive dentro do meu próprio exílio aqui em Moçambique, num lugar que eu quase me escondi para poder me ocupar desta estória. Uma estória tem que nos ocupar e evadir, nós temos que nos deixar arrastar por ela”, afirmou Mia Couto.

Ainda véspera do lançamento do novo livro, o escritor referiu-se à ligação umbilical que tem com o seu país e com os sonhos que daí advém, “porque o dia que não puder sonhar com o meu país ou morro ou algo não ficará muito bem. A ideia da literatura também é essa, mostrar que a realidade foi feita para nós não a respeitarmos tanto assim”. E o escritor continuou a trilhar esse percurso do intangível: “Este país teve uma utopia muito forte e muito recente, há 40 anos, e essa utopia uniu aos moçambicanos num certo momento. É preciso lembrar que isso é muito raro na história. Mas essa utopia depois ficou fragilizada, com a guerra e tantas outras coisas que nos aconteceram. Devemos revalorizar esta ideia utópica.

A grande aposta deste Congresso da Frelimo e do discurso do Presidente Nyusi é tentar revitalizar uma ideia de que é possível um outro Moçambique, do tempo de Samora. Temos de reavivar isto que foi um sentimento que já houve, um país que é possível, sobretudo no sentido ético. Devemos fazer as coisas de uma maneira que nos orgulhemos e não olhamo-nos como malandros. Vale a pena investir, basta que haja um homem que mostre que tem mãos limpas e dê o exemplo, governando para o bem dos outros. Isso contamina”.

 

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