Reflectir é resistir
A propósito do Dia Mundial do Teatro, que este ano se celebra a meio à grande crise sanitária global, considerada por muitos, a maior peste dos tempos modernos, a pandemia do novo coronavírus ou covid-19, a humanidade é chamada a uma reflexão transdisciplinar sobre como encontrar soluções alternativas, que passam por uma nova maneira de pensar e agir, para lidar com esta crise e evitar que tal se prolongue por mais tempo e ou se repita no futuro. E sendo o teatro, um importante veículo de emporwerment: consciencialização, mobilização e transformação social, cabe-lhe um dos papéis primordiais nessa reflexão global.
O papel do teatro passa, acima de tudo, por promover o emporwerment, ou seja, devolver às pessoas o poder de resinificar as suas vidas e a sua relação com a sociedade e o meio que as envolve. O teatro é pela ecologia, consciente de que a existência humana está dependente do meio e das circunstâncias que a envolvem: a natureza, a sociedade e obviamente a subjectividade de cada indivíduo. É nesta perspectiva ecológica de pensar e agir, que acredito estar a ênfase do debate necessário e urgente que nos permitirá resistir e superar esta fratura humana e social, na qual nos encontramos.
Pela forma de contágio do coronavírus é impraticável o teatro na forma em que o conhecemos: encontro entre pessoas que partilham o mesmo espaço e trocam afectos,o que, muitas vezes, implica contacto físico. Teatro online ou via televisão é treta, já dizia o meu amigo, o encenador português Fernando Mora Ramos e eu concordoplenamente. Portanto o desafio passa por redescobrir alternativas estéticas, que respondam a esta crise sem subverter a essência do teatro, o encontro presencial entre as pessoas. Outras possibilidades de levar o teatro aos diversos públicos sem que esse acto coloque a vida das pessoas em risco.
É essa questão com a qual artistas do teatro de todo o mundo têm se debatido actualmente, e é esse exercício de busca e criação de possibilidades que transcendam as limitações impostas pelas circunstâncias em que nos encontramos, o propósito desta mensagem, neste dia tão especial para a humanidade.
Há que reinventar formas alternativas de fazer com que o teatro não fique em confinamento estético, mas que permaneça no estado de impermanência, adaptando-se sempre às necessidades e aspirações dos seres humanos.
Entretanto há que pensar o teatro para além da cena. Oorganismo que fala, canta, dança e enche o palco de poesia e vitalidade, o que Patrice Pavis, académico francês e renomado homem do teatro, chama de “virtuosos atletas afectivos”, é extensão do corpo quepensa, idealiza, planifica e sonha. O que quer dizer que este momento de confinamento, esta paralisação social, deve ser preenchido com o exercício da reflexão.
Por isso, esta mensagem, que endereço especialmente aos praticantes, amantes de teatro e toda população moçambicana, é um convite para que se faça deste momento de quarentena, uma oportunidade de refletir sobre a prática teatral no país. Visto que continuamos a mercê da efemeridade da cena. O teatro é aqui e agora, mas também não podemos nos esquecer do “depois”. É sobre a posteridade, sobre o legado histórico, construído através do registo, sistematização e analise crítica e analítica o que mais precisávamos neste momento.
Em quase meio século de independência e prática teatral assinalável no país, faltam-nos referências e testemunhos de gerações de actores, encenadores e dramaturgosnacionais, que tão bem souberam fazer da nossa rica diversidade cultural um ingrediente particular que em muito tem contribuído para a evolução do teatro, a nívelmundial, no sentido de servir de uma fonte de frescor estético imprescindível.
O espectacular trabalho do Mutumbela Gogo, a mais antiga e importante companhia de teatro em Moçambique, aplaudido e admirado pelo mundo há mais de três décadas é um exemplo da riqueza do nosso teatro. Podia citar outros exemplos de companhias e artistas independentes, principalmente os da nova geração, cujo trabalho tem revolucionado o paradigma estético e temático do teatro moçambicano e cada vez a ganhar espaço na arena internacional. Não nos esqueçamos que no final do ano passado “Incêndios”, (texto de WajdiMouwad e encenação de Victor de Oliveira) que juntava três gerações de actores moçambicanos esteve na lista dos dez melhores espectáculos de teatro apresentadosem Portugal. Estes e outros factos sublinham a necessidade de um rastreio e registo das práticas dos artistas de teatro no país, de modo a fazer ecoar a nossa voz no mundo.
A prática teatral está intrinsecamente vinculada ao social, à política, à religião, à cultura, entre outros factores, e serve de ponto de convergência entre as diversas formas artísticas. Portanto pensar o teatro significa, em últimaanálise, pensar a arte, a história, a cultura, o país e o mundo. E porque o teatro é a versão mais genuína ou se quisermos, a mais “perfeita” versão da democracia, odebate que encerra nas suas temáticas, metodologias de criação, assim como de interação com o público, o âmbito comunitário, inclusivo, dialógico e dialético.
Fazer uma reflexão sobre as práticas teatrais desenvolvidas pelos grupos, companhias, actores e os diversos agentes culturais, ao longo da nossa história enquanto nação, é uma forma de potencializar e valorizar as artes, a cultura, os artistas e em última instância opovo moçambicano. É ter a possibilidade de sermos, finalmente, nós próprios a contar a nossa história. E haverá uma forma mais genuína de reafirmar e exaltar a nossa identidade?
À academia, me refiro em especial ao Curso superior de Teatro da Escola de Comunicação e Artes – Universidade Eduardo Mondlane e outras instituições de ensinosuperior da área, cabe-lhe o papel principal na resposta deste desafio de rastrear e registar as práticas teatrais realizadas nos diferentes contextos sociais e culturais dopaís. No entanto os artistas, jornalistas e, acima de tudo, organizações como a AMOTE (Associação Moçambicana de Teatro) não estão isentos deste desafio nacional, cujo sucesso está dependente do envolvimento e cooperação de todos.
Esta mensagem é também de encorajamento a todos os artistas, e não só, que por conta desta crise sanitária global perderam a sua fonte de rendimento/sustento, numcontexto em que escasseiam políticas culturais e sociais que os protejam e os tratem condignamente. Há que resistir e fazer deste momento de crise uma trincheira, uma armadura e continuar a luta por um mundo mais humano e justo para todos.
É dia mundial do teatro, é dia de celebrar a humanidade, portanto vamos todos pintar de luz esta tela sombria em que a vida se tornou, nos últimos tempos. Há que semear esperança e a crença de que com a colaboração de todos iremos sobreviver a esta catástrofe sanitária.
Aos fazedores do teatro vai a minha vênia por fazerem da existência humana, um acto poético, e uma mensagem de amor, solidariedade e inclusão.