Conheci Mélio Tinga por volta de 2010, quando estudava na Escola Secundária Kisse Mavota, arredores da cidade de Maputo, onde com um grupo de colegas criou uma associação de escritores e poetas. Anos antes, aquela escola fora conhecida pelo fenómeno dos desmaios. Estes que, curiosamente, ocorriam somente com as meninas, dividindo opiniões quanto às suas causas.
A versão popular _ fazendo jus ao nome da escola _ dizia que os desmaios resultavam do “beijo” dos espíritos. Aquilo era maquinação das almas dos zimpetos, os primeiros ocupantes do lugar, ofendidos com a implantação da escola no seu antigo khokholo (fortaleza) sem prévio pedido de licença. Não se sabe ao certo como se ultrapassou o imbróglio, que acordo se fez com os espíritos insurrectos. A verdade é que estes recolherem às sombras, e aquilo parou com a vida na escola voltando ao normal.
Tempos depois, Mélio me ligou. Convidava-me para padrinho da sua associação de escritores e poetas. Abracei a causa com todo o gosto. O entusiasmo daqueles jovens era do tamanho do Monte Binga, mas Mélio terá sido dos poucos, senão o único, a sobreviver àquela euforia. E em algum momento o seu caminho mostrou-se maduro. E como recomendam alguns dos personagens das suas obras, inspirando-se nas crenças que vem dos mais velhos, ele seguiu sem “olhar para trás”.
Pelo dito atrás, para quem partilhou o espaço com os duendes na Kisse Mavota, não admira que o fantástico seja o lado mais saliente da sua escrita, a qual inclui títulos como O voo dos fantasmas (2018), A engenharia da morte (2020), Marizza (2021), Objecto oblíquo (2022), Atravessar a pele (2022), Como sombras e cavalos a levitar (2023) e Névoa na sala (2024).
Mesmo reconhecendo que boa parte destas obras, duma ou doutra forma, já mereceu a atenção da crítica, em razão da cumplicidade com o autor antes aflorada, nos obrigamos a deixar registadas para o público leitor as nossas impressões.
O voo dos fantasmas, seu primeiro livro, inicia em Nélida e prossegue com os contos A casa dos fantasmas, Os gatos de Mhum, O pobre e os seus amores, O fantasma Baskeville, Fora dos trilhos, Chuva, A morte de Kheisho, Milagre e O hambúrguer que matou Jorge. A sua leitura ajuda a aflorar as características mais significantes na escrita de Tinga.
“Nélida era peluda como um cão”. Logo na frase inicial a força da hipérbole, esta que, aliada à prosa fantasiosa, será pedra angular no estilo do autor. As frases são elípticas, breves e dizem as coisas de forma crua. São cunhadas de modo a perdurar na mente do leitor.
Nélida serve de denúncia à criminalidade que grassa nos nossos bairros. A protagonista _ ”contracena” com aquele que parece ser o alter ego do autor _ que dá título ao conto tem um fim trágico: assaltada e violada na casa onde aparentemente vivia sozinha, morre no hospital.
O conto seguinte, A casa dos fantasmas destaca a capacidade de criar e manter uma atmosfera convincente, com o retrato das emoções duma família em luto após a morte do pai do narrador da estória. Este, a mãe e a avó _ à irmãnzinha de cinco anos a inocência parece isentar da dor _ vivem o momento com mágoa e resignação. Esta morte expõe a decadência da casa, “assombrada por maus espíritos”, a decadência que parece estender-se ao resto da comunidade (sociedade) e, quiçá, da nação à volta.
Em Os gatos de Mhum está-se perante uma escrita ágil, geradora duma atmosfera penumbrosa, onde os olhos dos gatos brilham intensamente. O ataque fatal dos animais, supostos serem de estimação, ao dono Mhum e seu parceiro do projecto de filme, não tem explicação. O sócio de Mhum e narrador desta estória ainda teve tempo de ligar à polícia, para que esta, sabe-se lá, fosse prender os homicidas, mas como em tudo que mete gatos, o conto acaba em mistério.
O pobre e os seus amores retoma o tema clássico em que o amor esbarra nas diferenças de classe social. Um rapaz de nome Bismeu, apaixonado por uma rapariga chamada Dimera, arranja uma forma de se aproximar dela: pede trabalho ao seu pai, um deputado, do qual “ninguém sabia como arranjara tanta riqueza, em tão pouco tempo, em terras pobres.” O tema do amor serve como pretexto para dar azo à denúncia do enriquecimento ilícito.
Em O fantasma Baskeville um homem é encontrado morto numa canoa. O morto que todos parecem desconhecer. E a quem as autoridades negam um enterro condigno, permanecerá balançando ao sabor das ondas. Este é o exemplo de como muitas das estórias de MT têm fim aberto.
Em Fora dos trilhos, um jovem repórter vai ao local dum acidente ferroviário. Após registar e publicar a notícia do trágico acontecimento, vem a saber que afinal tinha uma ligação de primeira ordem com uma das vítimas. Como diz ele: “Soubera momentos depois de minha mãe que o maquinista era meu pai.” Ora, isto roça a distopia _ fenómeno em que os factos se opõem ao que era suposto ser (ou não ser) _ uma característica também comum em Mélio Tinga.
No conto Chuva, um homem e uma mulher com dois filhos menores tentam escapar ao dilúvio. No fim só o homem sobrevive à calamidade. O desabafo que segue dá-nos a dimensão do seu trauma: “Tinha vontade de ser terra para comer a puta da chuva”.
Em A morte de Kheisho, a morte torna-se banal e matar, numa ciência com método. O conto lembra-nos um outro, Os Assassinos, do escritor norte-americano Ernest Heminguay. Naquele o alvo escapa por capricho do destino ao não se encontrar no lugar esperado. Kheisho não teve a mesma sorte. De manhã vestiu-se a contento, foi à igreja, falou animadamente com o padre, visitou um casal amigo e foi jantar ao restaurante, onde, à saída, foi baleado. Nada que pudesse ser feito para alterar esse desfecho brutal.
Milagre tem como protagonistas os habitantes duma certa aldeia que aguardam à beira-mar.
Diz o narrador: “Precisavam acreditar em algo. Escolheram deus.” E ali, ansiosos, aguardam pela visita de Deus que, supostamente, virá de barco. Ao fim de tanto tempo, um ser maltrapilho cruza a areia da praia. Aos olhos dos populares, esta criatura faz a vez a Deus. Ou melhor, é Deus. O conto procura ilustrar a ideia de quão o ser humano é incompleto e inseguro no seu âmago, carente de crenças e por isso desejoso de se agarrar a algo, sendo que a divindade não passa de uma utópica invenção dos Homens.
Em O hambúrguer que matou Jorge se retrata a crueldade sem explicação. Jorge vai ao lugar onde sempre come um hambúrguer. Em algum momento vai à casa de banho, onde sofre um ataque, ao que parece, à facada. Não se expõe no conto o momento do ataque, a não ser a referência a indivíduos de aparência duvidosa sentados na mesa atrás de Jorge, ficando a irónica conclusão de que foi o hambúrguer envenenado a matá-lo.
O livro A Engenharia da Morte é também de contos. No prefácio à edição brasileira, Ubiratã Souza fala de “uma recusa à narrativa linear” para se privilegiar “um intenso experimentalismo na fatura dos contos, o que revela a busca por uma prosa pessoal”. E que “em vários contos, o entrecho está desmontado como se fosse um móbile de ações desarticuladas e rearranjadas em ordens imprevisíveis”.
Este experimentalismo, intenso porque ancora-se na profusão do verbo, vem a ser transversal a toda a obra do autor. Na sua estreia no romance com Marizza, a transfiguração discursiva vai mais longe e chega a reflectir-se na imprecisão (deliberada) de como se refere o sujeito ou a coisa adjectivada. Tem-se como exemplo, a seguinte passagem:
“Estava pálido, neve branca e opaca, resistente, incapaz de estilhaçar-se na queda, o vapor frio a subir como um animal para o espaço vazio do cosmo”.
Observa-se também no mesmo romance a sobreposição dos sujeitos sujeito(s) da acção e do(s) agente(s) da narração, obrigando o leitor a passar do simples exercício de leitura a uma rearrumação do sentido, como se vê a seguir:
“A mulher falava e recuava. Eu em tropeços contínuos, a voz em colisões inesperadas, a voz à maneira de um cão velho a latir mais ou menos inconsistente. A mão muito húmida, o celular ao ouvido, a queimar com impaciência, a queimar rumo a uma inesperada explosão”.
A escrita de Marizza é cosmopolita (espaço e personagens podem pertencer a qualquer lugar do planeta), os símbolos evocados são universais. Pouco comum em autores moçambicanos de gerações anteriores é a forma bastante arrojada com que se aborda cenas íntimas, como se vê no exemplo que segue:
“Beijei-a no peito, e a cada instante o coração se movia para uma parte diferente, parecia. Perseguia-o com a língua molhada; do abdómen atravessei para umbigo e depois o cálice. A sensação de remorso perseguia-me incessante. Quando afastei a cabeça, ela segurou–me com força, pela nuca. Acariciou-me o sexo. Falou coisas obscenas ao ouvido.”
Ou, ainda em Marizza, temas sociais sensíveis, como no caso da religião. A partir duma citação de Osho, pode ler-se:
“Os animais não precisam de Deus e são perfeitamente felizes _ não vejo que Deus lhes faça falta. Nem um só animal, nem uma só árvore, sente a falta de Deus. Todos eles gozam a vida na mais completa beleza e simplicidade, sem qualquer medo do inferno nem qualquer avidez pelo Céu.”
O romance Como cavalos e sombras a levitar, assemelha-se na sua elaboração a Marizza. A estratégia narrativa usada em ambos privilegia a construção de personagens irreverentes, envolvidos em actos desconcertantes, com as metáforas usadas no texto buscando causar estranheza e produzir imagens surpreendentes. – Também se nota e o despudor nas falas, talvez para revelar a situação de desespero em que vivem os personagens.
Atravessar a pele tem a particularidade de ser um livro de entrevistas aos escritores (mais velhos) co-organizado com David Bene. Embora comum no meio literário, parece-nos uma ideia com algo de sublime: usando o método da pesquisa académica, Tinga e Bene procuram com este trabalho fazer com que os entrevistados, ao contrário do que aconteceria num bate papo normal, se abram, baixem a guarda e falem de forma “generosa”. Então, aí é possível, aos entrevistadores assim como aos leitores, “beber” das ideias e experiências daqueles. Trata-se dum frutuoso diálogo entre gerações.
Névoa na Sala, o último livro de Tinga, constitui uma proposta ainda mais arrojada. Sua estrutura algo fragmentada, obriga o leitor a ter de juntar os cacos dum conteúdo algo marginal, como também o é o escopo dos personagens. Estes, dois homens e uma mulher, estão num hospital para doentes mentais. Os homens, para cura do stress pós-traumático da guerra da qual participaram. E ela, também do stress, após o cancro que lhe devorou o útero e o filho que estava em gestação.
António Cabrita, na apresentação deste romance, caracterizou-o da seguinte forma: “É um livro às vezes duro, rude, que não se isenta de descrições violentas. E que não oferece soluções, não aponta saídas, modos salvíficos. E neste sentido seria um livro falho, contaminado em si mesmo por uma negatividade peculiar… isto, se a sua escrita não fosse o contrário do que relata, sumarenta, numa torrente lírica que divaga, em contínua centrifugação, e buscando nexos e ligações entre os corpos e a natureza, novas ressoantes formas de diálogo e de intimidade; a escrita faz suceder nesta novela um fluxo que torna visível como a natureza se conduz numa espécie de pulsão incessante, em contínuas metamorfoses, e onde o que se gera é mais poderoso do que aquilo que destrói”.
Ao parecer de Cabrita, pode-se acrescentar que neste romance o absurdo constitui nota dominante, sobretudo, na pungente inocência dos personagens quando falam da morte, do amor e do sexo. Nisso ficando próximos a alguns dos personagens do escritor mexicano Juan Rulfo, no seu livro O Planalto em Chamas, quanto à desarmante inocência perante a gravidade dos actos que cometeram. O leitor os iliba. Pois, os seus excessos são justificados pela atmosfera que o autor soube criar, e com a qual estão em conformidade.
Esta peça termina com Ubiratã Souza; quando diz que “é particularmente significativo observar em Mélio Tinga indícios de que ele está a lutar com palavras, vezes ganhando e vezes perdendo”. Sim. Ou melhor: pode ser que sim. Pois, na busca de caminho fresco, no lugar de lutar simplesmente com as palavras, Tinga, como acontece à semente na terra, lança-as obsessivamente no espaço branco da página, consciente ele próprio de que nem todas darão em rebentos. Isto porque o seu ideal literário parece implicado com o perpétuo garimpo dos signos no afã de trazer ao mesmo armário todos os sinais do mundo.