Há viagens que não se fazem apenas com o corpo, são travessias que deslocam a língua, a memória, o imaginário. Entre Moçambique e África do Sul, o vaivém de homens e mulheres, primeiro, nas minas, depois, nas cidades e periferias, construiu um arquivo sensível de canções, poemas e narrativas que resistem ao esquecimento. “Magaíça” (1950), de Noémia de Sousa, “Mufolhe” (2013), da Banda Kakana, e “Ntxintxile” (2017), de Assa Matusse, são fragmentos desse arquivo.
As três obras em questão estão separadas por décadas, mas unidas pela mesma ferida: o desencanto diante de uma promessa que sempre se revelou menor do que o sacrifício exigido.
No seu poema, Noémia de Sousa abre a narrativa com a figura de mampara: o homem simples, carregado de sonhos, que embarca num comboio rumo a um desconhecido, vestido de promessa. Na sua trouxa, leva “a ânsia enorme” e, no olhar, o pasmo diante da máquina colonial. Mas, quando regressa, o brilho é falso, a mala é pesada de bugigangas inúteis e, no corpo, a juventude ficou para sempre soterrada no fundo da mina. É o retrato de uma inocência devorada, como se o ouro extraído não fosse senão a cor pálida da própria vida a esvair-se.
A mãe dos poetas moçambicanos denuncia, com imagens concretas sugeridas pela palavra, a brutalidade da exploração e a desilusão.
Meio século depois, a música “Mufolhe”, do álbum Serenata, retoma o fio condutor do sujeito magaíça proposto por Noémia de Sousa. Entretanto, no caso, esse sujeito tem voz audível. Já não é apenas um ser observado. Agora confessa, canta a ilusão comprada com rands e carnes, refere-se à mulher talvez perdida, ao filho que só o conhece pela fotografia.
A melodia nostálgica da Banda Kakana, somada ao refrão repetitivo, imprime o peso da saudade e a consciência de que “não há dinheiro que compre o amor”. E, por via disso, dialoga com o mampara do poema de 1950.
Quanto ao tema “Ttxintxile”, de Assa Matusse, parece uma música com o tom mais endurecido em relação às propostas de Noémia de Sousa e da Banda Kakana. No entanto, a melodia é suave, quase embalada, um paradoxo, pois a letra trata de desprezo, de presentes humilhantes, de violência física. É uma doçura que esconde navalhas.
O contraste amplifica o impacto emocional, exigindo atenção sensível do ouvinte. O refrão, traduzindo, que diz “Eu, então, já mudei” não é uma simples constatação, mas encerramento de ciclo.
O mampara ingénuo, de Noémia de Sousa, e o arrependido, da Banda Kakana, convertem-se nessa voz que já não busca reparo, mas sim ruptura.
Lidas em sequência, as três propostas formam um triângulo equilátero. Em “Magaíça”, vemos o sonho antes e depois da mina. Em “Mufolhe”, vemos o arrependimento a tentar ainda salvar o que resta. Em “Txintxile” vemos o olhar que já não pede salvação, apenas reconhece a cicatriz. É como se cada obra completasse a anterior e preparasse o chão para a seguinte, num diálogo que atravessa o tempo e a língua, provando que a ferida migratória não se cura apenas com o passar dos anos.
As três autoras apresentam três perspectivas ramificadas na mesma verdade. A denúncia é a mesma e, no final, é como se todas as autoras dissessem que a estrada entre Moçambique e África do Sul não é só geografia, é também o mapa daquilo que deixamos para trás e daquilo que nos torna, para sempre, diferentes.
