A inteligência marca nítidas fronteiras entre o animal e o homem,
sugere o carácter divino deste último, e, em certo grau,
substitui a sua imortalidade, que não existe.
Anton Tchekov
“A ave que queria ser ave”, “O ilusionista”, “Escondidos na luz”, “Mundos cruzados”, “Insónia”, “Conhece-te a ti próprio”, “O sotaque da luz?” e “Ilusão à vista” são os títulos dos oito textos que compõem Histórias do outro mundo, de Carlos dos Santos. No seu estilo peculiar, uma vez mais, o escritor traz narrativas que exploram a origem e a evolução das coisas.
Em termos temáticos, as histórias estão irmanadas, afinal os narradores, em geral, desenrolam eventos que se passam no hiato entre a perplexidade e a hesitação. Essa ocorrência, com efeito, exige de certas personagens perspicácia e uma elevada capacidade argumentativa. Por isso é que nas histórias a inteligência marca nítidas fronteiras entre os que buscam a eternidade do raciocínio e os que apenas se abstraem de pensar, porque condenar é bem mais fácil.
O mais recente livro de Carlos dos Santos confirma essa paixão que o escritor tem de fazer dos seus protagonistas entidades desassossegadas, insatisfeitas, em permanente movimento, pois sabem que “só aos viajantes são permitidos os prazeres da viagem” (p. 47). A lucidez, acto contínuo, garante uma diferença destacada no discernimento das personagens, opondo as sonhadoras às que apenas se recusam a compreender o lado mais omisso das circunstâncias. É como afirma uma personagem de “Escondidos na luz”: “as melhores coisas para se contemplarem são aquelas que não se conseguem compreender. Porque nos fazem pensar” (p. 48).
Estimular o pensamento num contexto em que as personagens se transmutam e tentam ser mais do que a matéria permite é o grande propósito de Carlos dos Santos. Logo, no primeiro texto, não admira uma ave querer ser árvore ou um alienígena apresentar-se materialmente, no segundo. Pelo contrário, o escritor atravessa o plano arredondado da terra para, como um explorador, captar outras dimensões do pensamento despersonalizado.
Não obstante, ao mesmo tempo que Histórias do outro mundo recupera o debate sobre a existência ou não de vida em outros planetas ou de outras vidas na terra, como é habitual em Carlos dos Santos, com personagens que desaparecem e assumem múltiplas formas, confronta a inteligência humana, na trama, espécie tão presunçosa. Um exemplo, numa passagem em que uma personagem humana julga exibir o seu conhecimento sistematizado, um alienígena afirma, aparentemente desapontado: “O que me espanta são as certezas que tu tens, a rapidez com que as formulas e a ligeireza com que acreditas nelas!” (p. 33). Isto diz muito do que o Homem é?
No seu novo livro, Carlos dos Santos cria um cruzamento de mundos e, consequentemente, as histórias tornam-se o palco onde se confrontam a lei dos homens e o estranho/ maravilhoso. Nesse mesmo cruzamento, a fronteira entre a inteligência e a loucura adivinha-se estreita, invisível até. Claro está, Histórias do outro mundo é uma interrogação aos fenómenos (im)possíveis, uma forma de se compreender o que está para lá dos sentidos, das emoções e do sentimento.
Portanto, a ficção de Carlos dos Santos volta a cumprir essa “missão” de trazer outros conceitos, igualmente indispensáveis na regência da percepção sobre as causas e os efeitos. Aí não faltam eventos relativos ao drama psicológico das personagens muitas vezes acossadas por alguma coisa; não falta a vulgarização da figura do herói e a permanente busca por um lugar onde a inteligência sugere o carácter demiúrgico do Homem e a sua imortalidade. Eis o mundo possível nas histórias de Carlos dos Santos.
Título: Histórias do outro mundo
Autor: Carlos dos Santos
Editor: Alcance Editores
Classificação: 14