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“Há poesia depois da eternidade?”, por Ana Mafalda Leite

      Objecto oblíquo é um livro que fantasmagoriza a poesia, começaria por dizer.

Lembro o poema Chuva Oblíqua de Fernando Pessoa e cito “A Grande Esfinge do Egipto sonha por este papel dentro…/Escrevo — e ela aparece-me através da minha mão transparente/ E ao canto do papel erguem-se as pirâmides…”. De certo modo a evocação do poema faz-me pensar que a transversalidade de espaços citacionais e criativos em Objecto Oblíquo – em cruzamento – encaminha a construção do livro, do Objecto, ao perpassar obliquamente paisagens interiores/exteriores de escrita, em narrativa fragmentária.

Pergunta-se a poesia,  a morte, a orfandade; descubro em contraponto de leitura os nexos que me transportam do português ao shona, língua que surge  pela voz dos  cantores zimbabweanos Feli Nandi e Leonard Dembo, ou encontro em outro passo uma referência a Nina Simone, If I should lose you, conectando-se a um poema de T.S. Eliot; mais adiante uma ligeira referência ao inferno de Dante, no mapa sinaliza-se terra de Manica, Guindingui, bucólicas irónicas de Virgílio, ou Alguidar de Versos, incorporação, justaposição de planos, referência à encenação teatral de Venâncio Calisto.

Comecemos, a tentame: há uma abertura com um fragmento de poema de Denise Levertov que nos diz: “cinza, um lugar/sem contornos claros, o ar pesado e grosso/o chão macio entupindo meus pés se eu ando,/chupando-os para baixo se eu ficar de pé.// Você já esteve aqui?”.

Você vai estar aqui. Aqui no Objecto Oblíquo. Que lugar de escrita é este?

Organizado em três partes, com diversas sub-partes “Último Desejo”, “Átrio das Aves”, “O Enterro das Unhas” (nesta última parte a numeração ludicamente é inversa ao ritmo crescente, começamos de nove para um, para chegarmos criteriosamente/ao início e final), este livro encena uma certa surrealidade da arte de estar vivo, em permanente acesso à morte, em oximórico trapézio, numa linguagem que tributa a poesia de algum espaço narrativo. Aqui se trata de necrologia e de distopia, de criação, o pesadelo se alinha numa fácil fulguração com asas, sonho ou pesadelo? Viagens pelo cemitério, escolhendo o lugar, a lápide, o silêncio, o verso. Teatralidade. Poesia. Orfandade, declamação, rapidez, kukurumidza, a morte em orquestração trágica.

 

“Unherera ushe. Unherera umambo. Um pensamento imódico nos tímpanos de um miúdo de seis anos. Leonard Dembo não imaginou que estas palavras assombrariam o miúdo do planalto por anos. Levou-me anos para que pudesse tocar o assoalho desta metáfora. Dembo foi talvez o primeiro compositor que me pôs a pensar seriamente na morte.”

 

 

Aqui, em Objecto Oblíquo, se alternam duas dicções/ritmos, sabiamente orquestrados, a do poeta David Bene e a do narrador Mélio Tinga, que se respondem, alternando, escrevendo “o último desejo”, que acompanha “uma flor que não desabrocha”, a morte. O leitor, tal como eu, poderá ler este livro de diversas maneiras, por fragmentos, parágrafos, sobrepondo espaços sem rosto e vozes sem som, ou contrariamente ouvindo a música de Tracy Chapman em fast car, “a ticket to anywhere”, um bilhete para parte alguma:

 

“O que é um trompete senão a construção dos sonhos, degrau a degrau, dedo a dedo, até que o universo esteja tecido por completo. Descubro comigo mesmo que a literatura é um animal imortal, teimoso, que, ao mesmo tempo que nos acalenta a carne, nos rói por trás.”

 

“Há poesia depois da eternidade? As crianças vão para o lado esquerdo. Os adultos para o direito. Mergulho na minha indecisão.”

 

Convido-vos a ler este excelente engenho de articulação de escritas, de “crianças que voltam sujas do paraíso” com poesia nas algibeiras e fantasmagóricas pirâmides no canto do papel:

 

“O inferno existe. Engano a todos com o poema. Não me arrependo. Se me desculpasse, quem ouviria? O submundo é uma caixa de fósforo. A voz do palito não conhece a aresta que não seja duma Impala. Esqueça-te dos remos, Caronte. A água é areia. Hereges, minha terra prometida. Saia do meu joelho e mostra-me onde queres descansar. Os teus olhos estão mortos, Virgílio. O submundo é raso. Cócito ascendeu e aviva a Ponta Vermelha.

 

Arrumo as mãos na algibeira. A noite perdeu a asa e caiu de cócoras no quintal. As crianças voltam sujas do paraíso. Futura esposa, em Tânger, queima a cebola no fogo de néon. Josué são cinzas na pá do necrotério. E o meu último desejo não existe.”

 

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