Há famílias que vivem muito perto do Cemitério de Lhanguene, na Cidade Maputo. Devido à proximidade e precariedade das valas comuns, enfrentam o mau cheiro e ossadas humanas em seus quintais.
Trata-se do cemitério de Lhanguene, localizado na Cidade de Maputo. O lugar de descanso para alguns acaba por ser de perturbação para outros.
“Temos essa inquietação. Afinal, porque trazem os mortos para enterrar próximo às nossas residências e não lá longe?”, questionou, aparentemente agastada, Reinilda Mazive, residente do bairro Luís Cabral.
O grito de socorro é de quem há décadas reside a escassos metros de uma vala comum e enfrenta moscas e cheiro nauseabundo provocado pelos corpos decompostos, principalmente na hora das refeições.
“Não passo nenhuma refeição quando o cheiro começa a fazer-se sentir. Abrem covas pequenas e metem pouca areia sobre os corpos”, denunciou a dona Reinalda.
Uma viatura branca com contentor na bagageira é usada pela edilidade de Maputo para levar os corpos abandonados nas morgues dos hospitais central e geral para as valas comuns. O trabalho é feito à luz do dia e, às vezes, com pouco cuidado.
“Todos os dias, de manhã e de tarde, quando este carro chega sentimos o mau cheiro. Quando passa, deixa manchas de sangue e, quando chamamos atenção, eles ignoram-nos”, contou um munícipe.
Ana Judite reside neste bairro há mais de 30 anos e agora teme pelo bem estar das suas crianças.
“Estamos expostos. O carro entra à luz do dia enquanto as nossas crianças estão aqui, na rua. Elas crescem a ver o carro da vala comum todos os dias. Isso nos preocupa”, expressou a sua preocupação Ana Judite.
Enquanto a mudança não ocorre, pelo menos um muro mais comprido podia aliviar o coração desta mãe. “Quando amanhece, nós vamos atrás do sustento e as crianças ficam em casa. Elas entram no cemitério e talvez façam trabalhos lá dentro, como vender água, mas nós não temos como controlar. Isso nos preocupa bastante e por isso pedimos uma solução de um muro mais alto, pelo menos por enquanto”, apelou.
Custódio da Ravuga é chefe do quarteirão 43 e reside na célula “J” desde a década de 1990. Hoje, lembra-se dos cenários assustadores que testemunhou.
“Assistimos a cenários críticos. Cães entravam na vala comum e puxavam ossos de mortos. Uma vez encontrámos um braço de uma criança no quintal da nossa vizinha”, lembrou Custódio da Ravuga, chefe do quarteirão 43 no bairro Luís Cabral.
Por sua vez, a edilidade acusa os residentes de invadirem o cemitério.
“Nós não podemos deslocar o cemitério, ele está lá antes daquelas famílias e a área reservada para vala comum está dentro deste perímetro do cemitério. O que deve haver é um diálogo com as famílias, de modo a que elas entendam que não podem ultrapassar a estrada e saltar para dentro do cemitério, mas também concordamos que é preciso, sim, colocar um muro mais comprido”, explicou Helder Muando, director de Morgues e Cemitérios.
O cenário pode ficar ainda pior, porque o número de corpos tende a aumentar nas morgues.
“No início, fazíamos vala uma vez por semana, mas, actualmente, somos obrigados a fazer três a quatro valas, o que totaliza cerca de 40 corpos em sete dias”, disse Hélder Muando.
Este cemitério até pode ser calvário para alguns, mas é um lar para outros. Por aqui, a morte deixou de ser temida.
No local, é possível ver famílias a visitarem as campas dos seus entes queridos ou a realizarem funerais, mas não muito longe, vê-se também outros grupos de jovens e crianças a divertirem-se com a bola.
É assim todos os dias. Quando uns enterram um ente querido, há quem, a partir do seu quintal, contempla o cenário e pensa em ter uma vida melhor.
“Nós já estamos acostumados. Ouvimos a cantar ou a chorarem, mas estamos aqui, não temos para onde ir”, lamentou uma residente do bairro dentro do cemitério.
A coragem dos residentes só é superada por ladrões que sempre usam o escuro do cemitério para se esconder das suas vítimas.
“Nós não temos medo, porque não há fantasmas. Só temos medo de ladrões, porque roubam e se escondem nas campas”, explicou outra moradora.
Devido ao medo, há mulheres neste bairro a quem é negado o casamento.
“Quando uma família vem para uma cerimónia de apresentação, é obrigada a atravessar pelo cemitério e saltar campas. O cenário expulsa prováveis maridos e a família chega a dizer que o nosso filho foi casar-se no cemitério. As pessoas pensam que, pelo facto de estarmos a viver no cemitério, também, estamos mortos”, explicou um jovem do mesmo local.
Mais uma vez, Hélder Muando reitera que estes escolheram viver num local proibido.
“Aquele é um exemplo clássico de famílias que foram ao cemitério, e, mesmo assim, reunimos com a comunidade para explicar o nosso projecto de muro, definimos o perímetro de onde iria circular o muro e perímetro pelo qual passaria uma rua que separaria as famílias do cemitério, mas eles invadiram. Nós não podemos falar de reassentamento, porque estamos dentro da nossa área”, disse o director de Morgues e Cemitérios.
Reclamações à parte, os jovens de Luís Cabral superaram o drama de viver entre os mortos e acharam uma oportunidade de emprego. Os jovens ocupam-se com a construção e pintura de campas, e chegam a ganhar até cinco mil Meticais por mês.
Não é de hoje que as pessoas ganham a vida no cemitério. Há um ancião que trabalha neste cemitério há 46 anos.
“Quando decidi abraçar este trabalho a minha própria família não gostou da ideia, mas como foi Deus que me incumbiu a missão, não recuei. Houve várias reuniões com a família para tentar sensibilizar-se de forma a deixar, mas questionei-os sobre a razão. Não me arranjaram um emprego melhor quando estava desempregado”, explicou o ancião que de tanto conviver com os mortos, nada mais o espanta.
Devido à escassez de espaço, o Cemitério de Lhanguene foi encerrado para novos funerais e aberto o de Michafutene, em Marracuene, que também já se ressente da pressão, realizando, por vezes, mais de dez enterros num só dia.