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ESTADO DZANWANWA? O risco de um Estado sem autoridade em Moçambique

Por Alberto da Cruz e Egídio Chaimite

Introdução

O Estado moçambicano deixou de ser respeitado. Esta é a realidade que importa afirmar sem receios nem rodeios. Nos últimos meses, decisões tomadas ao mais alto nível, como controlo e proibição da venda de álcool, incluindo do XIVOTXONGO, aos domingos ou a suspensão das actividades mineiras em Manica, foram simplesmente ignoradas. E estes são apenas os exemplos recentes e actualmente mais visíveis de uma longa lista de normas que não produzem efeito prático: regras de trânsito que ninguém observa, sobretudo pela própria Polícia de Trânsito, que devia garantir a sua implementação, a lei orçamental desrespeitada também pelos próprios governantes, impostos não pagos, regulamentos municipais sem aplicação, instruções administrativas que nunca chegam ao terreno. O Estado legisla e ordena, mas tudo continua como antes: como se a lei não existisse e, portanto, sem ordem.

Quando isto acontece, enfrentamos algo mais grave do que simples desobediência. Trata-se de uma erosão profunda da autoridade pública. O incumprimento deixou de ser excepção e vai-se tornando regra. A população presume que a lei não será aplicada e a palavra do Estado perde densidade normativa.

Esta normalização do incumprimento vai aproximando Moçambique daquilo que Hobbes descreveu como o ESTADO DE NATUREZA: um espaço onde não existe uma autoridade comum capaz de impor regras vinculativas e onde cada actor age segundo conveniência, necessidade ou poder. As consequências são inevitáveis: incerteza generalizada, fragilidade institucional, degradação da confiança pública e proliferação de autoridades paralelas que preenchem o vazio deixado pelo Estado. Em outras palavras, prevalece a lei do mais forte.

É neste ponto crítico que se impõe a reflexão: compreender o que significa viver num país onde em muitos casos a lei já não ordena e o que está verdadeiramente em causa quando o Estado deixa de ser respeitado.

Proibição de bebidas alcoólicas e o caso do xivotxongo

Não há dúvidas de que, nos últimos anos, Moçambique assistiu à expansão de um mercado de bebidas alcoólicas produzidas e vendidas à margem de qualquer controlo institucional. Entre estas bebidas, o famoso xivotxongo, de teor alcoólico elevado, de preço quase irrisório e composição incerta, tornou-se presença quotidiana nos bairros suburbanos. O seu consumo disseminou-se, sobretudo entre jovens e trabalhadores de baixos rendimentos, para quem o produto é simultaneamente acessível e perigoso. O caso dramático do aluno que perdeu a vida na Matola, no mês de Setembro, após ingerir uma destas bebidas, revelou de forma abrupta aquilo que já se pressentia: a alta circulação do xivotxongo constitui um risco grave para a saúde pública.

A elevada procura criou, entretanto, uma economia paralela sólida e resiliente. Mercados, barracas, pequenas cantinas e chamadas banquinhas caseiras tornaram-se pontos de distribuição de uma cadeia de produção que se expandiu sem qualquer intervenção estatal relevante. Com o tempo, esta cadeia gerou dependências económicas para milhares de famílias, integrando-se na vida comunitária de forma tão profunda que dificilmente pode ser desmontada apenas por decreto.

Perante a crescente pressão social, o Governo anunciou, sem apresentar nenhum estudo, um conjunto de medidas que incluíam o encerramento de unidades ilegais de fabrico do xivotxongo, a recolha do produto e foi além: proibiu a venda de qualquer bebida alcoólica aos domingos, com excepção dos restaurantes, que, na sua maioria, se localizam nas zonas urbanas. As decisões foram publicamente destacadas e recebidas como sinal de firmeza governativa. Contudo, o impacto prático foi mínimo. Meses após a sua entrada em vigor, os xivotxongos continuam a ser vendidos nos mesmos locais de sempre, com destaque para as “barracas” localizadas nas zonas periféricas do país, e a circulação de álcool aos domingos permanece generalizada fora das grandes superfícies.

O Governo não divulgou qualquer relatório sobre fábricas encerradas, apreensões realizadas ou sanções aplicadas. Na ausência de execução efectiva, a realidade manteve-se imperturbável, revelando mais do que uma falha operacional: demonstram a incapacidade do Estado em transformar decisões políticas em mudanças concretas no comportamento social. A proibição do xivotxongo tornou-se, assim, mais um exemplo de uma dinâmica que se repete no país: o Estado declara intenções, mas a vida quotidiana prossegue, indiferente, evidenciando o enfraquecimento da autoridade pública perante práticas socioeconómicas que se tornaram mais fortes do que a própria norma.

 

A Suspensão da Actividade Mineira em Manica

A actividade mineira em Manica expandiu-se de forma acentuada nas últimas décadas, sobretudo através do garimpo artesanal e da entrada de operadores com ligações a elites políticas e comerciais. Em várias zonas, a exploração estabeleceu-se fora dos mecanismos formais de controlo, operando através de redes que integram intermediários locais, trabalhadores informais e compradores estrangeiros, muitos deles de origem africana e asiática. Esta dinâmica criou uma economia local profundamente dependente da mineração, hoje uma das principais fontes de rendimento da província, tanto para as elites locais bem como para crianças, adolescentes jovens e adultos.

O crescimento desregulado foi acompanhado de violações constantes e flagrantes das normas ambientais, até por empresas legalizadas, que deveriam dar o exemplo. A lavagem de minério nos cursos de água e a falta de contenção de resíduos contaminaram rios como o Révuè e afectaram a Barragem de Chicamba, crucial para o abastecimento doméstico e para a agricultura. A deterioração da qualidade da água teve impacto directo na saúde das comunidades e na produção agrícola, agravando as fragilidades já existentes.

Perante denúncias sucessivas e danos visíveis, o Governo decretou a suspensão de todas as actividades mineiras, abrangendo garimpeiros, operadores semi-industriais e empresas licenciadas em Manica. A medida foi apresentada como necessária para travar a degradação ambiental, embora alguns operadores formais defendessem uma aplicação faseada para mitigar perdas económicas.

A execução, porém, revelou-se desigual. Em várias zonas afastadas, a extracção continuou (ex: distrito de Vandúzi), sobretudo onde actuam redes com influência local. Muitos garimpeiros mantiveram a actividade por falta de alternativas, enquanto frentes associadas a actores poderosos, especialmente ao filho da governadora de Manica, segundo vários órgãos de comunicação local, não foram efectivamente interrompidas. Até ao momento, não foram divulgados dados oficiais sobre concessões encerradas ou sanções aplicadas. A mineração permanece activa em alguns pontos da província, revelando a incapacidade do Estado em aplicar uniformemente a suspensão que proclamou.

Apesar de críticas generalizadas da imprensa e da sociedade, altos dirigentes da FRELIMO e do Estado parecem minimizar o caso ao tentar separar o inseparável, em vez de condenar com veemência o desacato ao Estado. Este foi o caso, por exemplo, de Filipe Paúnde, que, respondendo às questões dos jornalistas sobre o caso, referiu que: “… a governadora de Manica não tem filhos. Quem tem filhos é uma cidadã chamada Francisca”. São exemplos como estes que qualquerizam (desautorizam) o Estado.

 

O que os dois casos acima têm em comum?

Primeiro, sobre as causas: ambos não resultam de momentos de desordem ou de falhas administrativas isoladas; são expressões de uma ordem social mais profunda, que se impôs ao longo de anos, até se tornar mais forte do que a própria norma estatal. O caso de Manica mostra isso com clareza. A mineração artesanal, enraizada como principal fonte de rendimento para milhares de famílias, e operada através de redes que atravessam o poder local e interesses transnacionais, tornou-se indispensável à economia da província. Quando o Estado decreta a suspensão total da actividade, fá-lo ignorando que, para grande parte da população, cumprir a lei significaria abdicar dos meios mínimos de sobrevivência. O decreto nasce, por isso, desligado da realidade que pretende regular. E uma lei que não pode ser cumprida não será cumprida.

Segundo, este desfasamento entre norma e realidade é agravado pela aplicação selectiva da própria lei. Em Manica, frentes de extracção associadas a actores influentes continuaram a operar, enquanto garimpeiros pobres foram confrontados com a exigência de parar imediatamente. A população observa esta assimetria e compreende de imediato a mensagem implícita: o decreto não é geral, é posicional. A obediência não é uma obrigação comum, mas uma consequência da força relativa de cada actor. Assim, a norma perde legitimidade antes mesmo de ser aplicada, porque deixa de ser percebida como expressão de um princípio universal.

A tentativa de controlar o consumo de bebidas alcoólicas segue exactamente a mesma lógica. A proibição da venda ao domingo ou do xivotxongo pode parecer, à escala formal, uma resposta firme, mas ignora que grande parte dessa actividade ocorre no sector informal, onde o Estado raramente chega e que sustenta a economia de sobrevivência de milhares de famílias. Aqui também a lei esbarra numa realidade que não pode ser moldada por decreto. Tal como em Manica, a aplicação parcial, que afecta sobretudo vendedores pequenos e desprotegidos, reforça a percepção de injustiça. A lei aparece menos como instrumento de ordem pública e mais como imposição circunstancial sobre quem tem menor capacidade de se proteger dela.

O que estes casos revelam, portanto, não é apenas incumprimento, mas a existência de um sistema alternativo de racionalidades sociais. Há uma tendência recorrente para atribuir estas situações a falta de civismo, indisciplina ou desorganização cultural, mas esta leitura falha o essencial. Nenhuma sociedade cumpre leis impraticáveis. Nenhuma comunidade obedece a normas que contrariam a sua própria sobrevivência. Nenhum povo respeita regras aplicadas de forma desigual. O incumprimento generalizado não é um problema moral; é um diagnóstico institucional. É o resultado lógico de um Estado que produz normas desconectadas das condições materiais de vida e que, ao mesmo tempo, viola continuamente as regras que proclama.

A erosão institucional reforça ainda mais este processo. Durante anos, os próprios órgãos e demais entidades públicas violaram sistematicamente leis e normas que têm a responsabilidade de garantir a sua implementação. Destacamos, por exemplo, o desrespeito por normas orçamentais, como verificámos com a recente publicação do relatório de contas de 2024 pelo Tribunal Administrativo (TA), revelando que, desde a criação da Lei n.º 9/2002 do SISTAFE, os diferentes governos não cumprem com os procedimentos orçamentais.  Mais: diferentes contratos públicos são assinados sem cobertura legal (por exemplo: Move Maputo e Future Technologies of Mozambique), e decisões estratégicas, como as que estiveram na origem das dívidas ocultas, demonstraram que a legalidade pode ser sacrificada pelos próprios gestores da coisa pública. Quando o topo do sistema opera fora da lei, o efeito pedagógico que produz é devastador: o Estado ensina, pela prática, que a lei é contingente. E, uma vez que a autoridade pública se desautoriza, a lei perde a função de ponto de referência para a sociedade. É caso para dizer que quando o pastor não dá o exemplo, as ovelhas seguem por outro caminho.

Deste modo, o incumprimento dos decretos não deve ser lido como rebeldia, mas como adaptação. A sociedade reorganiza-se de acordo com aquilo que funciona, não com aquilo que é decretado. Onde o Estado não chega, a economia informal assume o comando; onde a fiscalização é irregular, prevalece a protecção política; onde a lei é impossível, vigora a sobrevivência; onde a norma é selectiva, instala-se a arbitrariedade. A sociedade ajusta-se ao Estado real, intermitente, incoerente, desigual, e não ao Estado ideal que existe no Boletim da República.

O resultado é uma deslocação subtil, mas profunda, da fonte da ordem: a legalidade formal deixa de ser o eixo principal da vida colectiva e dá lugar a sistemas paralelos de regulação social. O país continua a funcionar, mas segundo lógicas que escapam ao controlo estatal. A lei não desaparece, mas deixa de ser determinante. A autoridade não se extingue, mas perde centralidade. A ordem existe, mas já não deriva da norma pública.

 

Um Estado de natureza?

Quando a lei deixa de organizar comportamentos e o Estado perde a capacidade de impor previsibilidade, instala-se um tipo de incerteza que corresponde, na prática, ao que a filosofia política designou por “Estado de Natureza”. Não se trata de caos absoluto, mas da ausência de uma autoridade comum capaz de garantir regras estáveis e aplicáveis a todos. Esta condição emerge em Moçambique, não por colapso repentino, mas por erosão prolongada da autoridade pública.

A incerteza torna-se visível no quotidiano: o vendedor que não sabe se amanhã será multado ou ignorado; o automobilista que depende do humor do agente de trânsito e não do código da estrada; o empresário que só investe após “falar com alguém”; o camponês receoso de perder a sua parcela por uma decisão arbitrária; o estudante persuadido de que o mérito raramente é determinante. Em cada um destes casos, a lei existe, mas não regula. E, quando a lei não regula, cada cidadão recorre ao que tem: contactos, improviso, negociação, influência local. A ordem passa a ser produzida de forma fragmentada.

Neste vazio de autoridade formal, multiplicam-se micropoderes: redes informais que regulam mercados, líderes comunitários que arbitram conflitos, operadores económicos que capturam áreas de actividade, intermediários que controlam o acesso a serviços públicos, elites locais que reinterpretam normas segundo conveniência. Cada um oferece alguma estabilidade, mas nenhum fornece garantias colectivas. O país passa a funcionar através de regras paralelas, descoordenadas e desiguais.

É esta fragmentação – e não a violência aberta – que constitui o risco central. Sem um horizonte normativo comum, a sociedade perde a capacidade de projectar o futuro. Num mundo globalizado, onde a confiança institucional é condição para investimento, inovação e desenvolvimento, um Estado incapaz de garantir a eficácia das suas próprias leis arrisca-se a tornar-se irrelevante.

A irrelevância estatal já produz efeitos mensuráveis: desigualdades mais profundas, porque quem detém poder navega melhor num sistema sem regras fixas; expansão da informalidade como modo dominante de vida económica; corrupção transformada em estratégia de resolução de problemas; fuga de capital humano, sobretudo jovem, desmotivado por um ambiente onde o esforço não é recompensado; deterioração da confiança pública, porque a distinção entre legal e ilegal deixa de ter valor prático.

Quando a lei perde força, não é apenas o Estado que enfraquece; é a própria sociedade que se reorganiza fora dele. A ordem continua a existir, mas já não é pública nem universal; é fragmentada, oportunística e desigual. É este cenário – concreto, quotidiano e profundamente político – que aproxima Moçambique de um Estado de Natureza moderno.

 

O caminho de volta

A fragilidade actual da autoridade estatal em Moçambique revela uma deslocação profunda entre o Estado formal e a ordem efectiva que organiza a vida social. Esta deslocação não se resolve com novos decretos, mudanças de retórica ou multiplicação de operações de fiscalização. Esses instrumentos actuam na superfície do problema e ignoram as condições estruturais que tornaram o incumprimento uma resposta racional para significativas parcelas da população. A questão central não é a ausência de lei, mas a perda do Estado como instância central de coordenação colectiva.

A reconstrução da autoridade exige três movimentos articulados. O primeiro diz respeito ao comportamento do próprio aparelho de Estado. A autoridade pública deriva, em larga medida, da sua capacidade de se constituir como modelo de previsibilidade e coerência normativa. Quando o Estado é o primeiro actor a violar regras orçamentais, ignorar prazos, improvisar procedimentos ou aplicar normas de forma selectiva, produz um efeito imediato de descrédito. A perda de legitimidade não ocorre apenas no plano simbólico: dissolve o fundamento lógico da obediência. Uma ordem estatal baseada na lei só é sustentável quando as instituições que a representam demonstram, nos seus actos quotidianos, que estão vinculadas às mesmas regras que exigem dos cidadãos.

O segundo movimento implica a revisão da própria racionalidade normativa. As leis não são eficazes porque são severas, moralmente desejáveis ou politicamente necessárias, mas porque são exequíveis e socialmente aderentes. Sistemas normativos que ignoram a estrutura económica real, marcada pela informalidade, pela desigualdade territorial e pela fragilidade institucional, tendem a falhar, independentemente da sua intenção. A legislação eficaz precisa de reconhecer a arquitectura socioeconómica do país: a informalidade, não como desvio, mas como configuração dominante; a sobrevivência como metáfora reguladora; e as capacidades administrativas como variável determinante. A desconexão entre norma e realidade é, por si só, um factor de produção de incumprimento.

O terceiro movimento remete para a forma de presença do Estado no território. A fiscalização selectiva ou episódica reforça a percepção de arbitrariedade, alimenta relações clientelares e acentua a diferença entre cidadãos com poder de evasão e cidadãos estruturalmente expostos. A autoridade, para ser efectiva, não pode surgir como excepção, mas como rotina. A aplicação uniforme das normas, mais do que a sua multiplicação, é o mecanismo que converte a lei em referência e não em ameaça ocasional. Não se trata de vigiar mais, mas de vigiar de forma consistente, previsível e igualitária.

Estes três movimentos apontam para um mesmo objectivo: reconstituir o Estado como centro de coordenação social. A participação das comunidades nos processos normativos não é, neste sentido, um gesto meramente democrático nem uma concessão política; é uma estratégia com vista a melhorar a eficácia das acções do próprio Estado. Normas construídas com conhecimento local tendem a ser mais exequíveis, mais ajustadas às práticas sociais e menos vulneráveis à evasão. A participação funciona como mecanismo de aproximação entre os mundos que hoje se encontram desalinhados: o da lei e o da vida quotidiana.

 

*Dzanwanwa: designação atribuída a quem carece de autoridade, a quem a autoridade tenha sido subtraída ou, em termos coloquiais, a um simples matreco

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