Metamiserista
Quando o Sérgio Raimundo também conhecido por Poeta Militar, compartilhou a imagem da capa do novo livro, antes de aceder ao livro, ocorreu-me haver intertextualidade entre o título “o colono preto saiu do guarda-fato” com o romanesco do camaronês Mongo Beti: o pobre Cristo de Bomba; um missionário católico que, ao visitar a sua paróquia, descobre com perplexidade que todos os males locais têm origem na própria Missão. Ainda que sejam géneros distintos, no de Poeta Militar apresentado em crónicas e no de Mongo Beti em romanesco, entretanto, ambos denunciam o colonialismo que combate um povo e fazem-no recorrendo a sátira, e é nesta perspectiva que ocorre a concatenação.
Não se pode confundir a anestesia com a esperança!
Camilo José Cela in “a Colmeia”
“sonho com uma revolução sem ideologia, onde o destino do ser humano, seu direito a comer, a trabalhar, a amar, a viver a vida plenamente não esteja condicionado ao conceito expresso por uma ideologia, seja ela qual for.”
Jorge Amado in “o Menino Grapiúna”
Inicio esta jornada invocando os autores: Cela e Amado, porque na minha crença toda a celebração tem de invocar o tempo para que o espírito se manifeste sobre a carne. E que será a arte se não a manifestação de coisa alguma!?
O que motiva o autor a escrever sobre o colono preto, é o facto de ter nascido neste país cheio de colonos pretos. Colonizamo-nos a cada gesto em que oprimimos o outro, desnecessariamente, e tomamos o lugar do colono que dissemos tê-lo vencido, entretanto, substituímo-lo e tomamos o seu chicote para que o apliquemos em outros nossos irmãos. A busca pela justiça social e uma sociedade melhor onde haja equidade inquieta o autor de “o colono preto saiu do guarda-fato”.
Logo a prior abre-se a página do colono preto com o seguinte excerto do poeta francês, Apollinaire, “Piedade para nós que trabalhamos na fronteira do ilimitado e do futuro”. Aqui, o autor confessa tudo o que sonha para com o seu povo: piedade. Que este colono preto, tenha piedade de seus irmãos.
“Assim, queres começar, Sérgio” (…), este texto das páginas 10 e 11, apresenta-se como prelúdio e o autor apresenta o seu projecto em género textual de crónica e anuncia deixando nas entrelinhas que “aí tem”, tal como reage a mulher, quando o seu esposo a informa que passará a noite fora, e ela responde dizendo: assim, queres começar. Vemos o homem aqui descrito, a reagir diante desta construção verbal da seguinte forma: o meu primo, totalmente diluído de medo, passou por cima de grades de cerveja gelada, espectadas de carne de porco e uma animada música. De acordo com o autor, a mulher usa este termo: assim, queres começar, como sinonímia de termos como cão, malandro, desprezível e etc.
Pode se depreender que o termo “assim, queres começar”, é o desarmamento de qualquer plano e instalação da ordem diante do caos e de desacertos. Nestes termos, fazemos desta significação para compreender que o Poeta Militar, prepara o leitor advertindo-o que nas páginas seguintes do livro irá desinstalar o caos e desacertos, e reveste-se da autoridade da mulher que faz o homem atravessar grades de cerveja gelada e corre para casa. Entretanto, assim, começa o autor nos fazendo atravessar as grades da fissuração e voltarmos para dentro de nós e repõe a ordem.
O texto da página 12, intitulado “Quando não trabalhas”, em que descreve a forma como a sociedade trata o homem desempregado, dizendo que: quem não trabalha deve disputar os cantos de casa, todos os dias, com a poeira e ratos (…) a família transforma-te num pequeno técnico de coisas pequenas: pregar botões de casacos, colar solas de sapatos, lubrificar fechaduras e chaves, seguir pegadas no quintal (…). Este texto é polissémico no seu pendor. Não te enganes, caro leitor, pensando que o Poeta Militar se ocupa a entender actividade de caça-ratos, caçador de poeiras ou mesmo de um desempregado. E nota que o texto termina dizendo o seguinte: quando não trabalhas ganhas um novo nome (…) ao telefone dizem bem alto para ouvires: o Paulo, o Lucas, a Lina, o Paíto e a Inês estão bem; o resto está na mesma. O resto és tu que não trabalhas, seu desgraçado. Esta mente satírica, diz muito por aqui, estas pegadas ao amanhecer que são seguidas por este indivíduo que não trabalha se reverberam nas nossas acções factuais, quando se nos é confiado uma missão e deixamos de trabalhar tal como se espera, mas nos tornamos nesta figura que preenche os vazios.
O texto de Poeta Militar rememorou-me uma conversa com um amigo que dizia: mas este ministro só aparece na imprensa quando morre alguém e se lamenta sempre. Aí pensei, se um ministro que tutela os interesses públicos num domínio, apenas aparece para se lamentar de quem perece, devia ser ministro de lamentações. Que se crie este pelouro! Porque fica evidente que assim cumpriremos com a nossa missão de caçar ratos, cuidar da poeira, ou de fazer as lamentações tal como bem o sabemos fazer. O sistema está fodido, amigos!
Segue-se o texto “um bocejo que me assustou muito” da página 15, em que descreve bocejos assustadores e até que monstruosos. No entanto, o bocejo representa o preparo do sono ou descanso.
No texto da página 16 “assim falam os nossos cobradores”, descreve a sina de quem anda em autocarros, um exercício que independe de títulos académicos; descreve um doutor cujo título não coube no chapa do cobrador e foi ignorado em plena estacão, para dizer que, para ser afinado em chapas não se pode portar títulos. Ocorre também o uso de neologismos como o termo quinhentxu para se referir aos quinhentos meticais.
Na página 20 faz a classificação canina dos nossos analistas de televisão que os estrutura em 5 grupos seguintes:
- Cães de gaiola: os que ladram e ameaçam, só para assustar os distraídos, mas no pescoço têm a coleira e ao fim-do-dia recolhem à gaiola.
- Analistas Bobi: os que se dedicam em coisas fúteis, mas temem enfrentar ao ladrão.
- Cães de fechadura: os que ladram atrás da fechadura da porta porque tem medo de enfrentar de frente a quem assalta a casa. E esses são mais perigosos, pois atacam a todos, menos o que comanda a tigela de ração.
- Cães vira-latas: saltitam de televisão em televisão com o microfone entre as pernas, carregados de raiva que procuram uma família que os acolha e proteja-os do frio, dos ossos sem sabor das esquinas, das pedradas de rua e moscas nas feridas das orelhas;
- “Cães híbridos” (grifo meu): que são analistas que parecem ter nascido do cruzamento de raças caninas diferentes. Uns que cruzam, por isso, ideias e informações, são bravos e atacam, mas nunca aparecem sempre, são chamados nomes, combatidos com balas e pedradas, são isolados porque são perigosos demais para a nossa sociedade.
Nesta senda, convido ao digníssimo leitor a reflectir no grupo de analistas com que se identifica na perspectiva apresentada por Sérgio Raimundo.
Na página 24, encontramos a cronica clássica “fomos enterrar o nosso director” onde se descreve a disputa pelo poder em que todas as estratégias são válidas para tirarmos quem estiver no nosso caminho.
A irreverência de Poeta Militar reside na simplicidade com que se comunica ao escrever, a carapaça e as antenas que tem revelam as feridas que há em nosso corpo. Um pensamento distópico de compreender a dor porque ela doi. Este raciocínio pode ser compreendido a partir de Sartre (2004, p.19) que diz o seguinte:
Assim a linguagem: ela é nossa carapaça e nossas antenas, protege-nos contra os outros e informa-nos a respeito deles, é um prolongamento dos nossos sentidos. Estamos na linguagem como em nosso corpo; nós a sentimos espontaneamente ultrapassando-a em direção a outros fins, tal como sentimos as nossas mãos e os nossos pés; percebemos a linguagem quando é o outro que a emprega, assim como percebemos os membros alheios. Existe a palavra vivida e a palavra encontrada.
Vide o excerto concernente, página 29: a casa vai sendo modificada sem ser mexida. A casa continuará, as tocas dos ratos foram fechadas e nenhum rato foi morto; os ratos já começaram a cavar novas tocas em novos lugares. É o novo governo dentro da casa.
Pensar em ratos que se mantém em todos os ciclos, conduz a narração de Júlio Cortázar em “Histórias de Cronópios e de famas” no texto intitulado “o homem sem moralidade”, que descreve o homem que vendia palavras e gritos para o povo e decidiu ir vender para o ditador alegando que seriam as suas últimas palavras antes que fosse fuzilado, o que lhe valeu a prisão, mas no dia seguinte o ditador fora preso por seus generais e morto antes que dissesse as palavras que pretendiam vendê-lo. Para dizer que, o Poeta Militar também se ancora ao raciocínio de Júlio Cortázar.
As saudades por Azagaia confessam-se na página 35. Homenageia Rosita Pedro, pelos 25 anos, referimo-nos a menina que nasceu no topo de uma árvore nas cheias de 2000 em Chibuto. Há também neste livro, um texto sobre o episódio horrendo da moça atropelada pelo blindado da polícia durante as manifestações, e é ainda nestas manifestações que se ocupa a descrever “as três profissões que surgiram com as manifestações: Doutor desliga-internet, Porta-Cara-Sem-Vergonha que defende o património do Estado e o Observador Lunático, o que nada vê no que se vê.
Na página 47, ocorre um exercício bastante interessante, de reflexão no uso de diminutivos de nomes, uma prática actual e resulta em casos de Dr. Cus, que se refere a Dr. Custódio, Cons, Constância, e “até Já nosso anjo” numa notícia necrológica sobre Jacinto.
De acordo com o poeta francês, Rimbaud (2014, p.5): (…) E então, quando tu tens fome e sede, tem sempre alguém que te manda passear. Não será este colono preto que nos manda passear diante da miséria social que vivemos?!
Lê-se na página 52 o seguinte: todos temos direito de amar, mas isso não nos dá o direito de escolher os nossos namorados.
Esta construção precedente, assim como tantas outras aqui constantes, conduzem-nos à reflexão dos 50 anos de independência que o país celebra neste ano. Os prós e contra, conquistas e desafios. Desde o judiciário, desintegrado em textos como os que dissecam sobre as eleições, em crónicas como: a vergonha que passei no dia 09 de Outubro; sobre a cultura versus política em: tio Mondlane, viste a tua nova estatua; sobre o desemprego em: a espera de quem procura por um emprego. Há ainda assuntos como “os raptos em Maputo” e entre tantos outros, que abordam assuntos que enfermam a sociedade moçambicana.
E é da página 69 que surge a crónica que dá título ao livro “o colono preto saiu do guarda-fato”, para descrever o senhorio que aparece quando se extingue a luz e tudo fica às escuras, e do guarda-fato surge a sombra que recolhe todo o património que a família possui e quando se restabelece a electricidade tudo fica iluminado, mas a casa se apresenta vazia, sem nada do que possuía antes do apagão, porque o colono preto já saiu do guarda-fato.
Este colono que age sorrateiramente quando tudo fica escuro, controla os nossos movimentos, e quando o pai se ausenta carrega os nossos pertences e quando abrimos os olhos ele se esconde e a miséria inunda a casa porque nada temos. Neste raciocínio depreende-se que, tudo o que temos, hoje, o colono preto virá buscar.
Há aqui pecados e recados, mas não encontrei a penitência!
Sérgio Raimundo, que à outrora escreveu versos sobre “o menino cândido” em “Avental de Um Poeta Doméstico”, que tive o privilégio de apresentar em nossas incursões, cresceu e hoje tem a sua voz e autoridade no cenário literário contemporâneo em Moçambique, segue com as ancas ou sem ancas, o CAMARADA Poeta Militar, segue, em direcção à Comala, como o filho que entre sequências dialogais construídas em Pedro Páramo, na narração de Juan Rulfo, ouve da mãe o seguinte: Não vá pedir-lhe nada. Exija-lhe o nosso. O que esteve obrigado a dar-me e nunca me deu (…) O esquecimento em que nos teve, meu filho, cobre caro.
Este é um livro que cobra o que é nosso, não te esqueças, apenas o que é nosso! Um livro revolucionário tal como é a escrita de Poeta Militar. Uma revisitação do guarda-fato vazio de dia e sombrio às escuras, entretanto, ainda assim, guardámo-lo em nossos quartos nestes 50 anos.
Toma a palavra vivida em nosso corpo e oferece a palavra encontrada no espírito, o sonho, a esperança aqui encontrada. Um livro que traz algo obrigatório, a esperança, porque a esperança é obrigatória para quem quer viver e de qualquer forma temos de sonhar, ainda que em nosso quarto, fábrica de sonhos, haja um colono preto a espera de fecharmos os olhos para nos atormentar os sonhos!
Referências Bibliográficas:
Amado, Jorge. “O Menino Grapiúna”. Publicações Europa-América. Lisboa. 1992.
Beti, Mongo. “O Pobre Cristo de Bomba”. Edições 70, Lisboa, 1979. Tradução de Geminiano Cascais Franco. Pág. 268.
Cela, José. “A Colmeia”. Publicações Dom Quixote. Lisboa. 2002.
Cortázar, Júlio. “Histórias de Cronópios e de famas”. Editorial Estampa. Lisboa. 1999.
Rimbaud, Arthur. “Iluminuras”. Editora Iluminuras. 2014
SARTRE, Jean –Paul. “Que É a Literatura?” Editora Ática. São Paulo. 2004.

