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Elísio Macamo diz que o desenvolvimento do país não pode estar refém de um grupo de pessoas

Foto: O País

“A maior tragédia que começou logo em 1975 foi ter um grupo de moçambicanos a achar que só a sua forma de ver o projecto de independência é que é válida”, entende Elísio Macamo, que defende a inclusão de todos os moçambicanos no desenvolvimento nacional. Para o sociólogo, a maior falha do actual Governo é não saber comunicar sobre assuntos como o combate ao terrorismo. Para evitar falhas como erros nos manuais, o académico defendeu, no programa Grande Entrevista da Stv, a responsabilização dos responsáveis.

 

Começo por lhe trazer o tema do desenvolvimento, um sonho que o país persegue há 47 anos. Muitos políticos e académicos apontam vários elementos para explicar a situação do país, como guerra e eventos climáticos extremos. Para si, o que leva o país a estar nesta luta, sem sucesso, rumo ao desenvolvimento­?

Eu não diria que não estamos a registrar nenhum sucesso, seria demasiado pessimista se tivéssemos em conta vários aspectos muito importantes. Por exemplo, um dos mais importantes é o facto de sermos um país africano. Isso envolve a história. Nós fomos colonizados e o significado da colonização não está apenas naquilo que chamamos de opressão ou racismo, mas no facto de termos sido integrados num mundo que foi feito à medida dos outros países e nós temos que encontrar o nosso caminho dentro desse mundo. Isso é complicado. Este é o primeiro factor. O segundo factor é que há dores de crescimento. Um país que tem menos de 50 anos é ainda criança. Mesmo países como Cabo Verde, Ruanda e Botswana, que registaram grandes avanços, não se podem contentar com aquilo que já alcançaram. Temos que esperar mais alguns anos para saber se eles vão consolidar aquilo que alcançaram ou não. O Botswana está, agora, com muitos problemas. Foi celebrado há dez anos como o grande sucesso económico africano e hoje está com grandes dificuldades. Então, quando eu digo que não podemos dizer que não há sucesso, quero destacar o facto de que há um contexto dentro do qual essas coisas têm que acontecer, e nós como moçambicanos, temos que ter sensibilidade para isso. A outra coisa está relacionada com a própria noção de desenvolvimento, porque nós imaginamos o desenvolvimento como um fim. Vamos fazer coisas para, no fim do dia, alcançar o desenvolvimento, mas não é assim. O desenvolvimento não é um projecto útil para nenhum país, é um projecto que resulta dos esforços daqueles países que estão preocupados connosco e encontraram uma maneira de se relacionar connosco através desse discurso de desenvolvimento. O que nos deve preocupar, na minha opinião, é a criação de condições para que nós sejamos capazes de ser aquilo que queremos ser e isso passa por uma reflexão profunda sobre o sistema político que nós temos.

 

Quais devem ser os paradigmas de governação para que se criem, de facto, essas condições que levem o país à prosperidade?

Há um grande paradigma que vem com o projecto da independência. Houve uma luta anticolonial e o objectivo dessa luta não era apenas a independência, era o desenho de um projecto de independência, que seria a garantia da dignidade humana de todos os moçambicanos. Esse é o grande paradigma que nos devia ocupar. Até que ponto nós temos um sistema político, em Moçambique, que se traduz num sistema económico, num sistema social e num sistema cultural que sejam capazes de garantir a dignidade humana? Eu penso que todos os nossos problemas estão a esse nível.

 

Durante a luta pela independência, os moçambicanos perseguiam este objectivo de conquistar a dignidade para todos os moçambicanos, e com isso houve a coesão social, a unidade nacional e um sonho à volta do qual os moçambicanos se uniram. Hoje, pós-independência, qual é o sonho que perseguimos, continua o mesmo, perdemo-nos, como é se explica que, quando falamos de unidade nacional, a coesão social não seja a mesma?

O facto de nós termos um projecto de independência não significa que todos tenhamos a mesma interpretação desse projecto, porque, afinal, nós somos um país marcado pelo pluralismo de valores. Nós somos diversos. Então, é preciso que tenhamos consciência de que a existência do projecto é apenas um convite para que todos os moçambicanos desenvolvam alguma ideia sobre como realizar esse projecto. A maior tragédia que nós temos e que começou logo em 1975 foi ter um grupo de moçambicanos a achar que só a sua forma de ver esse projecto de independência é que é válida. O desafio é justamente encontrar uma maneira de organizar este país que permita que haja espaço para todas as sensibilidades sejam ouvidas e que haja espaço para ser experimentadas outras, se uma não funcionar.

 

Está com isso a dizer que hoje já não podemos trazer o discurso do sonho moçambicano, mas sim do sonho individual que se torna no do colectivo?

O sonho moçambicano sempre vai existir enquanto o país existir. O que eu estou a dizer é que este sonho não pode ficar refém de nenhum grupo. Por exemplo, um dos discursos mais problemáticos da nossa política, que infelizmente vem da maior força política que nós temos, a Frelimo, é o discurso da unidade nacional. É um discurso que sempre enfatiza a unanimidade, entretanto tem sempre a tendência da polarização.

 

Pessoalmente, como entende este conceito?

Eu entendo este conceito como extremamente problemático, porque é um conceito que asfixia a crítica, a reflexão, a criatividade, a inovação; é um conceito que não aceita que haja outras maneiras de ser moçambicano que não sejam aquelas que já foram definidas por este partido.

 

Desde sempre, Moçambique contou com o apoio externo para realizar os seus projectos de desenvolvimento. No contexto actual, tendo como lição as experiências passadas, de que forma é que podemos olhar para a nossa relação com as outras instituições ou países que nos possam apoiar para que este apoio tenha eficácia nos projectos de desenvolvimento?

Eu não creio que possamos dizer que o país sempre contou com o apoio externo para realizar os seus projectos. O apoio externo sempre esteve aqui para realizar projectos externos, nunca houve da nossa parte interesse em definir aquilo que queremos ser e o papel que esse apoio externo pudesse desempenhar naquilo que nós queremos ser. Houve num momento com o Presidente Chissano, sobretudo com a sua preocupação com a consolidação da paz e da reconciliação, em que nós poderíamos ter falado de algum elemento de articulação do apoio que vem de fora com aquilo que nós queríamos ser. Penso que a mesma coisa poderíamos dizer em relação ao Presidente Guebuza, talvez até uma das grandes máculas da sua governação, que são as dívidas ocultas, é reflexo de encontrar uma forma soberana de estar no mundo e de fazer com que o auxílio externo seja funcional a essa visão. Então, eu volto à questão essencial: Até que ponto nós podemos falar, em Moçambique, de um projecto de independência que seja veiculado pelas nossas elites políticas? Até aqui, não tenho visto sinais disso, e enquanto for assim, todo apoio que vem de fora não vai ter nenhuma utilidade. Nós não temos nenhuma discussão sobre quando é que queremos acabar com esse apoio externo. Tudo que nós fazemos é sempre em função da expectativa de que haja um financiamento de fora. Mesmo agora que nós tivemos de nos emancipar, o maior esforço que nós fizemos, ao nível governamental, foi procurar satisfazer todos os critérios para voltarmos a receber ajuda, mas não para nos libertamos. Há um grande problema a esse nível.

 

Há uma grande esperança que se deposita na exploração dos recursos naturais como uma alavanca para o desenvolvimento. De que forma é que podemos fazer o uso desta janela para que seja, de facto, transformadora?

Para mim, tudo está dependente desta visão que nós precisamos de ter, sem a qual nenhum projecto, por maior que seja, vai levar-nos aonde queremos ir e aonde queremos ir é a garantia da dignidade material, social e política de todos os moçambicanos. Eu posso dizer como é que este projecto de independência se deveria manifestar para ser visto: é ao nível do sistema político, ao nível de como é a relação entre quem detém o poder e quem não tem poder.

 

Quais seriam as premissas desse projecto?

A primeira premissa é a cidadania. O nosso país tem que garantir o pleno exercício da cidadania, enquanto o país não garantir isso, nenhum investimento externo e nenhum grande projecto vai ter impacto na nossa sociedade. Em primeiro lugar, a cidadania significa que todo o cidadão tem o direito de interpelar criticamente quem exerce poder em seu nome.

 

O pensamento crítico remete-me à educação como um factor fundamental nesta reflexão sobre o desenvolvimento. Apesar dos avanços que o país foi registado, persistem ainda vários desafios no sector da educação. No seu entendimento, qual seria o modelo consentâneo com os desafios do país?

Há essencialmente duas coisas que qualquer sistema de educação é capaz de satisfazer. A primeira coisa é proporcionar às pessoas a oportunidade de se realizarem de acordo com as suas potencialidades. Nós temos pessoas que têm muita inclinação técnica e muita inclinação manual, temos é garantir que essas pessoas tenham a oportunidade de se realizar através da formação. Eu penso que um dos grandes investimentos que se pode fazer na educação é a formação vocacional e profissional, tanto mais que a nossa economia, sobretudo a formal, depende muito disso. Sem isso, não teremos nada de qualidade. A segunda coisa em relação à formação é que ela seja capaz de dar oportunidade àquele que realmente tem talento. Neste momento, quem tem acesso à educação é quem tem dinheiro e não quem tem talento para tal. Claro que vai ser assim porque as sociedades são assim e as desigualdades existem de uma ou de outra maneira. Mas devia ser preocupação de quem governa criar condições para que pelo menos haja uma maneira de captar essas pessoas que têm talento e, com melhor acompanhamento, podem fazer a diferença no nosso país.

 

Quando diz que quem não tem acesso à educação é quem tem acesso a recursos. Com que olhos vê o Sistema Nacional de Educação? Parece que, dentro dessa umbrella, não se vislumbra algo de bom.

Não necessariamente. Eu acho que o nosso Sistema Nacional de Educação faz o melhor que pode. Eu tenho visto muitas críticas feitas ao nosso sistema e que são justas do ponto de vista técnico, porque não há muita qualidade, que os professore não estão bem formados, o material não chega a tempo, mas o que perdemos de vista é o facto de que nós estamos a tentar fazer uma coisa impossível para o país como o nosso. Nós não temos os recursos financeiros que seriam necessários para garantir uma educação de qualidade.

 

No seu entender, olhando para estes serviços básicos e essenciais, a educação e a saúde, tendo em conta a sua precariedade e o modelo que o Estado assumiu, de prestar gratuitamente esses serviços, acha que é sustentável manter essa filosofia?

Apesar de todas as dificuldades que nós temos, houve muita coisa que foi feita na educação. Não significa dizer que todos saem perfeitos; o mercado do trabalho vai encarregar-se de aperfeiçoar as pessoas. O que nós devemos fazer, longe da discussão entre o educação pública e educação privada, é garantir que o Sistema Nacional de Educação não esteja sobrecarregado e, neste momento, há toda uma preocupação em sobrecarregar o sistema com melhoria aqui e ali, enquanto o que se devia fazer era simplificar o sistema, descentralizar a educação aos municípios, aos distritos e não sobrecarregar o Ministério da Educação, não que não seja capaz, mas é que vai ficar sobrecarregado e vamos continuar a ver os problemas que estamos a ver agora.

 

E como olha para o desafio da qualidade nos últimos episódios, em que veio ao de cima alguma fragilidade na gestão curricular, na elaboração dos manuais, houve erros grandes que passaram, houve atrasos, uma sucessão de factores que levam a uma percepção crítica do actual estágio da educação, como é que viu esses episódios?               

Eu vi esses episódios a três níveis. Primeiro, como uma manifestação do país que nós temos, a educação não é o único nível em que as coisas correm mal. O segundo ponto é a questão da responsabilização política. Não é possível governar sem responsabilização política. Quando nós temos um problema em algum sector tem que haver responsabilização política, mesmo que o ministro não seja culpado, essa é pessoa responsável por aquele sector. Então, quando nós vemos aquele material escolar com todos aqueles problemas, alguém tem que vir a frente e assumir a responsabilidade por não ter criado as condições para que aquele problema não acontecesse. E isso não é dizer que o(a) ministro(a) é incompetente, quando alguém assume responsabilidade está a mostrar que é competente. A terceira coisa que eu vi remete-me de novo à questão do projecto da independência, que é a questão de aparente ausência de direcção e orientação de quem governa o país, porque, quando correm esses problemas, devia haver uma grande reacção por parte de quem governa, podiam-se criar comissões parlamentares, pode-se fazer congresso de partido no poder para discutir o que precisa de ser feito ao nível do Aparelho de Estado para que ele funcione melhor. Quando isso não acontece, não há responsabilização política e ficamos com uma ideia mais ou menos clara de onde está o problema e não está na educação.

 

Apesar de se içar a bandeira da paz, Moçambique sempre viveu em conflitos e guerras, há cinco anos que o país vive o drama do terrorismo na região Norte, com mais incidência para a província de Cabo Delgado. Como defender a nossa soberania, integridade territorial e garantir a segurança?

Vai ser difícil porque somos um país vulnerável, por isso temos essa guerra. Não temos condições para ter um exército melhor do que nós temos, não temos condições para ter uma melhor polícia da que nós temos e, ao que tudo indica, não temos condições para ter um melhor Governo do que nós temos. Se nós reuníssemos todas essas condições, estaríamos numa melhor posição para olhar de uma e de outra forma por esta situação. E o que sobressai quando olhamos para Cabo Delgado é a ausência total de comunicação desse problema. Não se explica que haja essa guerra há cinco anos, em que pessoas perdem a vida todos os dias, em que pessoas tiveram que abandonar as suas casas e vilas inteiras; que não haja uma conferência de imprensa semanal, em que o ministro da Defesa ou o próprio Presidente da República diga: “passou-se isto aqui, mas estamos a fazer isso”. Não se justifica que um país em guerra há cinco anos tenha um Governo que convide forças estrangeiras para defender a soberania nacional sem nenhuma discussão larga, no país, sobre o assunto.

 

A questão em fundo é a presença de forças estrangeiras ou a ausência de discussão sobre a sua presença?

É a ausência de discussão. Não é uma questão do cumprimento de uma formalidade democrática, é uma questão de tornar forte o vínculo entre a sociedade e o Governo, primeiro, e, em segundo lugar, é uma questão de reforçar a mão do Governo, porque a ausência de comunicação significa que o Governo se considera autossuficiente para resolver o problema sozinho, mas não o resolve há cinco anos.

 

Nos últimos tempos, a comunicação do Governo foi de que já não existem bases de terroristas em Cabo Delgado, que eles são, agora, itinerantes e que as populações estão timidamente a retomar as suas residências. Persiste, agora, o desafio da garantia da segurança. De que forma sustentável se pode encontrar respostas a esta necessidade premente de garantia de sustentabilidade e até quando a garantia das forças estrangeiras neste unir de forças para este objectivo?

Para mim, o problema não é a segurança em si, é o que faz da segurança um problema. E o que faz da segurança um problema é uma questão política – como é que o sistema político está organizado. Eu não tenho nenhuma base para partir do princípio de que o que o Governo está a dizer agora seja verdade, nem estou a dizer que temos um Governo mentiroso. Mas temos um Governo que não comunica, sobretudo sobre este assunto, nunca comunicou bem. Quando ele vem e diz depois do problema ter-se tornado tão difícil, depois de muitos moçambicanos terem morrido, como sabemos, depois, de muita destruição, depois de muita coisa ter acontecido, o Governo vem e diz que agora a coisa está melhor. Eu não tenho bases para dialogar com uma pessoa que se comunica comigo dessa maneira. É um governo que está a demonstrar falta de respeito pela sociedade que lhe dá o poder que tem. É um Governo que está a mostrar falta de respeito pelas instituições republicanas, é um Governo que não está minimamente comprometido com este país, porque, se estivesse, teria criado canais de comunicação, teria feito uso das nossas instituições democráticas para abordar este assunto.

 

Moçambique inaugurou o seu assento no Conselho de Segurança das Nações Unidas, este ano. Tem dois anos para nos representar. De que forma o terrorismo pode estar na bandeira, não só a nível do país, como também no continente, e termos uma resposta satisfatória?

É uma grande honra para o país, é uma grande conquista para este Governo ter consigo ocupar esse lugar. É a primeira vez que isso acontece, é muito bom e todos nós devemos ficar orgulhosos. A participação num organismo como esse pressupõe alguma contribuição. Tenho visto alguns discursos que vão muito no sentido de falar daquilo que nós devíamos aproveitar estando lá, mas o discurso devia ser o que vamos levar para lá e que vai fazer diferença para o mundo. Tenho grandes dificuldades de saber qual vai ser a contribuição.

 

Qual deveria ser?

Para poder responder a essa questão, eu tinha que saber qual é projecto de independência que este Governo tem e não vejo nenhum. A gente vê sinais. Por exemplo, a atitude de Moçambique em relação à invasão russa é uma atitude de apoio à violação da soberania, de apoio à violação do direito internacional. Então, que contribuição é que um Governo que apoia um país agressor vai fazer nas Nações Unidas?

 

No seu entender, o que explica a posição que o país tomou?

Eu não entendo a posição de Moçambique e não entendo a posição dos moçambicanos que apoiam a invasão russa.

 

Não seria necessário compreender as razões para poder julgar?

Para eu compreender as razões, essas razões tinham que se manifestar. E elas não se têm manifestado. O que eu vejo são ressentimentos, legítimos, em relação à forma como fomos tratados pelo Ocidente. Por exemplo, nós, afinal, fomos colonizados por Portugal, membro da NATO, mas isso não é suficiente para assumir essa posição hoje em dia, perante os desafios que o mundo enfrenta. O que me preocupa mais é a favor de uma autocracia, a Rússia de Putin é uma autocracia. É um país autoritário. Então, quando eu vejo um Governo de um país, que pelo menos teoricamente apoia Putin, é preocupante, não para a Rússia, mas para Moçambique.

 

O último pacote legislativo introduziu as eleições provinciais e distritais que vão acontecer a partir de 2024 e este pacote não reúne consensos. Como é que aprecia o actual modelo e qual devia ser o modelo ideal de descentralização que o país devia seguir?

A descentralização é extremamente importante para o nosso país. Ela corresponde, um pouco, àquilo que tenho vindo a dizer sobre a necessidade que existe de reflectir sobre o nosso sistema político e um dos grandes problemas que o nosso país tem é o da descentralização. É o poder excessivo que o Governo central tem e que o torna fraco. Porque tem um poder que, teoricamente, implica a ideia de que ele pode fazer certas coisas que ele não é capaz de fazer e, quando há esse fosso entre o que sou capaz de fazer e aquilo que eu não consigo fazer, eu fico fraco e vulnerável ao assédio, que é o que conseguimos ver em Cabo Delgado. Aquilo é a manifestação da natureza frágil do nosso Governo. Então, nós precisamos de descentralizar, precisamos de ter a coragem de devolver o poder às comunidades. Temos que confiar muito mais nas pessoas e isso significa devolver o maior número de competências aos níveis mais baixos, às localidades, aos distritos e aos municípios. E temos que ser consistentes e coerentes nisso, não nos podemos distrair. Houve uma grande distração, nos últimos anos, por causa da preocupação do conflito entre a Renamo e o nosso Estado, a questão da descentralização foi resolvida com a complicação da governação local. Temos um governador que é eleito pelo povo e depois temos um secretário de Estado a atrapalhar a vontade do povo, a atrapalhar o governador que tem o mandato do povo para governar. Então, destruiu completamente esta ideia de descentralização que era, na sua essência, necessária e legítima.

 

Então, no seu entender, o caminho para a descentralização em Moçambique deveria ser por via da autarcização?

Exactamente. Nós temos que ter a coragem de abandonar o gradualismo e ir mais longe do que isso, porque esta é a única maneira que nós temos de, de facto, garantir cidadania às pessoas.

 

O que seria, exactamente, ir mais longe?

Devíamos criar condições para que, ao nível das vilas, das cidades, dos distritos e de todo o tipo de aglomerações que temos no país, houvesse governação local e que essa governação partisse dessas aglomerações e que, na melhor das hipóteses, a existência desses órgãos fosse garantida pelas próprias aglomerações e não através daquilo que o Governo central manda.

 

Como é que vê a evolução no contexto em que as coisas estão definidas? Há o projecto das autarquias, o Governo vai aumentar a fasquia de 53 para 65 municípios, mas também caminhamos para as eleições distritais. Como é que este projecto das autarquias vai continuar a materializar-se neste novo figurino político.

Eu não sei se é o modelo ideal pensar num certo gradualismo, na realização da autarcização, pensar num papel ainda fundamental sobre o Governo, porque o Governo central parece que ainda vai continuar a ter um papel central, sobretudo ao nível do financiamento dessas instituições. Eu não sei se seria mais prudente pensar em um modelo único que partisse simplesmente da ideia de autarcização e incluísse nesse modelo, talvez, a necessidade de que o próprio Governo central tem de se afastar de certas fontes de receita para que essas receitas que muitas vezes são locais, a exemplo de Cabo Delgado. Esta província, com as explorações que estamos a ter lá, num projecto ideal de autarcização seria uma das províncias mais ricas do país. A única coisa que nós deveríamos procurar garantir é que houvesse uma certa justiça, que se procurasse saber o que e como é que as recentais que uma determinada região tem podem servir para equilibrar certa coisa. É o que se faz em todos os países, na Alemanha é assim. Há regiões mais pobres do que as outras. Então, as que são mais ricas têm uma certa obrigação de fazer uma certa transferência para as outras, mas não é o Governo central que acumula tudo primeiro e depois distribui.

 

Olhando para o processo de DDR, que estagnou já na recta final, por causa do pagamento de pensões, como olha para este dossier desde a sua génese e as possibilidades de sucesso no quadro da sustentabilidade de pagamentos de pensões?

Eu acho que esta questão da Renamo é uma que vem de muito longe, não começa com o Presidente Nyusi, não começa com o Presidente Guebuza, nem começa com o Presidente Chissano. Começa com a decisão que se toma em Moçambique de ter um Estado de partido único, que faz com que algumas pessoas não se sintam parte deste país e, por más ou boas razões, essas pessoas entram em insurgência. O que acontece é que a gente procura resolver esse problema através da abertura do sistema político e a gente fez isso em 1990. A gente faz isso, mas as mentalidades não mudam. Aquela mentalidade da Frelimo de que “só o nosso projecto é que é certo para este país” não mudou. Então, houve menos flexibilidade da parte da Frelimo, ao longo de todos os ciclos governamentais, depois que nós tivemos uma constituição multipartidária que investiu muito mais na protecção das suas próprias prerrogativas, o que fez com que a Renamo se sentisse cada vez mais alienada. Qualquer solução para este problema tem que passar por uma mudança de mentalidade ao nível de quem governa Moçambique e esta mudança de mentalidade vai implicar a criação e o fortalecimento de verdadeiras instituições republicanas. Temos este processo agora com o actual Presidente e ele beneficia-se, simplesmente, do desaparecimento físico de Dlhakama. É por isso que não tivemos tanta violência.

 

Como espevitar uma atmosfera favorável para a mudança de mentalidade dos dirigentes políticos?

É promover uma esfera pública crítica, que se interessa por interpelar seriamente os processos políticos do país. Isso é um processo muito longo. Não é um processo de um ano, não é de dois anos. Mas só uma esfera pública presente, uma esfera pública que discute, que interpela o Governo, mas também instituições republicanas que se assumem como tais. Nós temos que ter deputados que se vêem como representantes do povo e não como representantes dos seus próprios partidos. Se nós tivermos esse ambiente de debate, teremos maiores possibilidades de melhorar a mentalidade dos nossos governantes.

Sente que estamos perto ou longe de seguir esse caminho?

Eu acho que, nesses últimos oito anos, ficámos muito longe disso. Penso que nós tivemos um Governo que, ao nível da promoção da crítica e da promoção da cidadania, deixa muito a desejar.

 

O Governo ousou avançar com uma reforma salarial ao nível do Aparelho do Estado que, desde o início da sua implementação, foi criando dissabores e levou o Governo a repensar e redesenhar este projecto e agora apresenta uma solução aparentemente definitiva. No seu entender, qual deve ser a estratégia para desenhar uma reforma salarial no Aparelho do Estado?

É a estratégia que deve ser usada para todo o resto que o Governo faz, que é discutir isso publicamente, levar esse projecto e permitir que seja discutido no Parlamento e pôr os ministros a conversarem com gente que entende da matéria. Há muita gente entendida na matéria neste assunto.

 

Mas, por essa via, que resultados podemos lograr se o doutor Elísio Macamo também tem o entendimento de que os deputados no nosso país não representam o povo, representam os seus partidos? Que resultado se pode alcançar, qual será a finalidade do Parlamento?

O problema não é a TSU, não é a segurança, nem a descentralização. É a cultura política, é o sistema político. Toda a nossa reflexão devia ser a esse nível, todo o resto são detalhes. Eu posso ter a minha opinião técnica sobre a TSU, sobre o terrorismo, mas, enquanto não existir um contexto dentro do qual tudo isso possa ser discutido de forma útil e com benefício para o próprio Governo, não havemos de estar a fazer nada. É por isso que eu digo que o grande desafio não é encontrar a melhor solução técnica para um problema; é saber exactamente qual é o problema. E, neste momento, o problema não é a TSU, é como nós gerimos o nosso país.

 

Quando falamos da gestão do país, também vem ao de cima a questão da boa governação, da ética, da transparência, combate à corrupção que também são elementos-chave que a Frelimo aspira ter como o norte da sua governação e constam das teses que levou para o último Congresso. Que respostas esboçar para resolver estes problemas no nosso país?

A boa governação é um ideal e nós sempre vamos ter isso como ideal, independentemente das nossas realizações ao nível da governação. Eu não gostaria de sugerir a ideia de que, se nós tivermos boa governação, todo o resto vai estar bem, porque a boa governação vai ser sempre a ideal. Para mim, o que é realmente mais importante é reflectir mais sobre, por exemplo, o que significa governar um país. Governação é um conceito, boa governação também é um conceito. Nós podemos reflectir sobre isso nem podemos identificar alguns pontos que a classe política pode integrar na sua própria reflexão. Para mim, boa governação significa, num primeiro momento, definir um objectivo e esse objectivo corresponde a alguma ideia que eu tenho daquilo que tem valor para mim. Então, por exemplo, no meu caso e no caso de quem lutou pela independência deste país, o valor mais essencial que nós temos é a garantia da dignidade humana de todos os moçambicanos, que todos os dias é violada. A gente tem consciência de que este projecto de independência ainda não foi levado ao seu termo. E o que eu quero fazer para chegar lá, preciso de medidas políticas para lá chegar. Mas o essencial da governação não são essas medidas, são condições que eu tenho que criar para que essas medidas tenham o efeito desejado. É esse tipo de discussão que nós não fazemos em Moçambique. O problema da TSU não são as questões técnicas que muita gente está a discutir, é que não houve aparentemente uma reflexão sobre as condições que deviam ter sido criadas neste país para esta medida, este nivelamento de salários. Não houve a preocupação de saber se “será que eu tenho as pessoas certas, as instituições certas e se eu não tenho, o que eu deveria fazer para que, no fim, isto surta efeito”, é o mesmo que não acontece em todas outras coisas.

 

Se os dirigentes públicos, por algum motivo, não cumprem esta ética de boa governação, em que medida é aceitável dizer que a sociedade deve saber perdoar e seguir em frente, enquanto o objectivo final é garantir a estabilidade e evitar conflitos?

Depende da gravidade das coisas. Eu penso que temos que usar o princípio de que cada caso é um caso. Mas temos um outro princípio que é um pouco mais geral e mais útil para estas questões que nós precisamos de acautelar, é o princípio de responsabilidade política. Nós temos que ter um sistema político que responsabilize as pessoas. Esse é o perdão da sociedade.

 

Qual é o seu sonho como moçambicano?

O meu sonho como moçambicano é ver o projecto de independência cada vez mais realizado e volto a repetir, esse projecto é a garantia da dignidade de todos os moçambicanos.

 

De que forma sente que está a dar o seu contributo para a concretização deste projecto de independência?

Sinto que estou a dar o meu contributo através do meu exercício de cidadania e faço esse exercício através da interpelação crítica de quem nos governa e eu gostaria que houvesse ainda mais moçambicanos que tivessem a coragem da cidadania.

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