O corpo do defunto Bigwana poderia sugerir, para quem o visse passar, que ele era um indivíduo associado ao pugilismo. Isto é, aquele físico era o mais apropriado, o melhor talhado para aquele género de modalidade desportiva. Alto, espadaúdo, com os braços longos e musculosos, e umas queixadas taurinas outra coisa não poderia ser senão um verdadeiro gladiador. Até alguns, muito mais franzinos do que ele, eram lutadores de renome. Ele poderia ser um campeão incontestável no ringue do pavilhão da Malhangalene.
Outra linha de pressão provinha lá da empresa. Um colega sugeriu:
“ Olha lá “Bigwana”, porque razão não praticas boxe? Tens um corpo para seres um campeão”.
“ Com aquilo que tenho cá dentro de mim, era capaz de matar aquela malta toda. Isso não dá para mim. Para ser campeão na Malhangalene nem precisava de treinar”, assim ele respondia, a encolher os ombros com indiferença.
Essa conversa vinha a propósito de um espectáculo que, manhã após manhã, se oferecia aos moradores da zona, a dum pugilista de nome “Pablo Sam”, que gozava de fama de ser um lutador como poucos havia em todo o subúrbio. Em fama e habilidade só era superado pelo Carlos Fonseca “o Gato” e pelo Francisco “Cicatriz” Bila. Eram estes os baluartes do boxe nos ringues de boxe da capital, as figuras de referência dos desportistas de todo o subúrbio. Se o primeiro era notório pela eficácia dos seus golpes e pela graça dos seus passos em desnortear os adversários, para depois liquidá-los com upper-cuts e jabs, o segundo só sabia fazer uma coisa: bater, bater mais e bater cada vez mais, para subjugar os adversários à força dos seus punhos. Era uma temeridade subir ao ringue e desafiar adversários deste calibre.
O “Pablo Sam”, de nome verdadeiro Paulo Samuel, adquirira, ou assim se intitulava porque o apodo era sonante e mais à altura de um pugilista de reputação internacional, como esses cujas imagens se publicavam em magazines desportivos da África do Sul. O seu palmarés era impressionante. Na sua carreira oficial de vinte e três combates, com adversários que_ diga-se em abono da verdade_ até nem eram uns paraplégicos, somara já vinte vitórias, das quais dezoito por knock-out, dois nulos e uma derrota. Esta foi unanimemente atribuída à batota de um árbitro que concedeu a vitória a um boer, com o qual aquele fizera prévios arranjos. Vários empresários abordaram-no por muitas vezes para com ele estabelecerem contratos dos quais ganhariam receitas muito compensadoras. O “Pablo”, porém, não era pedra mole, não, mas sim dono do seu talento, recusava-se a vender-se por meia dúzia de centavos. Tinha de amadurecer, ganhar experiência. Depois, ver-se-ia. Também conhecia histórias de colegas que prematuramente se expuseram nos ringues, com a pressa de ganhar fama e dinheiro. As aventuras foram-lhes fatais. Uns ficaram definitivamente incapacitados, não só fisicamente, como também intelectualmente. Hoje não passam de farrapos humanos que não conseguem valer-se a si próprios. O tempo para vôos mais altos virá. E esse não estava assim tão distante. A fama granjeada dos combates subia, as notícias sobre as suas capacidades eram manchetes nos jornais. Ganhou muito proveito sim, deu muita surra e apanhou outras mais. Juntou mais medalhas e honras do que dinheiro. E nisto, como em qualquer outra actividade, quanto mais se perde mais obstinado se fica em vencer, naquele ciclo vicioso dos desesperados.
O “Pablo” era muito bem quisto entre as raparigas. Famoso e bem falante, não havia rapariga da zona, e até doutras bandas além-Chamanculo, que não suspirasse só de ouvir pronunciar o nome dele. E assim, às tantas, ficou noivo. Esse foi o preço de ter engravidado uma admiradora, uma jovem chamada Rabeca, filha de pais muito conservadores e exigentes: Estes exigiram casamento, e sem demora! Dinheiro para o lobolo e para as cerimónias do casamento não abundava nos cofres do atleta. Abundava sim a vontade de levar avante o sentido de responsabilidade, o sonho de ser um esposo exemplar e um pugilista de renome internacional. Era a pressão da necessidade que se cruzava com interesses desportivos.
E chegou o dia aprazado para o título de campeão na categoria de pesos médios do pugilismo na província de Moçambique.
O “Pablo” era figura de cartaz que deixara no tapete contendores como o lustroso Carlos Fonseca; conseguira resistir à contundência dos punhos do Francisco “Cicatriz” Bila, terminara a carreira do célebre “Surdo-Mudo”, o Ximbevevana, um lutador bravo que emergiu dos becos do bairro Thlavana, surdo-mudo no real da vida, que não escutava queixumes de dor dos oponentes, nem aos mesmos dirigia palavra. As únicas destas que conseguia balbuciar eram …KO!!!…KO!!!…KO!!! Diziam que quando começasse a sovar não sabia parar, ou porque não escutava os sons do apito do árbitro ou porque se encontrava possesso dalguma ferocidade animal. Mas o “Pablo”, numa contenda oficial, conteve-lhe os ímpetos e colocou um ponto final àquela carreira com uma “patada” na testa que devastou o oponente e mergulhou-o numa inconsciência total e profunda; um punho demolidor, um verdadeiro coice de mula que acrescentou um largo lanho no rosto já maltratado do “Surdo-Mudo”.
A esposa do “Pablo” ia no fim da gravidez que precipitou aquele matrimónio. Formavam um casal feliz e equilibrado, com todos os sonhos, e alguns mais, que todos os jovens casais podem ter.
Ia no auge a carreira do nosso herói. Foi com toda a ansiedade que todos aguardavam o resultado daquele combarte, de que já se faziam parangonas nos jornais desportivos da capital. Era, nem mais nem menos, um duelo de campeões: Mapepa “A Serpente do Chiveve” versus “Pablo Sam”. Cartazes a cores anunciavam o histórico encontro e mostrava os opositores, frente a frente, com os punhos enluvados cruzados. Era uma festa desportiva que prometia muita emoção.
O Mapepa era, por assim dizer, a revelação do momento, um fenómeno raro no pugilismo provincial. Residia na cidade da Beira, onde era aclamado como o vencedor antecipado daquele combate. Deixara derrubados sobre o tapete adversários de grande gabarito, célebres figuras do boxe regional e expoentes máximos do pugilismo da Confederação das Rodésias, nomeadamente, o campeão malawiano Joe “The Killer” Banda, o consagrado zambiano Black “The Mutilator” Skukuma e o poderoso John “Wounds” Ncube, de Salisbúria, na Rodésia. E aqueles não lutavam, eram feras humanas soltas nos ringues. Mapepa, com as suas técnicas de defesa e estratégicamente rápidos contra-ataques, conteve os ânimos dos oponentes e levou os troféus para casa. Era o herói do centro da Província.
Naquela noite o pavilhão do Grupo Desportivo da Malhangalene superlotou de espectadores. Assistência assim nunca se vira antes, mesmo em dias de luta-livre tamanha presença de gente era uma raridade. O que as pessoas queriam era assistir dois homens à pancada, e não embrulhar-se um no outro a fingir que se golpeavam, como faziam o El-Grego, o António El Índio Apache, o Cowboy Thompson, o Yul Breyner, o Daydone e outros. Mesmo boxeurs brancos de renome como o Beny Levy, o Carlos Gomes, o Larsen, o temido Luis Eugénio “Xangai”, estavam lá entre os espectadores para ver e crer. “Não!_diziam_ aquele será um terçar de punhos a sério, à verdadeira moda antiga”. Aclamações de apoio romperam a surdina das conversas. Fizeram-se apostas: Mapepa!!!… Mapepa!!!.. .Pa-blo!!!, Pa-blo!!!…
A mesa do júri deu o gong para o início da contenda.
Tentar descrever o que foi aquele encontro histórico é o mesmo que metermo-nos na aventura impossível de resumir em duas palavras as rivalidades entre dois grupos étnicos. Os historiadores diriam que aquela era a reedição dalgum encontro entre gregos e troianos, entre ngunis e portugueses, entre lusitanos e castelhanos, eu sei lá! Era dar e apanhar. Os punhos de cada um dos contendores – que não eram nenhuns berlindes – desabavam no corpo do adversário como se fossem os projécteis de catapultas de guerra. Estes grunhiam a cada golpe; porém, sempre avançavam ao encontro do adversário, como se as dores fossem as fontes doutros ânimos.
A violência da luta no recinto do ringue transbordou para as bancadas. Cenas de pugilato começaram a registar-se em alguns focos. Disseminaram-se por outros pontos. Era o contágio do instinto de violência reprimido que se soltava. A barafunda foi total: todos agrediam a todos, e cada qual por si, todos os meios eram úteis para infligir ao vizinho de lado o “castigo” que merecia e puni-lo por não apoiar o seu favorito boxeur.
O combate durou os dez assaltos regulamentares, entremeados de muita animação na assistência.
Os rostos tumefactos dos opositores eram transfigurações, máscaras disformes cobertas de crostas de sangue, irreconhecíveis.
O momento final foi o gesto do juiz de colocar-se entre os opositores e erguer no ar o seu braço esquerdo. E com este, o punho direito do…” Pablo Sam”!
A ovação que se seguiu foi a de aclamação da vitória do lourençomarquino! A multidão invadiu o ringue e levou aos ombros o seu herói e gritava pelo seu nome.
Uma cantiga ecoou na atmosefra do pavilhão para dar por finda aquela que foi uma das mais empolgantes e sangrentas sessões de boxe que jamais se registaram no ringue da Malhangalene.
Sedimentadas as emoções, sigamos o percurso do herói, porque dos vencidos não reza a História. O Mapepa – só uma linha a seu respeito, e conforme o que depois se propagou nos jornais – pediu desforra, uma jornada para tirar-teimas e pôr cada pedra no seu lugar. Porque, segundo ele, campeão da categoria havia um só: ele próprio.
O reencontro não chegou a consumar-se pelas razões que em seguida se expõem.
*
Logo a seguir àquela batalha no ringue da Malhangalene, os dois contendores foram encaminhados ao Banco de Urgências do Hospital Miguel Bombarda, porque assim era por rotina e porque os clínicos que assistiam aos pugilistas assim o entenderam. Assim entenderam porque ambos os protagonistas, o Mapepa e o Pablo não se encontravam em condições de regressar aos respectivos domicílios, dada a gravidade das lesões que mutuamente se infligiram.
“Pablo” era o mais contundido dos dois, razão porque foi admitido na Sala de Reanimação. O seu estado inspirava mais cuidados. Durante o internamento a sua condição deteriorou-se. Entrou em delírio, num estado de confusão mental. Exaltava-se, o corpo convulsava como se estivesse em pleno ataque de epilepsia. Pronunciava nomes e proferia frase incoerentes. No fim daquela madrugada entrou num estado de coma profundo. Depois de confereciarem os neurologistas diagnosticaram-lhe uma “comoção cerebral pós-traumática”.
Foi longa e tortuosa a viagem do “Pablo Sam” aos recessos da sua vida, às trevas dum universo cheio de imagens de pessoas transfiguradas, silhuetas que, por umas vezes identificava, outras não, mas que o cercavam e aplaudiam a sua dança num palco montado no quintal da sua habitação. Nessa representação tinha por parceiros gigantes de braços semi-amputados que desferiam os cotos no ar, e de cujas bocas invisíveis entoavam estribilhos onde abundava o seu nome… Pablo!!!… Pablo!!!… De repente fazia-se luz nos sonhos, abria os olhos. O que descortinava da neblina era a figura da esposa Rabeca e do filho Paulinho, ambos a fugirem de si em correrias desenfreadas. Ele perseguia-os, ansioso; corria atrás das suas sombras que se esfumavam paulatinamente à distância.
E durou uma semana o coma do “Pablo”. Dele emergiu como se ingressasse num universo cujos horizontes desconhecia. As imagens que detectava assemelhavam-se às dos pesadelos durante , as mesmas que vira durante a treva da inconsciência. Aquelas, porém, eram concretas. Via e reconhecia as feições das pessoas, escutava as suas vozes, o choro do filho, os lamentos da Rabeca e dos familiares que o rodeavam no quarto da residência, entravado naquela cadeira de rodas que, desde que teve alta do hospital passara a ser o seu meio de locomoção.
O mundo que enxergava era distorcido, as pessoas reais, mas os objectos ao redor, o saco cheio de areia pendurado ali no ramo da mafurreira, era o símbolo do que fora o sonho transportado naquela viagem para a glória. E essa terminara no ringue da Malhangalene, tão curta a viagem, como tão efémero fora o sonho.
Protegido pela sombra da árvore e paralisado da cintura para baixo, simulava golpes no ar… jab… upper-cut… esquerda… direita..; balbuciava, com a língua entaramelada de formigueiro. Diante dos olhos embaciados vislumbrava a figura do adversário, o Mapepa, e “esmurrava-o”… jab… upper-cut… jab… esquerda… upper-cut…
Pablo Júnior, o Paulinho, era um espectador diário, atónito à execução dos truques e à cadência dos passes do pugilista que era o seu pai, o senhor Paulo Samuel Langa, o ícone do pugilismo suburbano “Pablo Sam”.