A boa intenção não pode substituir a coragem.
É preciso coragem para enfrentar o silêncio, mas é preciso ainda mais coragem para enfrentar o ruído da rendição disfarçada de civismo. Em Moçambique, atravessamos um momento histórico perigoso, em que a crítica política se dissolve em selfies com opressores e o conceito de civismo é confundido com submissão. A rendição veste o traje elegante da boa intenção. Mas não há conciliação possível com quem nega a tua dignidade. E não há civismo possível quando os direitos são violados à luz do dia por um regime que, historicamente, matou os seus próprios filhos.
A FRELIMO, na sua génese como movimento de libertação, nasceu sob o signo da luta popular.
Mas essa mesma luta, uma vez institucionalizada, foi capturada pelo autoritarismo e pelo controle ideológico. Samora Machel, figura complexa, foi também vítima do próprio sistema que ajudou a criar. A partir do momento em que a FRELIMO se transformou em partido único, deixou de ser libertadora e passou a ser opressora. O sangue dos seus, dos que divergiam, foi derramado em nome da unidade nacional. E, com isso, uma nova forma de colonialismo interno foi estabelecida — uma colonização ideológica onde se incutia no povo que pensar diferente era traição.
É urgente questionar o que é ideologia — não como abstração académica, mas como instrumento de dominação. Ideologia é a lente através da qual se legitima o poder, se cria o inimigo e se forma o cidadão obediente. É o mecanismo através do qual se convence a maioria a servir uma minoria. Em Moçambique, a ideologia da FRELIMO construiu um Estado à sua imagem, onde oposição era sinónimo de guerra, e divergência, um crime de lesa-pátria.
África não precisa de políticos sem ideologia. Esse discurso pseudo-neutro é uma falácia que apenas esconde o desejo de agradar a todos e evitar o confronto com o sistema. Ser político é assumir posição, é ter doutrina e visão clara de mundo. Como disse Jean-Paul Sartre: “A omissão é também uma escolha”. Ao rejeitar compromissos ideológicos, o sujeito político torna-se vulnerável à cooptação e à lógica do mercado eleitoral.
Neste quadro, as chamadas sociedades civis foram capturadas. As que surgiram de forma espontânea foram destruídas ou cooptadas. Hoje, muitos dos nossos debates, encontros e até ativismos são realizados entre os mesmos de sempre, com os mesmos fundos, as mesmas agendas e, frequentemente, os mesmos partidos por trás. Não se pode construir uma nação crítica a partir de um ativismo submisso. O ativista que só critica um lado — o poder — sem questionar também a oposição que nada propõe, está apenas a fazer parte do jogo.
O verdadeiro ativismo é apolítico e antipartidário. Não porque ignore a política, mas porque rejeita a partidarização da justiça social. A cidadania crítica nasce da ruptura com o sistema — não da acomodação. Como escreveu Frantz Fanon: “Cada geração deve, na relativa opacidade de seu tempo, descobrir sua missão, cumpri-la ou traí-la.”
É preciso, pois, definir o que é oportunismo político: é a capacidade de adaptar discursos conforme o contexto, abandonando princípios em nome de ganhos pessoais ou de poder. Isso não é exclusividade do partido no poder; é também um vício dos que se dizem oposição.
O caso recente de Venâncio Mondlane é emblemático. Um homem que diz querer representar todos os moçambicanos, mas que se fotografa sorridente com André Ventura, político europeu que nega a humanidade de imigrantes, africanos e muçulmanos. Isso não é civismo. É rendição.
É uma entrega simbólica aos inimigos do povo, feita em nome de uma suposta inclusão. Mas inclusão sem crítica é cumplicidade. E neutralidade frente à opressão é tomar o lado do opressor.
É fundamental analisar tanto o sistema quanto os que se opõem a ele. Não basta criticar a FRELIMO. É preciso criticar também os partidos de oposição que falham em construir propostas, que se perdem em rivalidades internas, que se alinham a ideologias coloniais e que não conseguem formar uma frente unida. A falta de união entre os partidos políticos em Moçambique ou África não é apenas uma fraqueza estratégica — é uma traição histórica ao povo que clama por mudança. Não basta querer tomar o poder; é preciso ter um projecto de país.
A história da FRELIMO, dos movimentos de libertação até aos dias de hoje, é marcada por contradições. Do espírito revolucionário dos anos 1960 à morte de Mondlane e Magaia, passando por Samora e os dissidentes da luta armada que não estão na lista da história oficial, o país foi sendo tomado por uma nova elite que replicou as mesmas formas coloniais de dominação: clientelismo, tribalismo, corrupção e o uso da lei como instrumento de opressão.
E hoje, o que devem fazer os partidos? Os partidos têm uma missão urgente: repolitizar a sociedade. Isso não se faz com discursos demagógicos ou alianças oportunistas. Faz-se com formação, com trabalho de base, com propostas claras. É preciso combater o regime autoritário e corrupto não apenas com emoção e populismo, mas com estrutura, com consciência e com acção organizada. Devemos mostrar ao mundo que o movimento pela mudança está no terreno.
Se o sistema vigente é neocolonial, então urge imaginar um novo sistema. Não basta tirar o Chapo ou o Forquilha depois de cinco anos. É preciso pensar num novo pacto social, num modelo de governança enraizado nos valores comunitários africanos, mas atento à complexidade contemporânea. Não se combate o império apenas com ressentimento. Combate-se com visão.
Hoje, mais do que nunca, precisamos de um novo começo. E isso não virá dos partidos como estão, mas de uma nova consciência colectiva, de uma sociedade civil que pense com autonomia, que organize encontros livres, que rejeite o partidarismo cego e que esteja disposta a desobedecer em nome da justiça. Como disse Albert Camus: “O homem revoltado é aquele que diz não. Mas se recusa a abdicar.”
A política moçambicana, se quiser renascer, terá de romper com o seu passado de rendição. Terá de reencontrar no povo o seu centro. E o povo, por sua vez, terá de deixar de ser espectador e voltar a ser protagonista. Não através de eleições manipuladas, mas através da ocupação consciente dos espaços públicos, do questionamento sistemático do poder e da construção de um novo imaginário político.
A liberdade não se negocia com quem lucra com a escravidão. E a democracia não se constrói com selfies. Constrói-se com luta, com memória e com uma crítica radical que começa por perguntar: O que estamos dispostos a perder para finalmente sermos livres?