Espaço de análise: Alberto da Cruz e Egídio Chaimite
INTRODUÇÃO
No dia 10 de Setembro de 2025, foi oficialmente lançada a fase de implementação do Diálogo Nacional Inclusivo, apresentado como resposta à crise política que se desencadeou após as eleições de Outubro de 2024. O evento contou com a presença do Presidente da República, Daniel Chapo, de partidos políticos com e sem assento parlamentar, bem como de representantes da sociedade civil. Foi descrito como um momento histórico, supostamente destinado a restaurar a confiança política e a inaugurar um novo ciclo de reconciliação nacional.
Na mesma ocasião, a Comissão Técnica para o Diálogo Nacional Inclusivo, liderada por Edson Macuácua, apresentou a metodologia que deverá orientar todo o processo. É precisamente sobre essa metodologia que este artigo se debruça, partindo do entendimento de que ela será determinante para definir se o diálogo se traduzirá num exercício genuinamente inclusivo ou apenas numa encenação concebida para reforçar a legitimidade do poder instituído.
Destaca-se que a forma como o diálogo foi desenhado e apresentado revela um conjunto de dilemas estruturantes: entre a promessa de pluralismo e o risco de captura político-partidária; entre a participação cidadã e a sua possível instrumentalização simbólica; entre a ambição declarada de reconciliação e o desgaste social que continua a corroer a confiança. É nesse espaço de tensão – entre expectativa e suspeita – que se situa a reflexão desenvolvida neste texto.
CONTEXTO
As eleições de Outubro de 2024 foram o rastilho de uma crise que já se evidenciava. O processo, marcado por denúncias de irregularidades, contestação popular e repressão de manifestações, abalou ainda mais a confiança nas instituições eleitorais, já fragilizada em anos anteriores. Para muitos cidadãos, a sensação foi clara: o seu voto pouco influenciava os rumos do país e a democracia permanecia refém da lógica dos detentores do poder.
O clima de desconfiança rapidamente transbordou para as ruas. O assassinato de jovens manifestantes em confrontos com a polícia intensificou protestos que, começando de forma pacífica, degeneraram em violência generalizada. O resultado foi devastador: centenas de mortos, destruição de infra-estruturas e uma economia paralisada durante semanas. A violência não surgiu do nada; foi a expressão concentrada de frustrações acumuladas, de exclusões persistentes e de um sentimento generalizado de abandono.
Foi neste ambiente de ruptura que, em Março de 2025, os principais partidos com assento parlamentar assinaram o Compromisso Político, transformado em lei no mês seguinte. Mais do que um acordo formal, tratou-se de uma tentativa de travar a espiral de violência e de abrir um espaço para que os moçambicanos pudessem discutir com frontalidade os problemas estruturais do país.
O diálogo nasce, assim, num contexto de crise múltipla: política, igualmente associada à perda de legitimidade das instituições; económica, dada a pobreza extrema explícita, desemprego juvenil e desigualdade persistente; e social, pela fome, pela baixa qualidade da educação e por um sentimento crescente de repressão e impunidade. Mais do que indicadores isolados, trata-se de um ambiente dominado por uma percepção generalizada de exclusão: exclusão dos processos de decisão, da participação efectiva na vida pública e do acesso justo aos benefícios económicos que o país possui. Entre promessas de democracia e a realidade da sobrevivência, o fosso tem-se alargado.
UM MÉTODO CONTRADITÓRIO PER SI?
O texto, em termos gerais, procura transmitir ambição e modernidade. Evoca pluralismo, transparência, igualdade de género e participação cidadã como fundamentos. Para concretizar esses princípios, organiza o diálogo em diferentes níveis: uma Comissão Técnica responsável pela coordenação; grupos temáticos para analisar áreas específicas como governação, descentralização e coesão social; e um conjunto de mecanismos de consulta, que vão desde rádios comunitárias a debates televisivos e plataformas digitais. No papel, transparece uma construção sólida, alinhada com boas práticas internacionais de democracia participativa.
Porém, é justamente nos detalhes que surgem as fragilidades. A Comissão Técnica, embora faça referência à sociedade civil, é dominada por partidos políticos, os mesmos que assinaram o Compromisso Político. Ou seja, o projecto de diálogo nasce já sob monopólio das mesmas forças que sempre controlam a arena política. Isso coloca em causa a promessa de pluralismo: como esperar inclusão genuína, se a condução está restrita a actores que sempre beneficiaram da exclusão?
De igual forma, os mecanismos de tomada de decisão levantam problemas. O documento valoriza o consenso, mas permite que as decisões sejam tomadas por maioria qualificada de três quartos. À primeira vista, parece um mecanismo que evita imposições apressadas, mas, num contexto de forte assimetria, em que um partido domina largamente o sistema político, esse dispositivo pode transformar-se numa simples formalidade: em vez de forçar compromissos, apenas confirma a força da maioria existente.
Os grupos de trabalho temáticos poderiam, em teoria, ser espaços de abertura e diversidade. Contudo, a metodologia não esclarece quem escolhe os membros nem com base em que critérios. Essa ausência de transparência abre a porta para que esses grupos se tornem extensões técnicas das elites políticas, e não fóruns genuínos de debate plural.
A promessa de participação cidadã é talvez o elemento mais publicitado. Fala-se em rádios comunitárias, debates televisivos e plataformas digitais como canais de escuta. No entanto, aqui se coloca um dilema antigo: ouvir não é o mesmo que influenciar. Sem mecanismos claros de devolução, relatórios que mostrem como as contribuições da sociedade são incorporadas ou descartadas, a participação corre o risco de ser apenas simbólica, ou mera manipulação, no sentido amplamente abordado por Sherry Arnstein (1969): uma forma de inclusão aparente que legitima decisões já tomadas, sem redistribuição real de poder ou capacidade de influência.
A própria representatividade está limitada. O diálogo exclui de forma explícita novas forças políticas ou figuras independentes que, embora fora do Parlamento, ganharam relevância na cena pública. Essa exclusão transmite a ideia de que o processo é fechado entre “os de sempre”, e mina o potencial renovador que um diálogo desta natureza deveria ter.
Finalmente, há a questão da monitoria independente. O documento fala em transparência, mas não estabelece mecanismos de fiscalização externa, que envolvam universidades, organizações cívicas ou observadores internacionais. Sem esse escrutínio, o processo corre o risco de se encerrar sobre si próprio, validando apenas as dinâmicas das elites que o controlam.
Em síntese, a metodologia articula uma retórica ambiciosa, mas está marcada por contradições estruturais. Proclama pluralismo, mas preserva a centralidade dos partidos. Invoca consenso, mas admite mecanismos de decisão que podem apenas reforçar hegemonias existentes. Promete participação, mas não assegura que esta tenha efeitos vinculativos ou capacidade real de influência. O dilema torna-se evidente: ou o processo é conduzido com criatividade institucional e honestidade política, rompendo com a lógica histórica de exclusão, ou será lembrado como mais um ritual legitimador, incapaz de responder às expectativas e necessidades concretas de um povo ávido de soluções concretas.
QUAL CREDIBILIDADE?
O dilema central do Diálogo Nacional Inclusivo decorre do fosso entre a ambição anunciada e as condições políticas e sociais que o enquadram. A metodologia apresentada aparenta sofisticação, mas, confrontada com a realidade moçambicana, revela fragilidades que podem comprometer o processo desde o início.
O primeiro obstáculo é a credibilidade. A confiança nas instituições está profundamente abalada, sobretudo após a violência que marcou o pós-eleições de 2024. A repressão de manifestações e a morte de centenas de pessoas alteraram de forma duradoura a percepção popular do Estado e dos partidos políticos. Neste cenário, qualquer iniciativa conduzida pelas elites enfrenta cepticismo imediato.
A própria condução do diálogo por estruturas lideradas pelos mesmos actores que protagonizaram a crise reduz a sua legitimidade social. Mesmo que se proclame transparência, paira uma suspeita persistente de controlo e manipulação, alimentada por experiências anteriores de “participação” apenas formal. Assim, antes de arrancar plenamente, o processo confronta-se com uma questão essencial: como gerar confiança numa sociedade desconfiada e ferida?
Este défice de confiança liga-se ao risco da captura política. O diálogo pode transformar-se num mecanismo de validação de decisões já tomadas pelo poder dominante, em vez de constituir um espaço de verdadeira negociação. A história política recente mostra como a oposição tem sido fragilizada e frequentemente neutralizada, o que reforça a percepção de que o modelo adoptado tende a perpetuar a hegemonia existente. Perante isso, cresce o risco de deslocação da contestação para espaços paralelos, menos previsíveis e potencialmente mais perigosos.
A participação cidadã, tal como está prevista, corre o risco de ser sobretudo simbólica. Consultas públicas, rádios comunitárias e plataformas digitais podem projectar uma imagem de inclusão, mas sem garantias de que as contribuições influenciarão as decisões. A ausência de mecanismos de devolução ou de relatórios que evidenciem como as propostas foram acolhidas ou descartadas transforma a cidadania numa presença decorativa e não num sujeito político activo.
O calendário agrava as fragilidades. A última etapa do processo está prevista apenas para Abril de 2027, quase dois anos e meio após o lançamento. Num país com urgências sociais e ciclos políticos curtos e competitivos, esse horizonte temporal suscita dúvidas: haverá paciência popular para esperar por resultados tão tardios? E que relevância ou força política terão as conclusões quando chegarem? A ausência de entregas intermédias visíveis pode desmobilizar e reforçar o cansaço democrático de uma população habituada a promessas adiadas.
Esse prolongamento pode ainda servir como mecanismo de gestão de tensões. Ao dilatar o processo, corre-se o risco de transformar o diálogo num expediente para adiar decisões estruturantes, neutralizando o conflito sem o resolver. Se o calendário se converter num instrumento de protelação, o diálogo deixa de ser resposta para se tornar parte do impasse.
Tudo isto é agravado por um contexto de desgaste social profundo. A pobreza extrema, o desemprego crescente, a fome em várias regiões e a degradação dos serviços públicos empurram grande parte da população para uma luta permanente pela sobrevivência. A política só tem relevância quando produz efeitos concretos. Se o diálogo não gerar resultados tangíveis – sobretudo num horizonte próximo – aumentará a frustração e poderá reabrir caminhos para novas explosões de violência.
Assim, a metodologia corre o risco de sucumbir às suas próprias promessas. Ao proclamar inclusão e transparência enquanto preserva estruturas fechadas, mecanismos controlados e prazos dilatados, compromete a credibilidade antes mesmo de produzir efeitos. Quanto maior a retórica, maior o potencial de desilusão. O que se anuncia como oportunidade de reconciliação pode converter-se em mais um episódio de desencanto político, reforçando a percepção de que, em Moçambique, a política continua a ser um jogo de elites distante da vida do povo.
CAMINHOS POSSÍVEIS
Com a metodologia já definida, é improvável que venha a ser revista. Resta, portanto, explorar as brechas existentes dentro da sua própria arquitectura. O desafio é claro: converter um modelo concebido para reproduzir o status quo num processo capaz de gerar mudanças reais, reconstruir confiança e produzir resultados visíveis. Para isso, há margens de acção que podem ser mobilizadas:
Dar conteúdo efectivo à participação cidadã
Multiplicar rádios comunitárias, debates televisivos ou fóruns locais não basta se não houver retorno claro. É essencial instituir relatórios públicos regulares que indiquem, ponto por ponto, o que foi recolhido junto da população e como essas contribuições influenciaram as deliberações. Sem mecanismos de devolução, a consulta torna-se meramente decorativa; com devolução transparente, transforma-se em fonte de legitimidade. A experiência da CREMOD é ilustrativa: gerou expectativas elevadas, mas os resultados nunca foram claramente apresentados.
Reforçar o papel da sociedade civil
Mesmo com uma Comissão Técnica dominada pelos partidos, os grupos temáticos podem abrir espaço para maior inclusão. Para isso, é necessário garantir diversidade nas nomeações, envolvendo universidades, igrejas, organizações juvenis, associações comunitárias e sindicatos. Uma composição plural reforça a credibilidade do processo e reduz a percepção de que o diálogo é exclusivo das elites.
3. Incluir actores e forças políticas relevantes
A legitimidade do diálogo dependerá da capacidade de integrar – formal ou informalmente – figuras e partidos que gozam de representatividade junto de sectores significativos da sociedade. Se certas forças, como Venâncio Mondlane ou o partido ANAMOLA, não puderem integrar directamente a Comissão Técnica, é imperativo criar canais institucionais para que as suas propostas sejam recebidas, registadas e reconhecidas publicamente. Mais do que ouvir, é necessário demonstrar que essas contribuições terão impacto nas conclusões e ficarão reflectidas nos resultados finais.
4. Produzir resultados intermédios
Aguardar até 2027 por conclusões finais é incompatível com a gravidade dos desafios actuais. O processo deve apresentar medidas concretas no curto prazo – por exemplo, compromissos de transparência orçamental, iniciativas de reconciliação comunitária em zonas afectadas por violência ou acordos sobre gestão de recursos públicos. Pequenas victórias podem gerar impacto político elevado, mostrar que o diálogo produz efeitos e manter a mobilização social.
5. Permitir monitoria independente
Nada impede que universidades, organizações cívicas ou parceiros internacionais acompanhem o desenvolvimento do diálogo e publiquem avaliações autónomas. Esse escrutínio externo deve ser visto como factor de reforço, não como ameaça. Num contexto de desconfiança, apenas a fiscalização independente pode atenuar suspeitas de captura e conferir maior credibilidade ao processo.
6. Praticar um consenso autêntico
A regra dos três quartos não deve funcionar como atalho para impor maiorias pré-definidas. A legitimidade não nasce de números, mas de compromissos construídos. Se os líderes optarem por negociação substantiva, mesmo dentro das regras existentes, será possível alcançar acordos que transcendam divisões e sinalizem renovação política.
