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Desfazendo equívocos

Por: Ungulani Ba Ka Khosa

 

Li, com manifesta estupefacção, o texto inserido na página de recreação do jornal notícias do dia 15 do corrente, no qual o escritor Jorge Oliveira se assume como meu biógrafo. Tal honraria, por mais merecida que fosse, está nos antípodas do que sou e almejo ser.

Em 2020, o Jorge, depois de uma breve conversa, fez-me chegar às mãos umas quinze páginas em folhas A4. Era o início do que intitulou ser seu projecto. Após a leitura, enviei-lhe um e-mail, do qual retiro algumas passagens:

20 de Março de 2020 – às 16.28

‘’… Li o teu bosquejo, compreendi a tua intenção (…), mas pessoalmente não me revejo no teu projecto. Infenso que sou a biografias em idade bem activa, a tua iria criar alguns constrangimentos às pessoas que me rodeiam. Aduzo algumas:

1 … Falar de bebedeiras e meretrizes e noitadas, é bastante inócuo na vida de um criador. A quem interessa hoje dizer, por exemplo, que Pablo Neruda teve, à portas de casa, uma amante a quem construiu uma moradia? E do François Mitterand? Isso é para a literatura cor-de-rosa.

  1. Falas da Charrua, desvalorizando, de certo modo, muitos dos meus confrades (…). A Charrua, revista, para mim, tem um valor que está acima de quem é mais ou menos na falível classificação de leitores e críticos. Tenho-os como amigos de hoje e sempre. Nunca, no universo da minha obra, irei permitir comentários que atentem contra a imagem deles. Aliás, uma geração é feita de pessoas, e, depois, de obras!

Agradeço a tua intenção, mas pessoalmente não estou na disposição de entrar em biografias e quejandos. Sou daqueles que ainda pensam como Roland Barthes: a biografia só está para os que não se preocupam com o presente e o amanhã …’’

Surpreende-me que passados três anos, o Jorge Oliveira venha a público afirmar que está para publicar uma biografia minha. Surpreende-me que Jorge Oliveira tenha conseguido, em tão pouco tempo, ir a Inhaminga, fazer o levantamento da minha linhagem materna, ver o cenário de Nova Sofala, em Búzi, deliciar-se com a imponente floresta da vila de Dombe, no distrito de Sussundenga, e dormir na missão franciscana de Amatongas, distrito de Gondola, espaços da minha infância, esse tempo que paira na memória. Espanta-me que em tempo recorde, Jorge Oliveira tenha embarcado no paquete império da Beira com destino a Lourenço Marques e, depois, por via terrestre, tenha chegado a Vila Trigo de Morais, hoje Chókué, onde o biografado passou a viver com o pai e o irmão, Elias Cossa. De Chókué, o biografado passa para Lourenço Marques, onde vive e estuda, consecutivamente, na escola primária João de Deus e na escola secundária Joaquim de Araújo. E nesse interim, passa as férias grandes em Banhine, onde é rebatizado com o nome de Ungulani Ba Ka Khosa, e em Panda, onde o pai trabalha como  funcionário administrativo, e no qual tentou comer carne de macaco. Quantas amizades se fizeram e desfizeram-se nessa pré-adolescência?

Depois veio Vila Junqueiro, hoje Gurué, onde se encanta com a sétima arte no emblemático cinema Gurué, na altura Manuel Rodrigues, dos passeios pela estonteante paisagem vestida de verde do chá, das amizades e namoradas, e do colégio que frequenta num ambiente claramente racista. A seguir, já adulto, assiste aos festejos da independência em Namapa, distrito de Eráti, em Nampula, e fixa-se em Quelimane. O fim do carnaval em Quelimane, as amizades no liceu, as noites de estórias no lar da Sagrada Família, os passeios de fim-de-semana pela colorida marginal, a beleza das mulheres chuabos, o encanto pelos livros da livraria ovedekula, a militância política, e os amigos que ficaram para a vida. Pasma-me que o Jorge tenha percorrido esse mundo tão diverso sem ao menos ter dialogado com o biografado. Será que a fonte foram as emotivas e esporádicas conversas de uma ou duas horas num bar?

Desassossega-me que em tempo recorde, o Jorge Oliveira me tenha acompanhado na viagem que fiz a Maputo aquando do 8 de Março de 1977, e a minha integração no grupo de jovens para o curso de formação de professores. Soube, por acaso, o que se terá passado no deslumbrante ano de 1977 no antigo seminário Pio X? Teve a detalhada informação de quando desembarquei em Lichinga, na soturna tarde de quinta feira, de 7 de Fevereiro, do ano da graça de 1978? E os dois anos (78/80) que lá passei, como professor de Geografia? Ó Jorge!..

Não me alongo mais, pois dos anos 80 aos dias de hoje muita água passou debaixo da ponte. Do que acima escrevi, o Jorge Oliveira nem deve saber da metade. Não sabe em que casa vivi no Gurué, em que camarata estive na Sagrada Família, em que zona de Lourenço Marques vivi, quem foi o meu encarregado de educação, a casa do meu pai em Nampula, o número do quarto da minha pensão em Lichinga, etc. E decorrente disso tudo, facilmente se depreende que o Jorge não tem estaleca em se adentrar na minha vida, procurando retratá-la. Trabalhos desta natureza exigem equipa, paciência, e estudo.

Mas há o outro lado da moeda: a minha vida pública, o meu mundo de escritor. Esse, iniciado com a publicação do conto Dirce, minha deusa, nossa deusa, na página cultural Diálogo, do Notícias da Beira. Terá o Jorge Oliveira, por acaso, em mãos, a primeira recensão crítica que recebi do conto? Gostaria que o republicasse.

O mundo literário é por todos devassado porque exposto nos meus livros, nas minhas entrevistas, nos estudos sem fim que fazem da minha obra em teses de licenciatura, mestrado e doutoramento. É o mundo aberto a todos que queiram investigar.

Chegados aqui, Jorge, creio ser desnecessário repetir o que já disse: não estou na disposição de entrar em biografias e quejandos. Aconselho-te a fazeres o que bem sabes fazer: escrever contos e romances.

Se teimas em enveredar por esse caminho de inverdades, nada me restará senão ancorar-me no que a modernidade nos proporciona: a justiça.

O abraço de sempre

 

Ungulani Ba Ka Khosa

 

P.S. Há mais de um semana que o Jornal Notícias não publica este texto/resposta.

 

 

 

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