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DE ONDE VEM A AMEAÇA NUCLEAR?

No dia 21 de Fevereiro, no seu discurso de estado de nação, o Presidente da Rússia, Vladimir Putin, anunciou a suspensão da participação russa no Tratado bilateral com os EUA de Redução de Armas Estratégicas (START III). Pouco tardou para que os media ocidentais começassem a espalhar por todo o mundo mitos sobre alegadas ameaças de armas nucleares russos.

O tratado em questão, assinado com o então líder norte-americano Barack Obama, entrou em vigor a 5 de Fevereiro de 2011 e, na altura, tornou-se símbolo do “reinício” nas relações entre os dois países, abrindo a perspectiva do aprofundamento da parceria russo-norte-americana, laços económicos e rejeição de ameaças mútuas.

O Tratado estabeleceu um limite de 1550 para o número de ogivas nucleares preparadas para uso militar, e de 700 – para veículos de entrega (mísseis balísticos intercontinentais terrestres e marítimos, bem como bombardeiros estratégicos). Os outros Estados detentores de armas nucleares, porém, não foram incluídos: foi sugerido que eles aderissem mais tarde, conforme necessário.

Existia, aliás, uma nuance significativa. Os EUA têm vindo a desenvolver durante décadas a teoria de um ataque global não nuclear por armas convencionais (mísseis de cruzeiro de longo alcance lançados por via aérea), que poderia danificar ou destruir significativamente instalações críticas da infra-estrutura estatal russa. O cálculo foi bempensado: a então Doutrina nuclear nacional impediu a Rússia de ser a primeira a usar o arsenal nuclear e os próprios mísseis de cruzeiro ainda estavam a ser produzidos.

A teoria rapidamente se tornou prática, e as forças armadas dos EUA têm agora o chamado Comando de Ataque Global das Forças Aéreas (AFGSC), que em praticamente qualquer altura e num instante pode lançar quase mil mísseis de cruzeiro contra instalações críticas em qualquer território ao seu alcance. Contudo, ninguém se preocupou com isto até agora!

Para mitigar os riscos, a Rússia corrigiu a sua Doutrina, eliminando a cláusula de não utilização e deixando os “parceiros” saberem que um ataque de retaliação poderia ser nuclear. No entanto, isto não levou a grandes mudanças na política da Casa Branca – especialmente no que diz respeito à expansão da OTAN para leste.

Um factor sério de desestabilização da segurança é a presença de armas nucleares nos países da aliança da OTAN – tanto nacionais como americanos – posicionadas na Europa. O arsenal, representado por mísseis balísticos em submarinos movidos a energia nuclear, existe na Grã-Bretanha e em França. E há todos os motivos para acreditar que os códigos para a utilização destes mísseis passam pelas estruturas de comando da NATO e, para ser mais preciso, através do Pentágono. Só o Presidente dos Estados Unidos pode ordenar a utilização de armas nucleares. Trata-se de várias centenas de ogivas nucleares. Além disso, os EUA mantêm as suas bombas nucleares aéreas (cerca de 200 peças) no território da Bélgica, Itália, Holanda, Turquia, Alemanha e, de acordo com as estimativas, na Roménia. Os pilotos da aviação táctica destes Estados são treinados para utilizá-las, o que contradiz categoricamente as normas de não-proliferação de armas nucleares e prova o facto de os EUA violarem os princípios dos tratados.

Assim, passado pouco tempo depois da celebração do Tratado, confirmaram-se as preocupações russas que ninguém no Ocidente tinha levado a sério. Todos os acordos e risos com os políticos russos serviram como uma cortina de fumo para expandir as fronteiras do bloco militar OTAN fora da zona euro-atlântica, projectando os seus interesses militares a outras zonas do mundo. A recente criação do bloco militar AUKUS (Austrália, Reino Unido e EUA) com a ideia da construção conjunta de várias submarinas nucleares representa mais um desafio para a segurança regional e global.

O preâmbulo do Tratado afirma que a confiança e o respeito mútuos devem ser a base das relações entre os países signatários. No entanto, Washington minou tudo isto com as suas acções nas proximidades da Eurásia e chama agora abertamente a Rússia de inimiga, mostrando a sua relutância em trabalhar com Moscovo.

Nas actuais circunstâncias, não é possível manter um equilíbrio acordado, seguindo as disposições do Tratado. Ao mesmo tempo, Moscovo vê-se comprometido com os limites quantitativos do START. A Rússia não entende retirar-se do tratado, a decisão de o suspender pode ser invertida – mas para isso, Washington deve mostrar vontade política e fazer um esforço de boa-fé na desescalada geral. A Rússia não abandonou o controle de armas, mas foram os EUA junto com os seus satélites da OTAN que declararam uma guerra híbrida total contra a Rússia e está a apostar abertamente numa ilusória “derrota estratégica” dela.

À medida que o Ocidente continua a elevar a parada, cresce o perigo representado pelo potencial nuclear conjunto dos países da OTAN (EUA, Reino Unido e França) virado contra a Rússia, com consequências inevitáveis para o resto do mundo.

Um outro factor desestabilizador na agenda nuclear actual silenciado nos media ocidentais é o facto de os EUA ainda não terem ratificado o Tratado de Interdição Completa de Ensaios Nucleares (CTBT), impedindo assim a sua entrada em vigor. Ao mesmo tempo, é bem sabido que, uma vez que os americanos estão a desenvolver novos tipos de ogivas nucleares, Washington está a considerar seriamente a possibilidade de as testar.

Consequentemente, ninguém deve ter quaisquer ilusões perniciosas de que a paridade estratégica global poderia ser violada. É por isso que, tendo em conta a ameaça colocada pela Aliança do Atlântico Norte, o Presidente russo considerou necessário estar preparado para testar as armas nucleares russas. Não se trata de ser o primeiro a conduzi-los; contudo, se os EUA efectuarem tais testes, a Rússia responderá.

Os EUA utilizam descaradamente o conceito do seu excepcionalismo autoproclamado com tal chamadas “regras formuladas” que não têm nada a ver com o direito internacional universal da Carta das Nações Unidas. Como membro fundador da ONU, a Rússia vê o seu dever de evitar que algum estado obtenha vantagens unilaterais e levem assim o mundo inteiro à beira da catástrofe nuclear.

Não foi a Rússia quem primeiro levantou a possibilidade de renovar os testes nucleares. Não é culpa da Rússia que o CTBT ainda não tenha entrado em vigor. É inteiramente culpa de Washington e de vários outros Estados que não vêem necessidade de assinar ou ratificar o CTBT. Está fora de questão a retirada da Rússia do CTBT ou o reinício dos ensaios nucleares. A declaração do Presidente Putin é apenas um sinal de que se Washington ousar, não ficará sem resposta, os americanos não receberão vantagens unilaterais, abrindo assim uma “caixa de Pandora”.

No meio dos gritos sobre uma inventada ameaça nuclear russa, não seria de supérfluo lembrar que o único país na história que até o momento usou bombas atómicas (contra cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki em 1945) foram os EUA, enquanto não havia qualquer necessidade militar. Este acto de mera vontade unilateral levou a vida de várias centenas de milhares de civis e deixou um dano irreparável para o ambiente. Resta esperar que se lembrem disto aqueles que estão a fazer malabarismo com as hipóteses de uso possível das armas nucleares na presente situação internacional.

 

 

Por Alexander Súrikov,

Embaixador da Rússia em Moçambique

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