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Crise na Ucrânia: balanço de dez anos de catástrofe

 

Por Alexander Surikov,
Embaixador da Federação da Rússia
na República de Moçambique

No dia 21 de Novembro na Ucrânia alguns ainda celebram o Dia da Dignidade e da Liberdade, mas com caras tristes. Após os acontecimentos iniciados nesta data em 2013, o país mergulhou numa tragédia histórica (com perda de ambos destes símbolos) para si e preocupação dos seus vizinhos, tragédia que continua estremecendo muitos outros povos do mundo. O que se passou então? – O Presidente ucraniano, Viktor Yanukovych, no seu último ano de mandato adiou a assinatura do acordo de associação com a EU, cujo preço foi considerado exorbitante para o país. A seguir, uma manifestação de protesto orquestrada por embaixadas dos países ocidentais na praça de Maidan em Kiev a favor da integração europeia se transformou num confronto prolongado e logo conduziu a uma profunda crise política, provocou uma cadeia de acontecimentos que até hoje estão a abalar a Europa e todo o mundo.

Três meses depois, num contexto de motins em massa na capital ucraniana, com disparos de provocadores que custaram a vida a várias dezenas de pessoas, surgiu uma chance de voltar à vida pacífica. O então Presidente e os líderes da oposição, com a mediação de representantes da União Europeia e da Rússia assinaram o acordo que previa a realização de eleições presidenciais antecipadas e a formação de um “governo de confiança nacional”, bem como a retirada das forças policiais do centro de Kiev, o fim da violência e a entrega de armas pela oposição. No entanto, esta chave para a resolução do grave conflito interno foi deitada fora – as disposições do documento tornaram-se apenas um papelzinho amossado pelos protestantes que em seguida ocuparam todos os órgãos de poder.

As primeiras acções e declarações das autoridades que chegaram a Kiev através do golpe de Estado, para o qual, de acordo com a Subsecretária de Estado Victoria Nuland, os Estados Unidos tinham atribuído 5 mil milhões de dólares, desde princípio reflectiram claramente os seus instintos russofóbicos e racistas. Quase de imediato, a língua russa foi privada do estatuto oficial. Depois, foi anunciada uma “marcha” para a Crimeia para expulsar todos os russos. O novo governo provou a sua total afinidade espiritual com o nazismo: elogiou os heróis que tinham colaborado com Hitler nos crimes de extermínio – o Holocausto e condenados no Tribunal de Nuremberga e declarou feriado as datas de criação de estruturas anti-humanas (“SS Galicia” e outras unidades do Reich de Hitler). De que “liberdade” gostam de falam os dirigentes ucranianos com qualquer oposição ao regime cortada de imediato pela raiz e os média independentes fechados…

Nem a Crimeia nem as regiões do leste da Ucrânia historicamente russas aceitaram tais mudanças radicais e recusaram-se a cumprir quaisquer instruções das novas autoridades anticonstitucionais. Como consequência, os golpistas no poder em Kiev desencadearam uma guerra contra as regiões “rebeldes”. A fim de parar uma verdadeira carnificina em 2015 foram assinados os acordos de Minsk, que previam outorgar a estes territórios o estatuto da autonomia etnolinguística dentro da Ucrânia. Mais uma vez surgiu uma chance para prevenir uma tragédia com consequências globais, mas foi sabotada propositadamente pelas autoridades de Kiev e os “garantes” ocidentais. O ex-chanceler alemã Ângela Merkel e o ex-presidente francês François Hollande (os que assinaram os acordos de Minsk) recentemente confessaram que havia um plano para ganhar tempo para que a Ucrânia preparasse melhor para um confronto com a Rússia. O país foi literalmente enchido com armas, conselheiros da NATO e suas instalações militares e medico-biológicas no interesse do Pentágono.

A máquina militar da Aliança do Atlântico do Norte como bulldozer aproximava-se das fronteiras da Rússia. No final de 2021, os Estados Unidos e a NATO rejeitaram categoricamente as propostas russas de acordo mútuo sobre garantias de segurança para todos numa base não-alinhada, o que significa uma recusa de “arrastar” a Ucrânia para a Aliança. Não foi a nossa exigência de surpresa, mas uma recordação da promessa dada há 30 anos de que a NATO não se moveria nem um centímetro para leste após a reunificação alemã. Durante o resto dos 30 anos, continuaram a mentir-nos que não tinham qualquer intenção de transformar a Aliança do Atlântico Norte num bloco agressivo. Tudo em vão: a NATO expandiu-se cinco vezes em direcção às fronteiras russas.

Assim, foram criadas ameaças militares directas à segurança da Rússia no território ucraniano. As regiões, que deveriam receber um estatuto especial como parte de uma Ucrânia unida (em primeiro lugar, o direito de usar a sua própria língua junto com o ucraniano), passaram a ser sujeitos a bombardeamentos repetidamente intensificados. Durante oito anos, cada dia dezenas de pessoas morriam: no total, mais de 14 mil, na sua maioria – civis. A posição dos “parceiros” ocidentais que fechavam os olhos ao extermínio dos russofalantes e preparações de um ataque ucraniano iminente definitivo contra Donbass (com a sorte de Palestina) não nos deixou outra alternativa senão lançar uma Operação militar especial. A finalidade é clara – proteger as pessoas inocentes das regiões historicamente russas. Não tínhamos o direito moral de atirar à mercê dos nazis aqueles que viviam nas terras onde durante séculos os antepassados do povo russo tinham construído cidades, estradas, portos, igrejas e desenvolvido esses territórios.

O objectivo da Rússia nunca foi de ameaçar a Ucrânia como Estado, nem os ucranianos como povo, nem muito menos os vizinhos europeus. São os “amigos” de Kiev que de facto estão a ajustar as contas nostálgicas com a Rússia por mãos e corpos dos ucranianos. Sob pretexto de garantir a soberania deste país, eles destroem os seus restantes. Hoje as capitais ocidentais já não escondem a gestão externa directa do regime fantoche de Kiev.

Usando a Ucrânia como estado-tampão foi desencadeada contra a Rússia uma guerra híbrida, na qual é dado um papel especial às medidas restritivas unilaterais ilegais – “sanções”. No que diz respeito à Rússia, a quantidade delas não tem precedentes e ultrapassou os dezassete mil! Os objectivos declarados – minar a economia russa e forçar a liderança política a abandonar a sua linha independente nos assuntos externos, e finalmente virar a população contra as autoridades.

No entanto, estes cálculos não se concretizaram. Sendo absolutamente contraditórias ao andamento económico global, as sanções exacerbaram os desequilíbrios económicos globais criados antes. São resultados de erros sistémicos na política macroeconómica dos países ocidentais durante o período de combate à pandemia da COVID-19 e da sua corrida irreflectida à “transição verde”.

Após o início da operação militar especial, os EUA e os seus seguidores ocidentais tentaram apresentar a crise energética mundial como se tivessem sido provocada pelas acções russas. Na verdade, a causa principal dos fenómenos negativos foi a imposição da agenda ecológica sem ter em conta falta de capacidades tecnológicas, peculiaridades e indicadores económicos básicos da maioria dos países do mundo. Nos seus esforços para impor as suas “regras do jogo” no domínio climático, os autores fazem descaradamente vista grossa às prioridades dos países em desenvolvimento. Exortam-nos a abandonar a produção de carvão e petróleo mais rentável e acessível, a deixar de estimular o desenvolvimento de depósitos de combustíveis fósseis e a reduzir os investimentos na produção de hidrocarbonetos. Em paralelo, romperam a cadeia logística e financeira da exportação dos hidrocarbonetos russos ao mercado.

A estes grosseiros erros de cálculo macroeconómicos juntam-se fenómenos como os ataques dos terroristas “desconhecidos” aos gasodutos “Nord Stream” no Mar Báltico, que enterraram as esperanças da Europa de voltar a receber o gás barato. Em vez disso, recebem o LNG americano – caro e com uma pegada de carbono bastante negativa. Nada de estranhar – é a sorte dos que se submeteram à hegemonia maligna.

À luz do conflicto na Ucrânia, a mídia mundial põe em realce o problema da segurança alimentar. Para o Ocidente é mais um pretexto para acusar a Rússia, desta vez, de “fome global”. Faz tudo para esconder que, logo no início da pandemia de COVID-19, os EUA, o Japão e a Europa imprimiram triliões de dinheiro não garantido, compraram todos os alimentos ao seu alcance, na expectativa de que a COVID-19 obrigasse todos a “fechar”, criando assim uma crise aguda no mercado global.

Neste contexto, não se pode deixar de recordar a situação do famoso “acordo dos cereais”, assinado em pacote. A primeira parte foi ucraniana e a segunda – russa. As obrigações perante a Ucrânia foram devidamente cumpridas. No entanto, apenas 3% dos alimentos fornecidos aos mercados mundiais destinaram-se para os países da lista do Programa Alimentar Mundial. A maioria foi para a Europa e outros mercados de países ricos. O facto de o Ocidente ter desencadeado uma campanha tão histérica quando nós suspendemos o Acordo, em que a parte russa do “pacote” nem sequer foi posta em prática, explica-se simplesmente: mais de um terço das terras férteis da Ucrânia pertencem às empresas americanas, que estão a ganhar lucro com isso. Com os obstáculos de fornecer os alimentos ucranianos aos mercados mundiais, estas companhia têm medo de perder as rendas…
Aliás, é impossível enganar o mundo para sempre. A política sem escrúpulos dos países que procuram reanimar o seu passado domínio colonial pelos meios actualizados já deu os seus “frutos”: “os senhores” transformaram-se numa minoria na cena internacional. A maioria do “Sul Global” está a ganhar força. Um número crescente de países soberanos resiste activamente às tentativas duma nova escravização. A utilização generalizada de moedas nacionais nas transacções internacionais tornou-se uma marca dos tempos, com um declínio gradual e constante da quota do dólar e do euro.

A insatisfação com a mítica preocupação com o bem-estar dos habitantes da Ucrânia é cada vez mais sentida nos próprios países europeus com o “crescimento” económico negativo. Uma escandalosa polarização política nos EUA já custou ao país uma descida do seu ranking de crédito.

A mesma Ucrânia que na época da URSS foi comparada com a Alemanha e França por seu potencial industrial e agrícola, agora vive graças ao financiamento directo dos EUA e EU e com uma população a diminuir devido à emigração em massa. Em dez anos “a Revolução de dignidade e liberdade” levou a Ucrânia à perda completa de ambas, à dependência quase colonial e ditadura militar dirigido de fora.

No pano do fundo da crise mundial e a divisão da comunidade internacional não é de estranhar que os nervos dum dos estados mais ressentidos não aguentaram. O povo que injustamente foi privado do seu próprio território agitou-se. Quem sabe, talvez, se em 2013 não tivessem começado os motins em Kiev que afinal não trouxeram nem dignidade, nem liberdade, hoje fosse possível achar uma saída pacífica para este conflito de longa data. E se uma parte da comunidade internacional não provocasse crises e golpes de estado, hoje não se deramaria sangue nem dos palestinianos, nem israelitas, nem ucranianos, nem russos…

Resta apelar aos autores e patrocinadores desta catástrofe de dez anos e suas consequências: entendem o que fizeram? Talvez, basta de sangue pago pela importação forçosa e custosa da ordem baseada em regras “made in…”?

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