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Como assistir a um julgamento

Por: Tavares Cebola

 

Desde que iniciaram as transmissões do julgamento das chamadas dívidas ocultas, no ano passado, o caso ocupou, mais do que qualquer outro acontecimento, o espaço mediático nacional. Canais de televisão e rádios transmitiram as sessões a partir do estabelecimento penitenciário da BO, em Matola. Nas redes sociais, um tema dominante foi precisamente o das dívidas ocultas. O interesse gerado pelo julgamento só encontra paralelo com outro, de 2002, do assassinato do jornalista Carlos Cardoso.

O assunto dominou de tal maneira o espaço mediático que alguns advogados a defender os acusados solicitaram ao tribunal, pelo menos duas vezes, a interrupção de transmissões – pedidos recusados pelo juiz. Desconheço os argumentos apresentados mas é provável que tenham dito que as transmissões produziriam efeitos indesejados na prossecução de justiça. Por outras palavras, as transmissões contaminariam as interacções no tribunal e os seus resultados. Temiam, talvez, o que ficou popularizado por julgamentos de grande visibilidade envolvendo personalidades públicas em Hollywood. Trial by media.

O espaço mediático foi, então, simultaneamente, moderador e palco do conflito. Aqui está esse espaço cheio de imagens, a sociedade de espectáculo de que nos falou o francês Guy Debord há mais de 50 anos.

Na tenda do julgamento estavam dezenas de jornalistas, a representar televisões e rádios e jornais e o mais. E havia a figura de quem faz comentários – inevitavelmente propondo leituras sobre os actos na sala, prognósticos e explicações sobre as práticas em tribunais.

A coreografia no tribunal, os gestos, as insistências da acusação, as respostas dos réus – esquecimento, negação, prantos, etc., produziram efeitos na arena. Mas também fora dela: virtualmente o lugar onde todos temos direito à opinião. Ou seja, nada do que vimos e ouvimos acabou na tenda da BO.

Nas bombas de combustíveis, na espera em bancos, em supermercados, escritórios, transportes públicos, em praticamente todo o lado estávamos expostos à voz do juiz e dos acusados e de todos os intervenientes. E desses lugares ouvíamos os ocasionais elogios a um e outro, a revolta, a admiração e as lamentações (apesar de os factos à volta do caso serem já conhecidos, a leitura da acusação, principalmente no saber-se dos gastos em luxo em que os acusados – agora condenados – viviam, produziu um grande impacto).

Outra extensão da popularidade do julgamento veio em forma de memes, fenómeno singular do nosso tempo. Vimos, em todos estes meios, ansiosos, o decorrer dos acontecimentos ao longo de muitos meses de julgamento.

Vimos o juiz e as suas demonstrações de autoridade aplaudidas por muitos que assistiram (é provável que os perfis dos acusados muito tenham contribuído para isso: “podemos ver os poderosos, impotentes e questionados por um poder maior que o deles” ou o muito comum “afinal somos um país rico”), a máscara de uma advogada que não a pôs como devia em tempos de COVID.

O julgamento do maior caso conhecido de corrupção no país foi acompanhado por muitos milhões à extensão do país. Não era apenas um caso de banditismo privado ou improbidades domésticas. Os mais pobres do país sofreram as piores consequências.

Houve também a opacidade que contrastou com a natureza pública da transmissão: as empresas constituídas para as dívidas estavam ligadas aos serviços secretos moçambicanos e tinham como gestores seus operativos. Esses operativos declararam algumas vezes que algumas respostas não poderiam ser dadas por serem de ‘segredo de estado’. Ficámos a saber através de uma transmissão que não podiam responder – o seu trabalho era, afinal, guardar segredo.

Os limites do secreto nunca foram ultrapassados, apesar de todas as revelações. É a muralha secreta do estado.

Com o outro, o do jornalista Carlos Cardoso, os dois são os mais mediatizados julgamentos na história do país.

As respostas face à leitura da sentença, pelo menos vistas pelo que se diz nas redes sociais, oscilam entre a noção de que foi tudo uma grande encenação e são brandas as penas, considerando os crimes cometidos.

Como se vê, o caso ultrapassa o perímetro da tenda de julgamento. A transmissão de imagens produz os seus efeitos.

O que vimos com este julgamento foram, em parte, os dramas do país. O choque do nosso presente e os receios do nosso futuro.

 

 

 

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